Civilização é normalização

Este texto foi produzido a partir das anotações de uma palestra. Foi escrito cerca de 2010 e revisado para esta publicação.


A civilização define o que é normal, não o que é natural. O normal despreza o natural e o natural despreza o normal.

O critério de normalidade está em grande parte relacionado à cultura escrita, que determinou o surgimento de uma classe de detentores do saber sobre como se deve viver.

Toda criança nasce natural e não se preocupa em ser normal. Em algum momento de nossa vida, já fomos seres humanos naturais. O processo de civilização provoca a degeneração da identidade humana. A possibilidade de vida natural diminui. As leis morais pretendem redefinir a vida humana em meio a uma perda de referências naturais. O normal desnaturaliza a humanidade para criar civilidade. Para voltar ao estado natural é preciso se livrar da natureza desnaturalizada, civilizada, normalizada.

Para Rousseau e Piaget, referências na área de educação, a civilização corrompe o estado de natureza do ser humano. O ideal seria voltar ao estado de natureza que caracteriza a infância. Mas assim como as leis civilizadas só podem surgir sob as condições materiais e sociais da civilização, o comportamento natural só pode surgir sob as condições naturais da humanidade. Não tendo mais essas condições, só podemos viver de forma civilizatória.

Quando o critério da civilização é internalizado, ele gera culpa pela nossa incapacidade de se adequar à norma. O impulso natural se confunde com o desejo pela transgressão da norma. Mas no natural não há transgressão da norma, porque não há norma.

No estado natural, a paz é dádiva abundante. Na civilização, a paz deve ser conquistada continuamente.

A civilização define o normal, que define a lei, que define as transgressão. A transgressão depende da lei. Sem lei não há transgressão. A lei produz repressão, supressão do desejo. A lei gerou um comportamento superficial, uma adequação ao critério civilizatório. Seguir a lei é adotar um comportamento socialmente modelado. Todo aquele que segue as leis está representando um papel inautêntico, uma vez que o ser humano não foi criado para a civilização. Ele só as segue para não ser excluído dos benefícios da civilização. Ao mesmo tempo, a civilização não foi criada para o homem natural, mas para um ideal criado por alguns homens.

A civilização criou a lei para evitar seu próprio colapso. A lei é um mal necessário dentro das condições civilizatórias, mas acabou sendo tratada como um bem. Códigos de conduta produzem culpa e medo em troca da manutenção de uma sociedade complexa.

Exigir que a lei seja cumprida é exigir um comportamento inautêntico, mas transgredir a lei é reafirmar a lei. Abandonar a lei é também eliminar a transgressão.

A civilização é a cisão entre a humanidade e a natureza. Na natureza tudo se recebe e tudo se doa. Tudo é dádiva. A dádiva está relacionada à magia, à capacidade de participar do fluxo vital da existência. O mundo se desencanta (perde a magia) quando toda ação passa a ter um fim econômico. A ação do humano civilizado não faz mais parte do mundo, o homem é visto como agente externo. O conceito de dádiva contradiz o conceito de lei, porque a dádiva não produz exigência nem é produzida por ela. Ela ocorre espontaneamente. Ela é resultado da abundância e da inesgotabilidade da natureza. Mas a dádiva é natural. Quando se torna normal, perde sua espontaneidade, se torna troca de trabalho.

A atividade agropecuária é a produtora do excesso e da escassez. O acúmulo transformou a natureza em recurso econômico, esgotável e limitado. Não há valor econômico sem esgotabilidade ou limitação de acesso. A tecnologia estabelece um modus operandi caracterizado pela cobiça: ter mais do que antes. A natureza perdeu seu valor intrínseco, se tornou matéria-prima. O conceito de valor do trabalho foi representado como tempo socialmente necessário para a produção. A ostentação de poder ou riqueza numa produção que ultrapasse as necessidades se tornou o único meio de afirmar uma espécie de abundância. A cobiça é a tentativa de preencher uma carência natural por uma via inautêntica, que é o acúmulo de bens vindos do trabalho. No estado de natureza não é possível haver cobiça. A cobiça nasce de uma economia de escassez, que depende de avanço tecnológico, que depende da normalidade da lei e da condição civilizada.

Na cobiça não é possível alcançar saciedade ou satisfação. É preciso sempre mais. A cobiça é o que nos leva a desvalorizar quem tem menos. A cobiça é produzida e exigida pela civilização. Ela é exigida para que uma pessoa possa ser considerada normal. Amar as pessoas é incompatível com a cobiça. Viver para acumular é incompatível com o amor. Quanto mais cobiça, menos amor.

Amar não é doar parte das coisas que se acumulou, não é caridade. Amar é não acumular. É doar ao invés de acumular. É ter menos coisas e mais vida. Amar é parar de competir, é lutar contra o critério civilizatório de normalidade. O amor faz o acúmulo perder o sentido. Amar é contraprodutivo e anticivilizatório.

This entry was posted in Textos and tagged , , . Bookmark the permalink.