O não-sentido da vida

Este ensaio examina as possíveis implicações da Teoria da Compensação Imediato-Tardio de Leonard Martin para diferentes aspectos da crítica à civilização.


“O que importa é encontrar um propósito, ver o que realmente Deus quer que eu faça; o crucial é encontrar uma verdade que seja verdade para mim, encontrar a ideia pela qual estou disposto a viver e morrer” – Soren Kierkegaard.

No episódio 6 do seu podcast, o antropólogo Peter Michael Bauer entrevistou o psicólogo Leonard Martin, que pesquisou a transição das sociedades de retorno imediato para as sociedades de retorno tardio. A diferença básica entre elas é o tempo entre o esforço e a recompensa. Segundo Martin (1999), essa transição transformou radicalmente as formas de organização humanas, tanto no aspecto mental quanto social. Martin acredita que o retorno tardio tornou a busca por significado e a pergunta pelo sentido da vida num problema central. Ele chama isso de Teoria da Compensação Imediato-Tardio (Immediate-Delayed Compensation Theory), que vamos chamar aqui de TCIT.

De acordo com a TCIT, os fenômenos psicossociais que experimentamos na civilização são em grande parte produto da modificação do relacionamento entre humanos e ambiente que ocorreu na transição de um modo de vida forrageador, caracterizado pelo retorno imediato, para um modo de vida de armazenamento, que é caracterizado pelo retorno tardio. Ele propõe que os processos mentais ligados à necessidade de encontrar um “sentido da vida” são mecanismos compensatórios da ansiedade criada pelo aumento do tempo entre o esforço e a recompensa. A ausência de retorno imediato provoca ansiedade porque nosso organismo estaria mais adaptado ao modo de vida onde prevaleceu o retorno imediato. 

A necessidade de representação simbólica seria parte do mecanismo de compensação, nos provendo alívio por meio de uma simulação da recompensa que se espera ter no futuro. Ao representar o ciclo do cultivo numa parede, por exemplo, o ser humano preenche o vazio criado pela ausência de recompensa imediata. Por outro lado, a quebra dessa expectativa, na eventualidade de perder uma colheita inteira, provoca uma frustração extrema, que por sua vez exige novos mecanismos de compensação.

Segundo essa teoria, ao invés de uma motivação básica inerente à existência humana, a centralidade da pergunta pelo sentido da vida é produto de uma determinada lógica de interação humano-ambiente que é relativamente recente e surge no contexto do acúmulo de excedentes. As implicações disso para a crítica à civilização são consideráveis.

Qual o sentido da morte?

“Não se pode viver com os mortos: ou morremos com eles ou os fazemos viver novamente” – Louis Martin-Chauffier. L’Homme et la bête (1947).

Quando perguntamos por que alguém que amamos morreu, estamos no fundo questionando o sentido da vida. O sentido da vida e o sentido da morte estão ligados. O mundo parece um lugar hostil e a vida parece perder o sentido diante de uma morte inesperada.

O luto vem da capacidade de sentir empatia. Mas as neuroses criadas por um processo de luto estagnado parecem ser intensificadas nas sociedades de retorno tardio. O aumento da dificuldade de lidar com a morte e o luto está relacionado ao desejo de transcender a mortalidade. Isso também pode se relacionar a mecanismos compensatórios ligados a certas crenças religiosas que negam a morte. É comum pensar que aquilo que diferencia o humano de outros animais é a consciência da mortalidade. Como a TCIT responde à questão sobre o sentido da morte?

Leonard Martin (2004) fala da consciência da mortalidade como um chamado para a vida autêntica no sentido existencialista. A morte de uma pessoa próxima geralmente nos faz reconsiderar nossa própria vida e o que estamos fazendo com o tempo limitado que temos. Numa sociedade de alienação crescente, esse chamado causa um sofrimento extremo, porque a vida autêntica não está mais diretamente acessível. As perspectivas de uma vida autêntica se projetam quase sempre para um futuro distante. Este sofrimento realimenta a criação de mecanismos cada vez mais elaborados de atribuição de sentido. O mito da superioridade humana é provavelmente o mais antigo desses mecanismos. Esses mecanismos são inadequados porque aumentam a alienação. Os fenômenos da natureza que desafiam o mito da superioridade humana passam a nos colocar diante de uma realidade que queremos negar, nos fechando num ciclo de angústia existencial, autonegação e alívio da frustração pela ilusão de controle.

Este aspecto da teoria se relaciona com a tese de que a civilização é, em certo sentido, uma tentativa de negar a morte. Por isso o projeto transhumanista parece ser o próximo passo lógico da civilização. Se o desenvolvimento tecnológico civilizado buscou, em seus diferentes paradigmas, a superação de uma condição criada pelo retorno tardio, um retorno ao imediato parece levar a uma forma de pensamento completamente diferente do pensamento tecnocentrado. 

Racionalidade e sentido da vida

“O pensamento racional é a interpretação de acordo com um esquema do qual não podemos escapar” – Nietzsche.

A TCIT também pode nos levar a questionar a relação entre a racionalidade e a capacidade de suportar retornos tardios. É comum associarmos a necessidade de um retorno imediato à impulsividade. O desejo pelo retorno imediato é “demonizado” e “animalizado”. É tratado como algo que o ser moral ou racional deve superar. O argumento é que apenas seres humanos são capazes de se dedicar conscientemente ao retorno tardio. Para Freud, a civilização implica em infelicidade porque implica em reprimir o desejo pelo retorno imediato e dedicar-se ao trabalho cujos frutos exigem muito tempo de espera.

O que este discurso chama de “racionalidade” é uma faculdade geralmente atribuída a uma especialidade do cérebro humano: o neocórtex desenvolvido, responsável por funções cognitivas ligadas à linguagem. Estudos recentes têm colocado essa afirmação em xeque. Não apenas outros mamíferos parecem capazes de processos semelhantes, como também certos pássaros (ACKERMAN, 2017). É possível argumentar que todos os seres vivos possuem esta capacidade, incluindo vegetais (COCCIA, 2018). Por exemplo, sabemos que florestas têm seus próprios sistemas complexos de comunicação (SIMARD, 2021).

Daniel Dennett (1993) questionou nossa tendência de diferenciar as formas de cognição pela atribuição de “consciência”. Achamos que nossa diferença é QUALITATIVA, quando, na verdade, qualquer processo cognitivo pode ser chamado de “consciente” dependendo do modo como ele é interpretado. As vantagens do neocórtex são superestimadas. Continuamos dependendo das mesmas estratégias coletivas para sobreviver enquanto espécie.

O discurso cético às vezes usa o neocórtex como explicação para as crenças religiosas. Alguns ateus acreditam na necessidade de dominar essa tendência com algum tipo de racionalização. Mas a TCIT coloca esse problema sob uma nova perspectiva: ao invés de uma batalha da “racionalidade” contra a “natureza”, a crítica à necessidade de transcendência pode se voltar ao estudo das mudanças impostas por uma determinada forma de organização social. Em outras palavras, se a civilização criou ou foi criada por um modo de vida de retorno tardio, a necessidade de superar o desejo pelo retorno imediato nada tem a ver com o desenvolvimento da racionalidade humana, mas sim com uma racionalidade específica e socialmente construída.

Kierkegaard achava que o sentido da vida não podia ser encontrado racionalmente. É preciso um “salto de fé”, uma decisão subjetiva. Mas o que significa ter sentido? A TCIT nos leva a especular sobre o possível sentido do não-sentido, ou seja, a possibilidade de uma vida humana autêntica mesmo na ausência de um sentido ou propósito determinado por uma condição social específica.

O propósito do propósito

“Existe apenas um problema filosófico verdadeiramente sério e esse problema é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida equivale a responder à questão fundamental da filosofia” – Albert Camus.

É possível dizer que todo propósito é socialmente construído. Não há propósitos senão aqueles que criamos por meio de associações simbólicas. O propósito cumpre a função de prover sensação de segurança num mundo hostil e inseguro. Quando temos um propósito, fortalecemos nossa confiança e nos tornamos capazes de tomar decisões difíceis, em parte porque isso alivia a ansiedade produzida pelo retorno tardio.

A TCIT abre a possibilidade de pensar que a centralidade do propósito em nossa cultura não vem de uma função biológica selecionada para a sobrevivência humana. O propósito, e o desespero existencial provocado pela sua ausência, podem ser criações culturais. Algumas sociedades selecionaram valores que exigiram uma linguagem focada em criar histórias com determinada estrutura: começo, meio e fim. Em termos simples, a noção de progresso e desenvolvimento que está pressuposta nas mitologias das primeiras civilizações é uma consequência direta da estrutura linguística exigida pela mudança para o retorno tardio.

Nessa perspectiva, o avanço técnico nessas sociedades dependeu dos mecanismos de compensação da ansiedade. O avanço técnico acelerado é consequência do conceito de eficiência. A necessidade de aumento da eficiência depende de uma percepção “ansiosa” do tempo: o medo do futuro, o medo da perda e o medo da insuficiência. Em outras palavras: insegurança existencial. Essa percepção “ansiosa e insegura” do tempo também é uma criação da cultura e da condição existencial dessas sociedades.

Muitos teóricos que criticam a civilização acreditam que a vida humana é moldada pelas histórias que contamos (Daniel Quinn e Christopher Ryan são dois exemplos). A TCIT em conjunto com a crítica à cultura simbólica questionam essa compreensão, nos levando a imaginar um mundo onde não há mais uma centralidade dessa estrutura narrativa, e outras formas de pensamento e linguagem assumem o papel de comunicar conhecimentos sem que isso implique em complexificação da representação simbólica da realidade.

Esta crítica é uma extensão da crítica ao poder simbólico. Ela radicaliza a interpretação pessimista sobre a relação entre mundo e representação de modo a tratá-la como necessariamente opressiva. Isso significa que a representação seria, por princípio, uma forma de dominação, pois depende da separação hierárquica e autoritária entre sujeito (aquele capaz de criar representações do mundo) e objeto (aquilo que é representado).

Patriarcado e sentido da vida

“A história mostrou que os homens sempre detiveram todos os poderes concretos; desde os primeiros tempos do patriarcado, eles consideraram útil manter a mulher em um estado de dependência; seus códigos foram criados contra ela; ela foi assim estabelecida concretamente como o Outro” – Simone de Beauvoir (1956).

O simpósio “Man the hunter” de 1966 foi um dos principais colaboradores para a difusão da perspectiva antropológica do humano como contador de histórias. Os problemas com as conclusões da conferência foram apontados por estudos antropológicos posteriores. A antropologia feminista, por exemplo, criticou o privilégio dado à caça, uma atividade predominantemente masculina, no desenvolvimento cognitivo humano. Esse privilégio implica na desvalorização das atividades de coleta, tidas como femininas. Algumas feministas relacionaram a prevalência da caça à origem do patriarcado, que também está relacionada à extinção da megafauna.

A TCIT também nos dá uma nova perspectiva sobre esse problema. Ao invés de uma oposição entre as atividades de caça e coleta, que se inscrevem numa binaridade de gênero, podemos pensar para além dessa oposição a partir da ideia de alienação e compensação. Podemos questionar o acúmulo de excedente em si, independente da origem desse acúmulo. A criação de sistemas de crença que dão sentido à vida como mecanismo de compensação pela perda de uma relação autêntica abrange a crítica ao patriarcado, à divisão sexual e à binaridade de gênero, assim como à violência da domesticação e confinamento de plantas e animais. A domesticação não pode ser confundida com amizade interespécie e processos de simbiose, assim como a caça massiva (que destrói biomas ao invés de se adaptar a eles) não pode ser confundida com o simples ato de matar e comer animais, que é comum a todos os primatas, embora não seja prevalente a não ser que estritamente necessário.

Ao invés de uma consequência necessária do fato de que temos um neocórtex, a TCIT possibilita pensar a civilização como processo de alienação, domesticação e compensação. A civilização soluciona os problemas que ela mesma cria, mas aumenta nosso grau de insatisfação e dependência, produzindo problemas ainda maiores. Ao invés de uma “nova história” ou uma “nova cultura”, como alguns autores propõem, podemos pensar para além das histórias e daquilo que nós “cultivamos”. Podemos questionar o sentido de viver num mundo determinado por narrativas e por aquilo que chamamos de cultura.

Tornar-se humano ou superar a humanidade?

“Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou lugar daquilo que antes era cidadania.” – Ailton Krenak.

Criticando a concepção básica de que nos tornamos humanos por meio do retorno tardio, podemos conciliar a crítica à civilização com a crítica ao conceito colonialista de humanidade e de cultura. Assim como as funções do neocórtex não são necessariamente determinadas pela biologia humana, nossa necessidade de sentido também depende de um contexto social específico.

A linguagem civilizacional cria uma dependência de sentido sem que percebamos, assim como impõe dicotomias como mente-corpo, masculino-feminino, humano-natureza e sujeito-objeto. Os mecanismos de compensação pelo que perdemos ao nos tornar civilizados são tratados com mecanismos cognitivos necessários para o desenvolvimento humano. O sentido que buscamos na civilização na verdade não é o sentido da vida humana, mas sim o sentido da vida civilizada.

Alguns preferem pensar o conceito de humanidade como um conceito que aponta para um ideal ainda não realizado: não somos plenamente humanos ainda, nos humanizamos por meio de um processo de desenvolvimento cultural. Outros preferem tratar o humano como condição limitante a ser superada pela racionalidade tecnológica. O conceito de humano como referência norteadora ou como limitação a ser superada parte dos mesmos pressupostos. O transhumanismo troca o conceito de deus transcendente por um conceito de racionalidade transcendente, que não se limita à racionalidade humana. Novamente, essas perspectivas só fazem sentido a partir da naturalização dos mecanismos de compensação criados pelo modo de vida centralizado no retorno tardio.

Linguagem e realidade

“Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo” – Ludwig Wittgenstein.

A domesticação cria necessidades inautênticas. Porém, entender quais são as necessidades autênticas da humanidade depende de uma análise profunda sobre o que significa ser humano. Uma análise que está fadada à incompletude ou à diversidade de interpretações. No fim, não temos acesso direto ao autenticamente humano. Esse acesso é mediado pela linguagem. Até o conceito de realidade depende de uma disputa política de interpretações de conceitos.

No começo do século 20 houve uma grande reestruturação dos métodos e conceitos básicos da filosofia que chamamos de virada linguística. Essa mudança se fundamentou na reconsideração sobre a relação entre linguagem, pensamento e realidade que afetou profundamente o modo de vida civilizado. Vivemos agora num mundo onde é comum perguntar pelo sentido de uma palavra e pelo contexto de uma frase. A expressão “isso não tem sentido” se tornou sinônimo de “isso está incorreto”. Parte da filosofia se concentrou na eliminação do “não-sentido”.

O positivismo lógico tentou defender a objetividade e verificabilidade do significado. Este parece superado, mas alguns de seus aspectos permanecem fortes. Os problemas antes resolvidos pela metafísica agora são resolvidos pela linguística ou são descartados. A TCIT abre a possibilidade de questionar a necessidade de sentido tanto na metafísica quanto na teoria da linguagem. Ao mesmo tempo em que o sentido da vida não é uma grande preocupação fora do retorno tardio, a linguagem “logicamente precisa” também não é imprescindível para compreender o mundo. A psicologia considera a relação entre a origem da linguagem antropocêntrica, que é exclusivamente humana, e o silenciamento das formas de comunicação animistas, que abrange o mundo de outros seres, incluindo até mesmo seres que nem sequer consideramos como seres vivos, como rochas, a água, o fogo e o ar.

Natureza e religião

“O modo como o homem aceita o seu destino e todos os sofrimentos que ele comporta, o modo como carrega a sua cruz, dá-lhe ampla oportunidade — mesmo nas circunstâncias mais difíceis — de acrescentar um sentido mais profundo à sua vida” – Viktor Frankl.

As descrições da natureza como algo oposto à humanidade ou à sociedade são o ponto de partida para diversos conceitos políticos. Por exemplo, se a natureza é descrita como hostil e caracterizada pela competição brutal, as consequências para a teoria política serão muito diferentes daquelas baseadas numa concepção de cooperação sistêmica entre os seres vivos. Há todo um espectro de interpretações entre competição e cooperação na ecologia humana.

A teologia monoteísta é considerada como principal fonte de “demonização” da natureza. O mito do pecado original estabelece um conceito de corrupção radical da humanidade e da natureza. O conflito entre evolucionismo e religião se dá em grande parte porque o conceito de natureza como criadora de vida autêntica abala as estruturas do mito da superioridade humana, que por sua vez abala o sentido da vida e o sentido do sofrimento.

Os entrecruzamentos entre essas duas variáveis, consciência e moralidade, produzem quatro visões alienantes sobre a natureza: 

1. A visão de que ela é conscientemente maligna e aprisionadora, e que impõe sofrimento e restrições absolutamente indesejáveis para seu próprio benefício ou prazer. 

2. A crença de que ela é conscientemente bondosa e amorosa, que tudo foi planejado para maximizar a qualidade de vida de todos os seres viventes.

3. A visão de que a natureza é uma força cega e amoral que trabalha contra os objetivos racionais e morais da humanidade, criando uma oposição entre a vida humana e a realidade material. 

4. A visão de que as forças cegas e amorais da natureza trabalham necessariamente a favor do progresso moral, espiritual ou material da vida, restando a nós apenas deixar que ela siga seu fluxo.

A competição é quase sempre associada a um mal moral, enquanto a cooperação é associada a um bem moral. Assim como os conceitos de caos e ordem, os conceitos de cooperação e de competição não são objetivamente definidos. O caos pode ser visto como uma ordem complexa não compreendida. Processos de aparente cooperação podem estar integrados a processos subjacentes de competição, e vice-versa. De modo que não podemos identificar com certeza a orientação de um processo senão num contexto bastante restrito.

A TCIT nos permite superar as quatro visões alienantes sobre a natureza. Ao entendermos que a questão do sentido da vida está diretamente ligada à questão do sofrimento, e especificamente um sofrimento que é produto do próprio modo de vida de retorno tardio, podemos entender tanto a crença na corrupção quanto na salvação como reflexos de uma compensação por uma alienação radical. 

Reconhecimento, abandono e indiferença

“Saber empiricamente se o potencial cognitivo, inerente aos sentimentos da vergonha social e da vexação, se torna uma convicção política e moral depende, sobretudo, de como está constituído o entorno político e cultural dos sujeitos atingidos – somente quando o meio de articulação de um movimento social está disponível é que a experiência de desrespeito pode tornar-se uma fonte de motivação para ações de resistência política” – Axel Honneth.

Nossa tendência de atribuir características humanas à natureza nos faz temer uma natureza imprevisível ou indiferente ao nosso sofrimento. Embora possamos racionalmente concordar que a natureza não quer nos matar, também sabemos que ela não tem interesse em nos salvar. Isso é suficiente para se sentir desamparado. A mentalidade moderna tentou preencher o vazio deixado pelo fim de uma visão de mundo sobrenatural com uma visão de mundo científica. Mesmo sabendo que processos aleatórios levam à emergência de processos homeostáticos de autopreservação, o sentimento de que a vida precisa ser legitimada e orientada por uma força maior pode subsistir. A sociedade de retorno tardio tem uma necessidade especial por mitos heróicos, grandes líderes e celebridades.

A teoria do reconhecimento de Honneth compreende o reconhecimento como um fator central para explicar o conflito social. A TCIT dialoga com a crítica às tecnologias de dominação da natureza, presente na dialética do esclarecimento de Adorno e Horkheimer. Porém, ela questiona a premissa sobre o grau de controle, resistência e oposição social que podemos obter dentro de uma estrutura de retorno tardio. A centralidade da necessidade de reconhecimento social também pode ser relacionada a um mecanismo de compensação da ansiedade, uma vez que o reconhecimento acumulado por uma elite “influenciadora” é produzida pela alienação e hierarquia. É o excepcionalismo humano que nos separa do modo de vida para o qual estávamos adaptados e nos coloca numa situação nova e complexa, produzindo medos e inseguranças que só podem ser aliviadas por figuras mitológicas, poderosas, virtuosas e heróicas, sejam elas paternalistas ou individualistas. Ambas são salvacionistas. Esta necessidade se manifesta na forma de uma política neoliberal, um clamor conservador, governista, populista, nacionista ou fascista.

O problema da liberdade

“Ele [Deus] desejou, portanto, que o homem, destituído de toda compreensão de si mesmo, permanecesse eternamente uma besta, sempre de quatro diante do Deus eterno, seu criador e seu mestre. Mas aqui entra Satanás, o eterno rebelde, o primeiro livre-pensador e o emancipador de mundos. Ele envergonha o homem de sua ignorância e obediência bestiais; ele o emancipa, estampa em sua fronte o selo da liberdade e da humanidade, incitando-o a desobedecer e a comer do fruto do conhecimento” – Bakunin.

A questão do sentido da vida sempre esteve ligada à questão da liberdade. Se não somos capazes de escolher nosso caminho, se somos obrigados a cumprir um destino inelutável inscrito em algum lugar, se nossa vida ocorre independente de nossa vontade, então qual o sentido de viver? A vida parece perder o sentido quando não pode ser vivida ativamente, quando não há poder para mudar as coisas. A capacidade de escolher implica na historicidade da ação, uma relação concreta e compreensível entre ação e consequência. O conceito de responsabilidade depende dessa relação, e sem senso de responsabilidade a vida também parece absurda. Em outras palavras, para que a ação humana tenha sentido, é preciso que as consequências das ações não sejam totalmente determinadas nem completamente imprevisíveis. É preciso um grau de previsibilidade limitado.

No modo de vida de retorno imediato, essa limitação é criada pela relação ecológica entre o ser humano e os seres não-humanos, num lento processo de evolução, assim como acontece em qualquer outra espécie adaptada ao seu meio. Mas o modo de vida de retorno tardio rompe essa limitação e cria necessidades inautênticas, assim como responsabilidades que não somos capazes de cumprir. A sociedade adquire controle sobre suas próprias limitações por meio da tecnologia. Isso implica numa desadaptação ao meio. A limitação da ação humana passa a depender de fatores humanos ao invés de fatores ecológicos e evolutivos, o que complica (ou até mesmo origina) o problema da liberdade humana como um problema político e filosófico central. 

Assim como na questão do sentido, a TCIT não ajuda a “resolver” o problema da liberdade, mas ajuda a compreendê-lo como um problema que surge no interior de uma condição social específica, que é a transição (provavelmente violenta) do modo de vida forrageador para o modo de vida civilizado. Para a teoria anarquista, isso implica na possibilidade de rever os pressupostos que foram assumidos pelos anarquistas europeus do século XIX, que estavam convencidos de que a anarquia implicava em progresso e superação da “animalidade”, em direção a uma perspectiva anarquista antiespecista e anticolonial.

Violência e necessidade

“Poucos são capazes de distinguir entre a liberdade da espontaneidade, como é chamada nas escolas, e a liberdade da indiferença; entre o que se opõe à violência e o que significa uma negação da necessidade e das causas” – David Hume.

Geralmente, atribuímos uma relação simbólica entre o caos e a violência (ambos ameaçam o sentido) e entre a ordem e a necessidade (ambos estabelecem sentido). A partir da reflexão sobre a TCIT, eu gostaria de propor o seguinte esquema: o caos pode ser violento e necessário, assim como a ordem pode ser violenta e desnecessária. A civilização, embora se declare como ordem necessária, se impõe como uma ordem violenta e se alia ao caos violento, a barbárie, contra a verdadeira ordem necessária, que é a natureza. O caos necessário defende a ordem necessária da natureza contra a ordem violenta e desnecessária da civilização.

É muito comum relacionar a crítica à civilização a um tipo de niilismo, porque ela implica no fim do único tipo de sentido que aprendemos a ter na civilização. A partir da TCIT, é possível refletir tanto sobre a superação do sentido civilizado quanto de sua negação. Para criticar a civilização sem se angustiar com a aparente impossibilidade de superá-la e sem esvaziar completamente sua vida de sentido, é preciso compreender que a crítica não é sobre boicotar os sistemas de compensação mas sobre compreendê-los melhor. Essa crítica não se reduz a negar o sentido da vida. Somos dependentes dos sistemas de compensação que dão sentido às nossas ações dentro da estrutura na qual nos encontramos. Não há possibilidade de escapatória imediata dessa estrutura porque nos tornamos profundamente dependentes dela. Por mais que se compreenda a civilização como destrutiva, permanece a necessidade de se sentir útil nela. Os mecanismos de compensação não nos tornam humanos, mas nos mantêm vivos no confinamento civilizatório. Uma vez que se entenda isso, podemos pensar em formas de diminuir essa dependência e caminhar para uma vida mais autêntica num sentido social e não apenas individual.

Talvez não possamos viver na civilização sem buscar sentido para a vida. Mas podemos questionar essa necessidade, investigar sua relação com um modo de vida de retorno tardio e repensar as suas crenças fundantes. Um “retorno ao imediato” pode ser pensado a partir da crítica às formas de mediação que criam desigualdades de poder, mesmo que esse retorno dependa de uma transição gradual.

Referências:

ACKERMAN, Jennifer. The genius of birds. Penguin, 2017.

COCCIA, Emanuele. A virada vegetal. n-1 edições, 2018.

SIMARD, Suzanne. Finding the mother tree: uncovering the wisdom and intelligence of the forest. Penguin UK, 2021.

MARTIN, Leonard L. ID compensation theory: Some implications of trying to satisfy immediate-return needs in a delayed-return culture. Psychological Inquiry. 1999 Jan 1:195-208.

MARTIN, Leonard L.; CAMPBELL, W. Keith; HENRY, Christopher D. The Roar of Awakening: Mortality Acknowledgment as a Call to Authentic Living. Handbook of Experimental Existential Psychology, 2004.

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