Como negar o colapso

Um ensaio sobre o aquecimento global e seus negadores.


Imagine que você é um fumante e está num local público se deliciando com seu vício favorito quando então vê uma pessoa que, por uma questão de princípios, não fuma, detesta fumaça e não faz questão de esconder seu incômodo.

Ela não precisa dizer nada, não precisa de nenhum olhar de reprovação. Você se sente potencialmente julgada só por saber que ela deve ter algum motivo para se abster de algo tão bom, e portanto deve haver alguma razão para você também se abster, mas você não quer pensar nisso. Porém, por mais que evite pensar, sente que a inocência do seu prazer foi perdida, substituída por uma culpa potencial. A presença daquela pessoa pode ser suficiente para estragar seu momento. Você começa a montar defesas para acusações que nem sequer foram feitas e isso altera seu humor.

É assim que muitas pessoas reagem a ativistas. Toda ativista é uma pessoa insuportável só por existir. Algumas são excecionalmente chatas porque seriam chatas mesmo que não fossem ativistas. E alguns assuntos são excepcionalmente chatos por si sós, independente de quem fale sobre eles, ou como fale, porque tocam num ponto sensível.

Uma das coisas que está voltando à moda graças à crescente onda conservadora é negar a importância de se fazer algo a respeito das mudanças climáticas. O consenso científico sobre o aquecimento global estava se estabelecendo significativamente desde os anos 60, e até os anos 90 não havia nenhum grande estudo negando o aquecimento global ou a influência da ação humana nele. Então, algo aconteceu:

A indústria da negação

Em 1991, a Western Fuels Association, a National Coal Association e o Edison Electric Institute criaram um grupo chamado Information Council for the Environment (Ice). Seus documentos fundadores foram vazados. O texto foi disponibilizado online pela cientista Naomi Oreskes. A estratégia foi exposta em um documento produzido pela Western Fuels Association: “reposicionar o aquecimento global como teoria (não como fato)”.

A Ice recebeu US $ 510 mil para testar suas mensagens nos principais mercados, que por acaso eram chefiados pelos membros dos comitês de energia e comércio ou de meios da Câmara dos Deputados dos EUA. O objetivo era “demonstrar que um programa midiático de conscientização do consumidor pode mudar positivamente as opiniões de uma população selecionada em relação à validade do aquecimento global”. Se funcionasse, a Ice “implementaria o programa em todo o país”.  —https://www.theguardian.com/environment/georgemonbiot/2009/dec/07/george-monbiot-blog-climate-denial-industry

Uma indústria da negação foi criada para manter os negócios num patamar seguro, ou pelo menos para atrasar as mudanças necessárias na indústria por um tempo economicamente conveniente; pois os líderes dessa campanha de desinformação sabiam desde o começo que se era só uma questão de tempo até a mentira se tornar insustentável. Entre elas estavam os mesmos advogados e relações públicas que negaram por anos, em campanhas publicitárias e jurídicas, que o cigarro estava relacionado ao câncer, mesmo conhecendo todos os estudos demonstrando o contrário. Mesmo assim, o “dissenso” causado na comunidade científica não passou de 10%, e agora está diminuindo a cada ano.

O aquecimento global toca num nervo muito profundo, porque o que está em jogo não é um prazer supérfluo, como comer carne ou beber cerveja ou fumar um cigarro… É a própria estrutura produtiva da civilização que causa o aquecimento global e que precisaria mudar radicalmente, pois praticamente tudo que produzimos hoje, da comida ao iPhone, depende de combustível fóssil e emissão de gases que alteram o clima. Em outras palavras, depende de energia barata e esgotamento de certos recursos.

Com o negacionismo convencional dos anos 90 entrando numa crise insuperável, surgem dois novos tipos de negacionismo: o eco-consumismo e o apocaliptismo. Um coloca um peso incompatível nas escolhas do consumidor, enquanto o outro pergunta “Se o mundo vai acabar, por que se importar?”.

O eco-consumismo se aproveita da culpa e do desejo por mudança para vender ilusões de consumo sustentável ou ecológico, enquanto o apocaliptismo nos conforma a um modelo econômico que valoriza o lucro imediato e não tem tempo a perder com o futuro ou com os outros. A fachada verde se tornou difícil de manter para a maioria das indústrias, mas ela nunca foi projetada para durar.

Por coincidência ou não, a mudança na indústria da energia tem muitos paralelos com o que ocorreu na indústria do tabaco: A estratégia de venda de cigarros mudou de modo semelhante à da venda de carros e produção de poluentes.

Nós temos hoje um mercado “alternativo” de tabaco, falsamente identificado como mais natural ou mesmo “ecológico”: o cigarro de palha ou artesanal, que supostamente não teria tantos produtos tóxicos quanto o cigarro convencional. Porém, o palheiro é comprovadamente tão ou mais prejudicial à saúde do que o cigarro normal: ele vicia mais e aumenta os danos colaterais do tabagismo, que estavam em queda no mundo inteiro. Hoje o mercado independente ou alternativo de cigarros artesanais é um dos que mais cresce no Brasil.

A indústria de cigarros, como a de energia, trabalha basicamente com a fina arte da negação. Mas há um outro elo nessa corrente, o extremo-conservadorismo que tem voltado à tona no mundo inteiro. Tanto Trump quanto Bolsonaro foram eleitos graças a incríveis estratégias de manipulação da informação para a negação de fatos. Eles também, não coincidentemente, são aliados ferrenhos do discurso que nega o aquecimento global.

Mas afinal, o que há de errado com um pouco mais de calor?

A maioria das pessoas está ao menos vagamente consciente que gases como dióxido de carbono e metano produzem o chamado “efeito estufa”, e que quanto mais desses gases da atmosfera, menos o calor se dissipa, e isso significa aumento da temperatura. O problema disso não se limita a gastar mais com ar condicionado ou o derretimento das calotas polares elevando o nível do mar. Um dos principais problemas é o derretimento do pergelissolo (ou permafrost). Trata-se de uma camada de solo cheia de matéria orgânica congelada que é decomposta rapidamente por bactérias e fungos quando derrete, liberando uma grande quantidade de gases do efeito estufa, o que pode iniciar uma reação em cadeia. No pergelissolo do ártico há mais do que o dobro de gases do efeito estufa do que no resto da atmosfera terrestre.

Este dado é extremamente preocupante porque significa que poderíamos estar diante de uma bomba relógio geológica que irá alterar a atmosfera do planeta de modo imprevisível e potencialmente perigoso. O derretimento do pergelissolo é uma ameaça equivalente à guerra atômica. Este assunto é tão extremo que afeta inclusive a saúde mental das pessoas afetadas e dos pesquisadores da área.

Enquanto isso, encontramos uma negação misturada com cinismo por parte de uma elite que não está preocupada com impacto de uma mudança dessas no mundo, mas sim em encontrar algum meio de sobreviver a este cenário apocalíptico custe o que custar. Aparentemente, tecnologias de sobrevivência em cenários hostis estão voltando à moda nos catálogos de compras dos 0,1% mais ricos. A cada dia, mais e mais pessoas e organizações estão se convencendo de que, sim, o colapso social a curto prazo é uma possibilidade real.

Mudanças ambientais causadas pelo homem estão ocorrendo em uma escala e ritmo sem precedentes e ameaçam corroer as condições de que a civilização humana depende para a estabilidade, de acordo com um novo relatório que pede ações urgentes para proteger esses sistemas. — https://anarchimedia.com/2019/02/14/climate-change-and-environmental-destruction-threatens-societal-collapse

Os principais debates políticos falharam em reconhecer que os impactos humanos no meio ambiente atingiram um estágio crítico, potencialmente corroendo as condições em que a estabilidade socioeconômica é possível. — https://www.ippr.org/research/publications/age-of-environmental-breakdown

O que fazer? Vamos ser propositivos

Então esta é a parte do texto que realmente importa, certo? Não faz nenhum sentido falar tudo isso sem propor alguma coisa, já que seria apenas criticar por criticar, e isso já temos demais, não é? Pois é, não. Se você pensa assim, está apenas em outro modo de negação. Pois está de certo modo dizendo que até agora o texto não disse nada de importante. Sua ansiedade por uma proposta é na verdade um sinal de que não estava realmente aberto ao que foi dito. Você ainda não ouviu. Está como que tampando os ouvidos e dizendo: “Não importa o quanto esse problema é grave, me diga uma solução!”.

Mas não é assim que funciona. Importa sim, saber o quão grave é o problema. E faz parte da única solução possível que você realmente ENTENDA o grau desse problema, e entenda que provavelmente, muito provavelmente, não há realmente NADA que possamos fazer, por agora. Mas não confunda isso com conformismo. Não se deixe levar pelo seu desespero, porém não trate esse problema como se fosse algo banal. Nossas ações tem consequências, e algumas vezes o médico não pode salvar seu paciente, mesmo que faça tudo ao seu alcance. É preciso ter maturidade para encarar que as consequências da civilização provavelmente não podem ser revertidas a curto prazo, e que o colapso a curto prazo, caso elas não sejam revertidas rapidamente, é uma possibilidade real. Ou seja, talvez não haja saída para a civilização. Mas isso não é o fim da linha.

A espécie humana quase foi extinta há cerca de 70 mil anos atrás, por conta de uma erupção vulcânica que mudou a atmosfera do planeta. Segundo estudos, a população mundial chegou a apenas 10 mil. Os seres humanos são insistentes. O ser humano persiste não por causa, mas APESAR da civilização. Talvez seja preciso mudar o foco. Talvez estejamos insistindo nas coisas erradas. Insistindo em soluções tecnológicas que prometem muito mais do que cumprem. Insistindo em proteger tesouros que talvez sejam dispensáveis, enquanto agimos de modo negligente com coisas que são indispensáveis, como a vida dos povos nativos, por exemplo. É indispensável que o modo de vida originário sobreviva. Perder isso seria um fracasso total para a humanidade. Um fracasso possivelmente sem chance de remissão.

Assim, a proposta prioritária é justamente a revisão de prioridades. O que realmente tem valor, o que realmente importa na história humana? O avanço tecno-industrial dos últimos dois séculos pode ter um peso maior do que os 200 mil anos de forrageamento? Há muitas premissas que só estamos começando a questionar agora. Afirmações insustentáveis que foram tomadas como verdade por milênios. Há uma cultura de negação do colapso desde antes da queda do primeiro império. Quanto tempo mais poderemos manter nossas ilusões de grandeza?

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