Debate com humanaesfera

Este post é uma resposta ao texto Contra a metafísica da escassez, copiosidade prática, publicado no blog humanaesfera.

A discussão completa pode ser melhor visualizada aqui: http://humanaesfera.blogspot.com.br/p/resposta-respota-em-httpcontraciv.html


Olá, li esse texto com atenção e gostei muito. Como discuti recentemente sobre isso, gostaria de compartilhar algumas reflexões.

A abundância não só é possível como nada além da abundância material é possível por muito tempo. O “estado natural”, antes da sociedade civilizada, não é de escassez nem de competição desenfreada pelos recursos. É de abundância e competição limitada. A competição era regulada por processos que possibilitam a diversidade crescente.

A escassez não é exatamente uma condição material, mas sim um modo de ver o mundo. Os recursos se tornam escassos no exato momento em que os seres passam a ser vistos como recursos para necessidades humanas, quando aquilo do que necessitamos passa ser visto como algo a ser produzido por nós mesmos, na quantidade que acharmos correta e do modo que considerarmos adequado. A economia da escassez começa no momento em que nos apropriamos da terra, antes que qualquer alteração seja feita nela. A ideia de escassez é a própria causa do acúmulo primário, que produz a abundância artificial, que a automatização proposta pretende sustentar.

A produção pode e com frequência é insuficiente, mas a dádiva é sempre suficiente. A abundância só pode existir por um longo tempo numa economia da dádiva. O custo de criar abundância num sistema de produção e consumo sempre será alto demais, é só uma questão de tempo. A abundância nesse caso é relativa e sempre termina por negar a vida natural. Pensar em termos de produção é abandonar a dádiva e adotar a troca equivalente, que não gera laço afetivo.

Num sistema automatizado, as pessoas sempre se tornam acessórios da máquina, ainda que enquanto dispositivos desejantes. Para os outros seres, o trabalho da máquina ainda é trabalho humano. A máquina não coloca a natureza para trabalhar, ela expropria a natureza. A natureza não troca, ela dá, e não pode ser domesticada, não atende os desejos humanos. A máquina não dá, ela troca, é domesticada e domesticadora, é natureza morta. A cornucópia é uma divindade artificial, tal como o Estado, que por fim sempre exige sacrifício humano.

O trabalho é a transformação de vida em morte, uma morte-vida, uma vida empobrecida, sem sentido. O sistema da máquina não elimina o trabalho humano, ele o automatiza. Não resolve a questão econômica ou material, mas a transfere plenamente para os seres não humanos. Todo trabalho é coerção da natureza. A automatização é um dos passos necessários para a plena alienação humana, a exclusão definitiva da comunidade da vida. Livra os humanos de serem recursos, do utilitarismo em relação a humanos, mas não em relação a todos os demais seres. O trabalho só será realmente abolido quando a civilização e suas tecnologias forem abolidas.

Apesar disso, o texto apresenta muitas ideias interessantes que valem a pena serem exploradas. Eu não acredito que limitar a ação humana pela simples capacidade técnica de produção seja possível. Eu acho que um critério ético é imprescindível. Não vejo esse critério ético sendo debatido aqui. Não vejo uma discussão sobre o custo real de se oferecer a tecnologia da informação, por exemplo, a todos.

“A questão de não destruir o ambiente natural em que vivemos só pode ser levantada e assumida pelos próprios envolvidos, a partir do que considerarem (mediante conhecimento, ciência, ética, técnica etc) necessário fazer e capacitados para fazer. Porque não existe nenhum ponto referencial ‘superior’ (como a fantasia mitológica/teológica de uma providência chamada ‘natureza’, ‘gaia’) fora das necessidades e capacidades dos próprios seres humanos para eles mesmos decidirem suas vidas e suas ações.”

Essa parte resume ao mesmo tempo nossas concordâncias e discordâncias. Sim, são os envolvidos que precisam decidir sobre as modificações do ambiente, mas quem são os envolvidos? Somos nós que vamos decidir se vamos tratar o ambiente como objeto inanimado, ou como o que realmente é: a fonte de todas as nossas capacidades e potencialidades, aquilo que nos contém, não o lugar de onde saímos, mas de onde não podemos sair sem declarar guerra à vida. Quem sofre o impacto da construção de uma barragem? Somente humanos podem deliberar sobre a vida na terra? Precisaria haver uma entidade superior para refutar a ideia de que o homem é a medida de todas as coisas? Ou devemos levar a sério a ideia de que ao ser humano cabe decidir apenas sobre sua própria vida e sobre suas próprias ações? Considerando outros seres como iguais, não como superiores nem como inferiores, ainda cabe a nós decidir sobre o curso de um rio, a existência de uma floresta ou de uma montanha? Quais ações humanas permanecem somente no âmbito da humanidade, sem depender da ação de outros seres, ou interferir nelas?

A ideia mais importante que eu encontro no texto é a de que os velhos métodos de luta não funcionam mais. Faz todo sentido considerar que, uma vez que os “direitos” que conquistamos foram cedidos para evitar uma revolução social, ou seja, para manter o capitalismo, o fim da ameaça de revolução social, com a domesticação dos métodos de luta, leva à retirada dos direitos antes concedidos. É uma ótima análise. Embora a imagem da revolução acontecendo em menos de uma semana não me empolgue particularmente, é uma coisa que eu gostaria muito de ver, uma revolução que eu apoio com muito gosto. Certamente seria muito interessante ver o que aconteceria se os meios de produção forem autogeridos. Não compartilho da “paixão” pelos meios de produção, mas eu gosto muito de algumas coisas que podemos fazer com eles (basicamente porque são necessidades humanas que, devido à dependência tecnológica, não podemos mais fazer sem eles). A paixão é, afinal, uma loucura passageira, que quando amadurece se torna amor, e por amor, às vezes precisamos dizer adeus e aceitar o fim de algo insustentável. Eu acredito que podemos lutar juntas, deveríamos nos encontrar e debater abertamente todos esses pontos, encontrar pontos em comum, aprender e lutar juntas. Pretendo continuar defendendo a perspectiva de que o fim dos meios de produção deveria ser considerado pelo menos enquanto opção e assunto válido para ser debatido.

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5 Responses to Debate com humanaesfera

  1. contraciv says:

    Respondendo sua questão, “não é isso (transposição da visão descritiva da natureza para a prática social) que o primitivismo propõe?”. De modo algum. Infelizmente o debate sobre o primitivismo se encontra muito incipiente no meio marxista, creio que principalmente pela ausência de oportunidades de debater esse assunto de modo isento, sem recair numa série de acusações mútuas. Um assunto sempre presente nos artigos da revista Green Anarchy, principal publicação primitivista, era a problematização do conceito de natureza, de sustentabilidade, de pacifismo, etc… Isso fica claro até nos títulos dos artigos. Se você não está a par disso, eu creio que não pesquisou o suficiente sobre primitivismo.

    Eu posso concordar que a religião seja uma armadilha, mas não porque “não existe na natureza”. Não pode ser esse o critério, se você mesmo apoia seus argumentos em outra capacidade que “não existe na natureza”, que é a consideração de valores éticos.

    Acho que estamos nos entendendo melhor, mais ainda falta um pouco. Veja, quando eu digo que processos aleatórios levam à emergência de processos homeostáticos, não faz sentido dizer que é algo que pode ou não acontecer. É um fato que existem processos homeostáticos, e é um fato que eles são o único resultado possível de qualquer processo de variação aleatória delonga duração, porque logicamente cada ocorrência desses processos é apenas uma possibilidade extremamente rara, mas somente estes processos podem permanecer por um longo tempo, todos os outros são de curta duração, ou seja, insustentáveis. Não porque existe uma mente benevolente dando preferência a esses processos, mais porque seria preciso mais que uma ação cega para IMPEDIR que esses processos ocorressem espontaneamente com o tempo e perdurassem. Variação + tempo = processos homeostáticos. Isso é tão necessário quanto 2 + 2 = 4.

    Minha afirmação foi que “guerras tribais” não podem ser comparadas a “guerras civilizadas”. Não são guerras de conquista nem de aniquilação, pois de outra forma teríamos a formação de impérios desde sempre. É também um fato que tínhamos uma grande diversidade cultural no mundo antes do expansionismo civilizatório. O que possibilitou essa grande diversidade cultural é o modo como esses grupos humanos se relacionavam, incluindo o modo como faziam guerra. Assim como tínhamos uma grande diversidade de espécies. As relações entre as espécies, incluindo a predação, é que possibilitou a diversidade de espécies. Não há qualquer outro fator ou combinação de fatores que poderia ter possibilitado ou gerado essa diversidade, a não ser que você queira apresentar um modo mais “eficiente” de evoluir.

    Em nenhum lugar eu defendi as sociedades tribais como modelo para nós hoje. E na sua fala você comete uma gafe quando diz “voltarmos às sociedades tribais”, como se elas estivessem no passado, como se nós tivéssemos realmente avançado na história ao abandoná-las (na verdade, destruí-las), o que implica num tipo de determinismo. Eu não preciso justificar a guerra tribal como prática social “hoje”. Ela é uma prática social de um povo que existe hoje. Se você quiser apresentar um único argumento que invalide essa prática social “hoje”, fique à vontade. Mas que fique claro que dizer que ela é válida “hoje” não significa dizer que é válida em qualquer contexto, principalmente no contexto civilizado. Dizer que ela é válida hoje significa apenas dizer que essas culturas não podem ser exterminadas somente por serem diferentes.
    Justificar guerras como processos de “feedback negativo” é o exato oposto do que eu estou tentando fazer. Primeiro: Parto da premissa que nossas ações são as únicas que podemos julgar e mudar, para não cair na armadilha do totalitarismo ou do autoritarismo, como você mesmo alertou. Considerando isso, me limito a valorar somente as nossas guerras. Nossas guerras são de conquista, são para acúmulo de capital. Mesmo quando regulam a economia destruindo bens para que estes possam ser produzidos e vendidos de novo, evitando o colapso do mercado por excesso de oferta e escassez de demanda, elas servem para um propósito final que é a sustentação de um processo de acúmulo. Logo, não são realmente processos naturais de “feedback negativo”. Em relação a uma economia eles podem ser processos reguladores, mas fazem parte de um processo maior que é, num grau mais amplo das relações, um processo de acúmulo indefinido, um feedback positivo. O próprio avanço tecnológico é um processo de feedback positivo se ele escapa das considerações éticas e passa a ser um processo de avanço com fim em si mesmo.

    Sou também totalmente contrário a esse uso do conceito de “holístico”. Meus escritos em grande parte denunciam o uso desses conceitos na manutenção do Estado, do Capital e da Civilização. Há hoje um mito bastante estabelecido de que os povos nativos viviam num constante estado de guerra. Este mito parece originar dos contratualistas, como Thomas Hobbes, que pretendiam justificar a necessidade de um Estado forte. Mas mesmo nas interpretações mais gentis da teoria hobbesiana, o estado de guerra de todos contra todos não significa um estado de violência alarmante. Por motivos lógicos, uma onda de violência não pode durar muito sem colocar em risco a sobrevivência do grupo. Considerando que o número de pessoas que sequer chegava à idade para guerrear era reduzido, se essas guerras eram constantes, elas não poderiam matar muita gente, senão só poderiam acontecer uma vez a cada geração. Temos também dados de que, exceto em condições específicas de extrema competição por espaço, os conflitos entre grupos não eram um fator relevante de controle da população. Logo, está mais do que na hora de desmistificarmos a suposta brutalidade dos povos indígenas. A guerra para eles de modo algum se define pelo ato de matar alguém ou produzir sofrimento. Quando dizem que são povos guerreiros, isso significa para eles que são povos capazes de se defender, saudáveis, em boas condições, como qualquer outro ser vivo. Isto é para eles um modo de vida, muito semelhante ao bushido para os samurais. Nós é que aplicamos erroneamente a palavra “guerra” às suas práticas, com todos os seus significados negativos, assim como aplicamos a palavra “religião” aos seus ritos, e assim por diante.

    Quando você diz que devemos evitar o sofrimento desnecessário, minha única preocupação é com o critério que será usado para determinar qual sofrimento é necessário e qual não é. Necessário para quem, para que fim, sob que ponto de vista? Veja só, o fato de que a espécie humana surgiu, sobreviveu e se espalhou numa infinidade de culturas, cada uma delas única e incomparável, e que isso acontece há pelo menos dois milhões de anos, é uma evidência de que sempre fomos sustentáveis. O que não é sustentável na cultura humana se resume à civilização, só nela se produz o contrário de tudo que estava produzido, só nela se produz a alienação da natureza, a ausência de sentido, o processo dialético de confronto político que supostamente terminará com o fim do capitalismo… Tudo que se baseia nisso só pode ser insustentável, mesmo que seja feito com a melhor das intenções.

  2. humanaesfera says:

    Perfeita a tua descrição da natureza ateleológica, amoral e indiferente. Concordo com ela. E que os processos aleatórios podem (ou não, acrescento) levar à emergência de processos homeostáticos, aquilo que se costuma chamar processos sustentáveis. Ou seja, o processo homeostático em questão somos nós mesmos junto com todos os outros seres que, nas suas relações conjuntas, mediante “feedbacks negativos” (mortes, escassez e catástrofes) que mantém a sustentabilidade do sistema ao longo do tempo ao contrabalançar os “feedbacks positivos” que de outro modo se acumulam e levam ao colapso dele, continuam permitindo a existência de cada espécie, e a vida e desenvolvimento de cada indivíduo atual dessas espécies. Porém, a minha crítica era justamente a transposição dessa visão descritiva da natureza para a prática social (não é isso que o primitivismo propõe?). Quando se faz isso, o sofrimento e morte de cada um de nós (como o de todos os outros seres) são naturalmente justificados na prática social. A morte e sofrimento de cada um passa a ser considerada uma prática social aceitável (como “feedback negativo” necessário à “homeostase”) para que o suposto todo, o sistema holista, seja sustentável. Realmente isso não tem outro nome que não teodiceia (bastante similar aos ritos sacrificiais do antigo paganismo para a “restauração da ordem cósmica”). Mas, como toda teologia e religião, ela não existe na natureza, é uma criação especificamente humana. Nenhum outro ser vivo age mediante uma “percepção imaginária extraterrena” (holística) de si mesmo no mundo, indiferente ao seu próprio sofrimento e morte em nome da uma imaginação em sua cabeça. Esse é um exemplo de armadilha criada pela industriosidade humana de que falei antes.

    Como tratar então o problema da destruição do meio ambiente do qual dependemos para existir? Para não cair nessa armadilha teocrática (holística), é preciso saber separar descrição científica de prática social (que inclui a ética, mas também, entre outras coisas, é claro, a técnica, com ferramentas, máquinas etc), colocando-as como duas das muitas dimensões de nossas próprias necessidades e capacidades. Ou seja, como já dissemos, não há critérios acima e fora de nossas necessidades e capacidades para decidirmos nossas próprias ações, inclusive nossas ações com relação ao ambiente do qual nossas próprias vidas dependem (junto com os seres vivos nesse ambiente com que nos relacionamos). Simplesmente, para agirmos, só temos as nossas próprias capacidades e necessidades, com as ideias, ciência e práticas que inventamos a partir delas, e com as quais pensamos e agimos com algum êxito ou não.

    A mesma crítica à teodiceia holística da natureza que fiz no primeiro parágrafo se aplica à afirmação de que a guerra tribal não é algo destrutivo porque possibilitou a diversidade cultural (nota: essa última afirmação também é bem questionável, mas deixa pra lá). Pois, como você defende como modelo para nós hoje voltarmos às sociedades tribais, você justifica a guerra tribal como prática social hoje. Nos sacramentos da teodiceia holística da sustentabilidade, as guerras são naturalmente justificadas como circuitos de “feedbacks negativos” para compensar os “feedbacks positivos” que se acumulam e tendem a colapsar a sustentabilidade do “holon” imaginário, a “homeostase” da “natureza primeva”. Mas, cara, toda guerra se define por haver gente morrendo e sofrendo, e isso não é defensável como necessidade hoje; o mínimo que é defensável é que desenvolvamos a capacidade de evitar a guerra, assim como todo sofrimento desnecessário, e que ao mesmo tempo, pela mesma razão, desenvolvamos a capacidade de manter ou criar a sustentabilidade prática da nossa relação com o ambiente do qual dependemos.

    No mais, acho que já esclarecemos mutuamente nossas posições. Respeito as tuas, mesmo não concordando. E espero que mantenhamos contato.

    Saudações

    humanaesfera

  3. contraciv says:

    Acho que ainda não estamos nos entendendo quando aos conceitos utilizados. Como eu afirmei antes, se o que você entende por “ordem” equivale a um processo teleológico, então concordo que a “ordem natural” é uma ficção. Os processos “naturais” são ateleológicos, isso os distingue da ação humana, que possui intencionalidade. Produções culturais são sempre produtos de uma mente intencional. Mas o mais importante é que a natureza não precisa ser dirigida pela mente humana. Na natureza existe uma identidade entre “caos” e “cosmos”, como diz Deleuze. Toda variação aleatória resulta em padrões emergentes. A própria racionalidade surgiu espontaneamente a partir da variação aleatória. O cérebro humano, com toda sua complexa rede neural, foi criado por um processo evolutivo. Neste sentido, toda ordem vem do caos, e o erro aqui é querer ordenar mais do que pode ser ordenado. Nossos cérebros evoluíram para reconhecer padrões. Nós podemos ver rostos humanos em manchas de café. Nesse sentido, a distinção entre “ordem” e “caos” depende da percepção. Sua tentativa de ver a natureza como puro caos negativo e a mente humana como origem de toda ordem positiva implica numa dicotomia que não se sustenta.

    De modo semelhante, se o que você entende por “sustentabilidade” e “equilíbrio” implica em ausência de agressão, predação, morte ou extinção, então não estamos falando da mesma coisa. Não tem o menor sentido levantar esses fatos como se fossem objeções morais à ação da natureza. Por um lado, concordamos que o processo é cego e indiferente, mas você parece estar associando essas termos a concepções negativas. Você deu a entender que minha proposta seria que agíssemos de modo cego e indiferente, desconsiderando valores… Isso não tem o menor sentido. Tudo que eu afirmei é que esses valores servem para dirigir nossas próprias ações e não a existência como um todo. Nossa capacidade de agir moralmente é uma capacidade que surgiu do mesmo processo que dá origem a qualquer outro processo nesse mundo, porque, a não ser que você queira negar isso, não há outro mundo de onde essa capacidade pode se originar. Um processo pode ser chamado de sustentável porque consegue persistir por um longo tempo sem esgotar suas condições de existência. A vida seria impossível sem a predação, sem a morte, sem a extinção, sem ciclos de fartura e fome. A vida persiste porque sistemas homeostáticos foram surgindo ao longo da evolução, e estes sistemas incluem necessariamente tais processos. Isto é o que eu chamei de sustentabilidade. Eu defini esse conceito fazendo uma distinção didática para evitar a confusão, mas você ignorou minha definição e continuou refutando argumentos espantalho. O que eu disse não contradiz a ciência, os conceitos que eu utilizei são amplamente aceitos na comunidade científica. Creio que continuar debatendo sobre esses termos é um desvio da questão principal.

    Nós concordamos com nossas concepções descritivas da natureza (embora usemos termos diferentes). Nossa discordância é quanto à concepção valorativa. Só podemos julgar moralmente os seres capazes da mesma consideração moral que nós. Quando você compara as plantas a assassinos por terem venenos, a torturadores por terem espinhos, ou a monstros vorazes por terem sistemas imunológicos (!), acaba implicando em algo bastante problemático para sua linha de raciocínio. Assassinato, tortura e comportamentos semelhantes são necessariamente ações intencionais e com implicações morais. Se os seres da natureza apenas respondem a processos cegos e indiferentes, como você afirmou, não podem agir intencionalmente ou moralmente. Quando você faz essa comparação, ou entra em contradição com a afirmação de que a natureza é cega e indiferente, ou entra em contradição com a afirmação de que assassinato e tortura são ações morais. O que sua escolha de palavras implica é uma percepção enviesada (negativa) da natureza. Uma pessoa não pode acusar um raio de ser maligno a não ser que espere algum tipo de consideração moral por parte das nuvens que produzem os raios. Sua concepção de natureza é no mínimo tão fictícia quanto a que você rejeita.

    O mesmo equívoco ocorre ao comparar o impacto da civilização com o impacto das cianobactérias que produziram o oxigênio. Esta comparação é efetivamente uma naturalização, um apelo à natureza. Defendemos que a ação humana é distinta da ação da natureza justamente por ser moral. E é justamente por isso que não podemos pretender julgar nada além da nossa própria cultura. A ação moral tem um limite cultural. Se nosso critério para todas as ações forem somente os nossos próprios valores, rejeitaremos a diversidade, e “catástrofes naturais” como a produção (via processos evolutivos) de “venenos” como o oxigênio, serão evitadas, com consequências tão drásticas quanto o fim das condições de possibilidade de sustentação da vida.

    Em resumo, você acredita que a abundância é um estado que só pode ser criado pela cultura tecnológica civilizadora, que é simples produto da racionalidade humana. Para justificar isso, invoca a imagem de uma natureza “indiferente”, que tanto dá como tira, de todos igualmente, e por isso não pode gerar abundância. O que você entende por abundância implica numa superação das condições naturais às quais todos os outros seres estão sujeitos. Assim, repete que os seres não são pacíficos, vivem de ferir e matar uns aos outros, numa concorrência cega, produzindo sofrimento, escassez e morte. Se sua visão da natureza fosse realmente científica, se limitaria a descrever os processos com o maior grau possível de objetividade. Porém, o que você apresenta é uma visão enviesada, que lamenta a ausência de valores na ação da natureza, como se ela devesse estar lá, e como se nosso dever fosse corrigir essa ausência pelo controle da natureza, ordenando toda a realidade material de acordo com nossa mente, impondo a ordem civilizadora a todos os outros seres, e não somente a nós mesmos.

    Tudo que eu apresentei é uma imagem menos enviesada da natureza. Toda diversidade, toda cooperação, toda autonomia e toda beleza presente na complexa rede de relações entre os seres, surgiu e se manteve sem nenhuma interferência humana. O mínimo que podemos afirmar é que a humanidade não é necessária à existência. Esses processos não produzem somente limitações, sofrimento, morte e extinção, eles também produzem tudo que nos torna vivos, participantes da comunidade da vida. Comparar a tese da regulação de mercados (mão invisível) com essa visão da natureza é um equívoco grotesco, a não ser que você concorde com a concepção liberal de natureza (humana e não humana). Compreender a distinção e a continuidade entre humanidade e natureza não implica nem na crença de que nossas ações devem ser determinadas ou direcionadas pelas ações de outros seres, nem que as vidas de outros seres podem ser controladas, direcionadas ou determinadas pelos nossos valores.

    Sobre a dádiva, minha referência é a seguinte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300002

    Novamente, concordamos descritivamente, mas o sentido valorativo que você dá aos termos (por exemplo, o sentido pejorativo de “coerção”) implica numa visão de mundo que pretendo questionar. Segundo os próprios autores que você cita (Mauss e Pierre Clastres), a “guerra tribal” não é algo destrutivo, como é a guerra civil. É uma forma de interação social que possibilita a diversidade cultural. Quando Mauss fala de “coerção”, não dá um sentido negativo a esse termo. Coerção é uma condição de possibilidade da vida em sociedade. No artigo acima fica explícita a distinção entre dádiva e troca equivalente.

    Você é bem mais flexível quanto aos termos que você mesmo usa. Por exemplo, concordamos também que “dependência” não é sinônimo de dominação. O problema da dependência tecnológica não está na dependência em si, mas na dependência de algo insustentável. Dependemos de outros seres para viver, mas, quando dependemos de algo insustentável, algo que não pode durar, nós entramos numa armadilha. O sistema tecnológico é insustentável justamente porque nos afasta da comunidade da vida, as relações de interdependência entre os seres, o que só pode nos levar ao colapso. Para evitar o colapso, nossa opção é aumentar o grau de controle cada vez mais, porém isso é insustentável, porque não podemos controlar tudo. É só uma questão de tempo até que um sistema não adaptativo entre em colapso.

    A minha pergunta sobre quem deve deliberar sobre a vida na terra foi provocativa. Você respondeu que a condição para participação nas decisões que afetam todos os seres é que estes aprendam a falar nossa linguagem. Isto revela a arrogância antropocêntrica. Os seres não precisam falar para se organizar numa rede de relações na qual a diversidade é produzida e mantida. Tanto é que até plantas, como você mesmo lembrou, podem desenvolver venenos e espinhos para se proteger de predadores. Num sentido bastante amplo, todos os seres estão em comunicação uns com os outros, todos os processos interligados. Você os considera seres como assassinos, com o interesse de matar, mas não com o interesse de viver, que precisa ser compreendido e respeitado mesmo que estes não falem. Se não devêssemos considerar ninguém incapaz de falar, bebês e outros seres humanos sem essa capacidade também não teriam direitos.

    Concordamos que seria totalitário pretender controlar que formas de pensar são corretas e quais não são. Mas é precisamente nisso que consiste a civilização. A civilização é totalitária justamente porque julga que seu modo de pensar e de viver deve ser o único humanamente aceitável, e que toda a natureza precisa se curvar diante desse modo de organização. Esse totalitarismo é a característica principal da civilização. Ela não pode existir sem se revolucionar constantemente até atingir o controle global. Ela é a própria aplicação da ideia de que tudo que se interpor no nosso caminho deve controlado ou exterminado, porque somos ou possuímos algo superior a todos os outros. Se a civilização pudesse “deixar cada maluco com sua maluquice”, ela não seria civilizadora. É muito conveniente, depois de estabelecer um sistema totalitário global, de tomar o mundo para si e deixar os outros em “reservas”, pedir que cada um fique no seu quadrado. O sistema tecnológico não abole nada senão o custo interno da civilização. O custo externo é a submissão de outros seres ao nosso sistema produtivo, enquanto meros recursos.

    Se fosse possível viver de qualquer modo sem interferir na vida dos outros, não precisaríamos de limites éticos. Quem paga o custo de viver com nossos “maquinismo e invenções” não somos nós, o sistema tecnológico escraviza a natureza para “libertar” o homem. Essa liberdade não é real, porque não se pode ser livre dependendo de algo insustentável.

  4. humanaesfera says:

    Primeiramente, agradeço pela resposta e por compartilhar tuas ideias.

    Sobre a afirmação de a escassez ser um modo de ver o mundo, artificial, sendo abundância um “estado natural”, essa afirmação contradiz praticamente tudo o que já sabemos pela ciência. A ideia de “ordem natural”, “sustentabilidade”, “equilíbrio natural”, é uma invenção humana. Ela simplesmente não existe na natureza. A natureza é incessante desequilíbrio cego e indiferente. Se tens alguma dúvida, observe a cadeia alimentar – mais de 99,99% dos seres vivos vive de ferir e/ou devorar outros seres vivos, a tal ponto que nem sequer os seres mais inofensivos da cadeia alimentar, como as plantas, são “pacíficos”, mas venenosos (ou seja, assassinos; aliás são dos venenos das plantas contra seus concorrentes que vem todas as propriedades medicinais delas que usamos graças à nossa ciência, empiria e técnica), espinhentos (verdadeiros torturadores), monstros vorazes para muitos outros pequenos seres ingênuos que metem seus bedelhos neles (fungos e bactérias, por exemplo, atacados pelo sistema imunológico vegetal) etc. Atente também para a interminável concorrência cega dos seres por nichos que extinguiu 99,99% de todas as espécies que já existiram na terra desde o surgimento da vida. Até mesmo a molécula mais básica necessária à nossa vida atual na terra, o oxigênio, um gás venenoso para os primeiros seres vivos, foi introduzida “artificialmente” na atmosfera (antes predominantemente de CO2) pelos primeiros seres a fazer fotossíntese (provavelmente cianobactérias), levando a uma extinção em massa colossal. E caso a humanidade quiser por em prática a ficção de uma “ordem natural” independente dela, ela terá de se entregar a esses processos cegos, violentos e indiferentes, “naturalizá-los” e agir do mesmo modo. Porque a “natureza” de fato é apenas um conjunto de forças cegas completamente indiferentes ao sofrimento, assassinato, tortura, abundância, escassez, sustentabilidade e à própria vida de todos os seres vivos. A única “natureza humana” que existe é criatividade, ou seja, transformação da natureza herdada, tanto a da “natureza” de si mesmo (cultura) como a das circunstâncias ambientais, em suma, indústria no sentido amplo e radical do termo (engenhosidade, inventividade), criação histórica. É verdade que nossa criatividade pode criar e cair em armadilhas (por exemplo, consequências ruins inesperadas, aliás, como o próprio surgimento histórico da sociedade capitalista e, antes, da sociedade de classes ou castas), porém, a colocação em prática da ficção de uma “mão invisível” chamada “ordem natural” seria certamente uma dessas armadilhas, a pior de todas talvez, levando certamente ao extermínio cego e indiferente de milhões, bilhões de pessoas. O risco de criarmos uma armadilha imprevista sempre existe, mas o risco passa a ser certeza quando deixamos de lado nossas capacidades (éticas, científicas, técnicas etc) para agirmos tão indiferentemente e cegamente quanto a natureza, guiados pela fé numa “mão invisível” por traz as forças naturais cegas.

    Sobre a dádiva das sociedades tribais, como Mauss mostrou, era um sistema de coerção e, muitas vezes de dominação brutal de alguns clãs sobre outros. Em sociedades tribais em que os clãs não se hierarquizavam, o “dom” consistia em laços coercitivos resultantes da desconfiança entre tribos inimigas sempre à beira da guerra entre si (segundo Pierre Clastres, era esse estado de guerra generalizada que impedia o surgimento do Estado, o surgimento das castas). O “dom” era o rito de uma guerra invertida, em que cada lado, sempre extremamente desconfiado, tinha de provar sua confiança ao outro clã através da concorrência de dar mais no futuro do que recebeu de presentes. Caso algum lado, por qualquer razão, fosse apressado em retribuir ou se passasse a retribuir com menos (e sempre chegava esse momento), isso era considerado prova definitiva de desconfiança e declarava-se guerra, porque se não fosse declarada guerra formar-se-ia uma relação em que um clã se sobrepõe a outro (castas). Sem guerra nas sociedades tribais, o dom se torna dívida “infinita” de um clã (o que dá menos) para outro (o que dá mais), a ser paga como sujeição de castas. Na antropologia, esse é o caso mais clássico de todas as “dádivas”, o potlatch, praticado por uma sociedade de castas da América do Norte. Em suma, o que quero dizer é simplesmente que a dádiva tribal não parece de nenhuma maneira servir como modelo para nós hoje. A própria possibilidade do “dom” pressupõe a propriedade coletiva tribal sobre objetos produzidos por ela privadamente diante de outra propriedade coletiva tribal de outros objetos produzidos privadamente frente àquela e vice-versa. Pressupõe portanto, a troca entre propriedades privadas, que é “dom” (laços de dívida) enquanto não é guerra e que se torna mercado (escambo) durante a guerra declarada, quando cada lado exigia uma retribuição imediata, rápida, de bens (e “com valor equivalente”, “justo”, porque não confiam absolutamente um no outro). Hoje, os meios de produção são materialmente comuns em escala mundial (nada, em termos materiais, é produzido privadamente), e, consequentemente, na perspectiva de um mundo libertário atual, o desfrute das forças produtivas não pode ser um “dom”, mas uma auto-realização autônoma propiciada pelo livre acesso por todos às forças produtivas comuns.

    Sobre a natureza que dá, sobre coerção da natureza, e a afirmação de que devemos ser naturalmente naturais, abandonar a técnica, máquinas etc, por causa da dependência tecnológica etc: já mostrei no primeiro parágrafo que “ordem natural” é uma invenção humana, uma ficção de consequências potencialmente catastróficas para os próprios seres humanos e a vida na terra. E dependência não é sinônimo de dominação. A dependência é inescapável e é a única base para, transformando aquilo de que somos dependentes, criarmos nossa independência, ampliar reciprocamente uns para os outros a liberdade e a autonomia, e permitir o livre desenvolvimento das capacidade e necessidades de todos. Se independência for tomada como absoluto (sem dependência), é sinônimo de prisão, de fechamento, e na verdade trata-se de dependência de muros que isolam do mundo, verdadeiro buraco negro morto-vivo. Sobre uma ética que trata dessas questões (liberdade e dependência, necessidades e capacidades etc): http://humanaesfera.blogspot.com.br/2015/10/autonomia-e-cotidiano-espinosa-e-o.html

    Sobre a pergunta: “Somente humanos podem deliberar sobre a vida na terra?” Enquanto a tecnologia não permitir aos outros seres vivos se expressar de modo que possamos compreendê-los, os animais vão continuar sem falar. E enquanto tudo indica que os animais não ligam minimamente para o sofrimento dos outros seres (exceto a sua prole), e que são completamente indiferentes à tortura e assassinato deles, são apenas os humanos que se preocupam com eles e com essas questões. A não ser que, mediante biotecnologia, façamos os outros seres vivos serem tão inteligentes, compreensivos e faladores quanto nós. Mas isso não parece uma boa ideia.

    Mas provavelmente a principal e mais radical divergência é com a afirmação de que a dominação é originada de um modo de pensar (como o etnocentrismo, antropocentrismo, a ideia de tecnologia etc), de uma mentalidade, de uma cultura, de uma metafisica, de um comportamento, de uma psicologia etc. Se fosse isso, a única maneira de acabar com a dominação seria policiando e atacando essa sua suposta causa: a mente, o modo de pensar, mentalidade, ideia, metafísica, cultura, psicologia etc das pessoas. Ora, isso seria totalitário, uma dominação muito pior do que a que se quer atacar. De um ponto de vista libertário, não é quem quer comandar (com sua mentalidade, ideias etc) que realmente tem o poder, mas aqueles que se sentem compelidos a obedecer (primariamente por esperança de recompensa e medo de punição). Se ninguém encontra materialmente razão nem paixão para levar a sério aqueles que querem estar numa posição de prometer recompensas e ameaçar com punições, não tem a menor importância a mentalidade, ideia, psicologia, comportamento, cultura etc desses loucos mandões. Basta deixar cada maluco com suas maluquices. E a condição material na qual ninguém encontra razão nem paixão para se submeter é a abolição do trabalho (abolição de toda atividade tão repulsiva que ninguém pode considerar valer por si só, mas só como equivalente de outra coisa, recompensa e punição, “mérito” ou “demérito”) e da propriedade privada das forças produtivas que é justamente aquilo que impõe a sujeição ao trabalho.

    Enfim, concordamos que esses assuntos são opções e consequentemente valem a pena serem debatidos e questionados. E a divergência é fundamental se lutamos por uma sociedade libertária que propicia que uns prefiram, por exemplo, viver como tribos em florestas e savanas (fictícia e artificialmente, na minha opinião) naturais e imutáveis, enquanto outros preferem viver em meio a maquinismos e inveções. Cada louco com sua mania.

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