Número: sua origem e evolução

Este ensaio foi escrito por John Zerzan em 2009 e traduzido pelo Coletivo de traduções e publicações colaborativas do grupo Anarquia Verde em 2015. Título original: Number: its origin and evolution. Trata-se de uma análise crítica do conceito de número e sua relação com o empobrecimento da linguagem no advento da cultura simbólica.


O caráter excruciante e desmoralizante da crise em que nos encontramos, e acima de tudo, o crescente vazio do espírito e a artificialidade da matéria, levam-nos a questionar as certezas mais comuns. O tempo e a linguagem começam a levantar suspeitas, e o número também não parece mais “neutro”. O brilho de alienação na civilização tecnológica é dolorosamente brilhante demais para esconder sua essência agora, e matemática é o esquema da tecnologia.

É também a linguagem da ciência – o quão profundo é preciso ir, o quão longe para trás devemos ir para revelar a “razão” pela qual a vida é danificada? O emaranhado de sofrimento desnecessário, os fios da dominação estão inevitavelmente sendo desenrolados, pela pressão de um presente implacável.

Quando nos perguntamos para que tipo de pergunta a resposta é um número, e tentamos nos concentrar sobre o significado ou as razões para o surgimento do quantitativo, estamos mais uma vez olhando para um momento decisivo na nossa alienação do ser natural.

O número, como a linguagem, está sempre dizendo o que não pode dizer. Como a raiz de um determinado tipo de lógica ou método, a matemática não é apenas uma ferramenta, mas um objetivo do conhecimento científico: ser perfeitamente exato, perfeitamente autoconsistente, e perfeitamente geral. Não importa se o mundo é inexato, inter-relacionado e específico, que ninguém jamais viu folhas, árvores, nuvens ou animais que são exatamente iguais, assim como não existem dois momentos idênticos. Como Dingle disse: “Tudo o que pode surgir da análise científica definitiva do mundo material é um conjunto de números”, refletindo sobre a primazia do conceito de identidade em matemática e sua prole, a ciência.

Um pouco mais adiante, vou tentar uma “antropologia” dos números e explorar o seu enraizamento social. Horkheimer e Adorno apontam para a base da doença: “Mesmo a forma dedutiva da ciência reflete hierarquia e coerção… Toda ordem lógica, dependência, progressão e união dos [seus] conceitos é fundamentada nas condições correspondentes da realidade social; que é a divisão do trabalho”.

Se a realidade matemática é a estrutura puramente formal da medida normativa ou da padronização (e, mais tarde, da ciência), a primeira coisa a ser medida foi o tempo. A ligação primordial entre o tempo e o número se torna imediatamente evidente. A autoridade, objetivada primeiro como tempo, torna-se endurecida pela consciência gradualmente matematizada de tempo. Colocando um pouco diferente, o tempo é uma medida e existe como uma reificação ou materialidade graças à introdução da medida.

A importância da simbolização também deve ser notada, de passagem, pois uma inter-relação para além consiste no fato de que enquanto a função básica de todas as medições é a representação simbólica, a criação de um mundo simbólico é a condição de existência do tempo.

Perceber que a representação começa com a linguagem e é atualizada na criação de uma estrutura formal reprodutível já é apreender o empate fundamental entre linguagem e número. Um presente empobrecido torna fácil de ver que, assim como a linguagem se torna mais pobre, a matemática é simplesmente a mais reduzida e drenada das linguagens. O passo final na formalização de uma língua é transformá-la em matemática; inversamente, quanto mais próxima fica a linguagem das densas concreções da realidade, menos abstrata e exata ela pode ser.

A simbolização da vida e do significado é mais versátil na linguagem, o que, segundo Wittgenstein, praticamente constitui o mundo. Além disso, a linguagem, baseada na faculdade simbólica para equivalências convencionais e arbitrárias, encontra no simbolismo da matemática seu maior requinte. A matemática, conforme avaliada por Max Black, é a “gramática de todos os sistemas simbólicos”.

A finalidade do aspecto matemático da linguagem e do conceito é o isolamento mais completo entre o conceito e os sentidos. A matemática é o paradigma do pensamento abstrato pela mesma razão que Levy chamou a matemática pura de “o método de isolamento elevado a uma arte”. Estão estreitamente relacionadas com seu caráter de “enorme generalidade”, como discutido por Parsons, e sua recusa de limitações sobre tal generalidade, tal como formulado por Whitehead.

Este processo de abstração e seus resultados formais e gerais fornecem um conteúdo que parece estar completamente separado do indivíduo pensante; um usuário de um sistema matemático e seus valores não entram no sistema. A ideia hegeliana da autonomia da atividade alienada encontra uma aplicação perfeita com a matemática; ela tem suas próprias leis de crescimento, sua própria dialética, e está sobre o indivíduo como um poder separado. O tempo auto-existente e o primeiro distanciamento entre humanidade e natureza, deve ser adicionado preliminarmente, começaram a surgir quando começamos a contar. A dominação da natureza e, em seguida, de seres humanos é, assim, habilitada.

Na abstração, a verdade da conclusão de Heyting é que “a característica do pensamento matemático é que ele não transmite a verdade sobre o mundo exterior”. Sua atitude essencial em relação a todo o movimento colorido da vida é resumida por “Coloque isso e aquilo igual a aquilo e isso!”. Abstração e equivalência de identidade são inseparáveis; a supressão da riqueza do mundo, que é fundamental na identidade, trouxe Adorno para o “mundo primordial da ideologia”. A inverdade da identidade é simplesmente que o conceito não esgota a coisa concebida.

A matemática é o pensamento reificado, ritualizado, o virtual abandono do pensamento. Foucault descobriu que “no primeiro gesto do primeiro matemático se viu a constituição de uma idealidade que foi implantada ao longo da história e que foi questionada apenas para ser repetida e purificada”.

O número é a ideia mais importante na história da natureza humana. Numerar ou contar (e a medição, o processo de atribuição de números para representar qualidades) gradualmente consolidou a pluralidade em quantificação, e, assim, produziu o caráter homogêneo e abstrato do número, o que tornou a matemática possível. De sua inserção em formas elementares de contagem (começando com uma divisão binária e prosseguindo para o uso dos dedos das mãos e pés como base) até a idealização grega de número, um tipo cada vez mais abstrato de pensamento se desenvolveu, em paralelo com o amadurecimento do conceito de tempo. Como William James colocou, “a vida intelectual do homem consiste quase totalmente na sua substituição de uma ordem conceptual por uma ordem perceptual da qual sua experiência originalmente provém”.

Boas concluiu que “a contagem não se torna necessária até os objetos serem considerados de tal forma generalizada que suas individualidades estão totalmente fora de vista”. No crescimento da civilização nós aprendemos a usar sinais cada vez mais abstratos para apontar referentes cada vez mais abstratos. Por outro lado, as línguas pré-históricas tinham uma infinidade de termos para o que pode ser tocado e sentido, enquanto que muitas vezes não tinham palavras para números além de um, dois e muitos. A humanidade caçador-coletora tinha pouca ou nenhuma necessidade de números, e por isso Hallpike declarou que “não podemos esperar descobrir que uma compreensão operacional da quantificação será uma norma cultural em muitas sociedades primitivas”. Muito antes, e mais cruamente, Allier referiu-se à “repugnância sentida por homens não civilizados no sentido de qualquer esforço intelectual genuíno, mais particularmente em relação à aritmética”.

Na verdade, no longo caminho para a abstração, desde um senso intuitivo de valor até o uso de diferentes conjuntos de numerais para contar diferentes tipos de coisas, juntamente com o número totalmente abstrato, havia uma imensa resistência, como se a objetificação envolvida fosse de alguma forma vista como o que era. Isto parece menos implausível à luz da impressionante e unitária beleza das ferramentas dos nossos antepassados há meio milhão de anos atrás, onde o toque artístico e técnico (por falta de palavra melhor) imediato é tão evidente, e por “estudos recentes que demonstraram a existência, há cerca de 300.000 anos atrás, de uma habilidade mental equivalente ao do homem moderno”, nas palavras do arqueólogo britânico Clive Gamble.

Com base em observações de povos tribais sobreviventes, é evidente, para fornecer outro caso em questão, que os caçadores-coletores possuíam uma compreensão enorme e íntima da natureza e da ecologia de seus locais, o suficiente para ter inaugurado a agricultura talvez centenas de milhares de anos antes da revolução neolítica. Mas um novo tipo de relação com a natureza estava envolvida; um que era, evidentemente, recusado por tantas e tantas gerações.

Para nós pareceu uma grande vantagem nos abstrair da relação natural das coisas, que na grande Idade da Pedra foi apreendida e valorizada como um todo, não em termos de atributos separáveis. Hoje, como sempre, quando uma grande família se senta para jantar e percebe-se que alguém está faltando, isso não é realizado por meio de contagem. Ou quando uma cabana era construída em tempos pré-históricos, o número de postes necessários não era especificado ou contado, mas era inerente à ideia de cabana, intrinsecamente envolvido nela. (Mesmo na agricultura precoce, a perda de um animal de rebanho poderia ser detectada não através da contagem, mas pela falta de um rosto ou características particulares. Parece claro, no entanto, como Bryan Morgan argumenta, que “o primeiro uso humano de um sistema numérico” foi certamente como controle de animais de rebanho domesticados, enquanto criaturas selvagens tornaram-se produtos a ser explorados). No distanciamento e na separação reside o cerne da matemática: a redução discursiva de padrões, estados e relações que nós inicialmente percebíamos como totalidades.

No nascimento dos controles destinados a controlar o que é livre e desordenado, cristalizados pela primeira contagem, vemos uma nova atitude para com o mundo. Se a nomeação é um distanciamento, um domínio, assim também é o número, que é uma nomeação empobrecida. Apesar de a numeração ser um corolário da linguagem, é a assinatura de um avanço crítico da alienação. Os significados profundos do número são instrutivos: “Fácil de aprender ou pegar” e “para pegar, especialmente para roubar”, e também “tomado, apreendido, consequentemente… dormente”. O que é feito um objeto de dominação é, assim, reificado, torna-se dormente.

Por centenas de milhares de anos os caçadores-coletores desfrutaram de um acesso direto e desobstruído às matérias-primas necessárias para a sobrevivência. O trabalho não foi dividido nem a propriedade privada existia. Dorothy Lee focou-se num exemplo sobrevivente da Oceania, descobrindo que nenhuma das atividades dos trobriandeses está encaixada num padrão linear, numa linha divisível. “Não há nenhum emprego, nenhum labor, nenhum trabalho penoso que encontra a sua recompensa fora do ato”. Igualmente importante é a “prodigalidade”, “os costumes liberais pelos quais os caçadores são devidamente famosos”, “sua inclinação para fazer uma festa de tudo que têm em mãos”, de acordo com Sahlins.

Partilhar e contar ou trocar são, naturalmente, opostos relativos. Onde artigos são feitos, animais são mortos ou plantas são coletadas para uso doméstico e não para a troca, não há demanda para números ou medidas padronizadas. A medição e pesagem de posses se desenvolvem mais tarde, juntamente com a medição e definição de direitos de propriedade e deveres para com a autoridade. Isaac localiza uma mudança decisiva em direção à padronização de ferramentas e linguagens no período do paleolítico superior, a última etapa da humanidade caçador-coletora. Números e unidades menos abstratas de medida derivam, como mencionado acima, da equalização de diferenças. A troca mais precoce, que é o mesmo que a divisão de trabalho mais precoce, era indeterminada e desafiava a sistematização. Uma tabela de equivalências não poderia realmente ser formulada. À medida que a predominância da dádiva abriu caminho para o progresso da troca e da divisão do trabalho, a permutabilidade universal da matemática encontra sua expressão concreta. O que vem a ser fixado como um princípio da igualdade de justiça – a ideologia da troca equivalente – é apenas a prática da dominação da divisão de trabalho. A falta de uma existência diretamente vivida e a perda de autonomia que acompanha a separação da natureza é concomitante ao poder efetivo dos especialistas.

Mauss afirmou que a troca só pode ser definida por todas as instituições da sociedade. Décadas mais tarde Belshaw abordou a divisão do trabalho não apenas como um segmento da sociedade, mas como a totalidade dela. Igualmente arrebatadora, porém realista, é a conclusão de que um mundo sem troca ou esforço fragmentado seria um mundo sem número.

Clastres, assim como Childe e outros bem antes dele, percebeu que a capacidade das pessoas para produzir um excedente, a base da troca, não significa necessariamente que eles tenham decidido fazê-lo. À respeito da visão de que apenas a deficiência mental/cultural poderia explicar a ausência de excedente, “nada é mais errado”, julga Clastres. Para Sahlins, a “economia da Idade da Pedra” era “intrinsecamente um sistema anti-excedente”, usando o termo sistema de forma extremamente frouxa. Por longas eras os seres humanos não tinha nenhum desejo de se engajar em uma vida dividida com compensações duvidosas, assim como eles não tinham interesse por números. Aparentemente, o acúmulo de excedentes sobre tudo é algo desconhecido antes do tempo do Neanderthal até o do Cro-Magnon; contratos comerciais extensivos eram inexistentes no período anterior, tornando-se comum depois na sociedade Cro-Magnon.

O excedente foi totalmente desenvolvido somente com a agricultura. Caracteristicamente, o principal avanço técnico da vida Neolítica era a perfeição dos recipientes: frascos, caixas, celeiros e similares. Esta evolução também dá forma concreta a uma tendência crescente em direção a espacialização, a sublimação de uma dimensão cada vez mais autônoma do tempo em formas espaciais. A abstração, talvez a primeira espacialização, foi a primeira compensação pela privação causada pelo senso de tempo. A espacialização foi fortemente refinada pelos números e pela geometria. Ricoeur observa que o “Infinito é descoberto… sob a forma da idealização de magnitudes, de medidas, de números, figuras”, para levar isso ainda mais adiante. Esta busca da espacialidade irrestrita é parte integrante da marcha abstrata da matemática. Assim, então, é o sentimento de ser libertado do mundo, da finitude com que Hannah Arendt descreve a matemática.

Princípios matemáticos e os seus números e figuras componentes parecem exemplificar uma atemporalidade que é, possivelmente, o seu caráter mais profundo. Hermann Weyl, na tentativa de resumir a “soma da vida da matemática”, a denominou como a ciência do infinito. Qual a melhor maneira de expressar uma fuga de um tempo reificado do que o tornando ilimitadamente subserviente ao espaço – na forma da matemática.

Especialização – como a matemática – depende de separação; a divisão e uma organização dessa divisão são inerentes à ela. A divisão do tempo em partes (que parece ter sido a primeira contagem ou medição) é em si espacial. O tempo sempre foi medido em termos tais como o movimento da Terra ou lua, ou os ponteiros de um relógio. Os primeiros indícios de tempo não eram numéricos, mas sim concretos, assim como todas as primeiras contagens. No entanto, como sabemos; um sistema numérico traçando um paralelo com o tempo torna-se um princípio invariável e separado. As separações na vida social – mais fundamentalmente a divisão do trabalho – parecem ser capazes de explicar sozinhas o crescimento de conceituações alienadas.

Na verdade, duas invenções matemáticas críticas, o zero e o sistema posicional, podem servir de evidencia cultural de divisão do trabalho. O zero e o sistema posicional surgiram de forma independente, “contra considerável resistência psicológica”, nas civilizações maias e hindus. A divisão do trabalho maia, acompanhado de enorme estratificação social (para não mencionar uma obsessão notória pelo tempo e sacrifícios humanos em grande escala nas mãos de uma poderosa classe sacerdotal), é um fato vividamente documentado, enquanto a divisão do trabalho reflete-se no sistema de castas indiano que era “o mais complexo que o mundo tinha visto antes da Revolução industrial.” (Coon, 1954)

A necessidade do trabalho (Marx) e a necessidade de repressão (Freud) apontam para a mesma coisa: a civilização. Esses falsos mandamentos afastaram a humanidade da natureza e conta para a história como uma “crônica de neurose em constante expansão.” (Turner, 1980) Freud credita à realização científica/matemática como o ponto mais alto da civilização, e isso parece válido como uma função de sua natureza simbólica. “O processo neurótico é o preço que pagamos por nossa herança humana mais preciosa, ou seja, nossa capacidade de representar a experiência e comunicar nossos pensamentos por meio de símbolos.”

A tríade simbolização, trabalho e repressão encontra o seu princípio de funcionamento na divisão do trabalho. É por isso que pouco progresso foi feito na aceitação de valores numéricos até que o enorme aumento na divisão do trabalho da revolução neolítica: a partir da coleta de alimentos para a sua produção real. Com essa maciça transição a matemática tornou-se plenamente fundamentada e necessária. Na verdade, tornou-se mais uma categoria da existência do que uma mera instrumentalidade.

No quinto século a.C. o historiador Heródoto atribuiu a origem da matemática para o rei egípcio Sesostris (1300 a.C.) que precisava medir terras para fins fiscais. A matemática sistematizada – neste caso a geometria, que significa literalmente “medição da terra” – surgiu de fato das exigências da economia política, ainda que antecedesse Sesostris no Egito por talvez mil anos. O excedente de alimentos da civilização neolítica tornou possível o surgimento de classes especializadas de sacerdotes e administradores que em cerca de 3200 a.C. tinham produzido o alfabeto, a matemática, a escrita e o calendário. Na Suméria os primeiros cálculos matemáticos apareceram, entre 3500 e 3000 a.C., na forma de estoques, ações de venda, contratos e preços unitários, unidades adquiridas, pagamentos de juros, etc… Como Bernal ressalta, “a matemática, ou pelo menos a aritmética, surgiu antes mesmo da escrita.” Os símbolos de números são provavelmente mais velhos do que quaisquer outros elementos das mais antigas formas de escrita.

A essa altura a dominação da natureza e a humanidade eram sinalizadas não só pela matemática e escrita, mas também por cidades muradas e com estoques de grãos, juntamente com a guerra e a escravidão humana. O “trabalho social” (divisão do trabalho), a coordenação coercitiva de vários trabalhadores de uma só vez, é frustrada pelas antigas medidas, que eram pessoais; comprimentos, pesos e volumes devem ser normalizados. Nesta padronização, uma das marcas da civilização, a exatidão matemática e a habilidade especializada andam de mãos dadas. Matemática e especialização, exigindo um ao outro, desenvolveram em ritmo acelerado e a matemática tornou-se uma especialidade. As grandes rotas comerciais, expressando o triunfo da divisão do trabalho, difundem as novas técnicas sofisticadas de contagem, medição e cálculo.

Na Babilônia, comerciantes-matemáticos inventaram uma aritmética global entre 3000 e 2500 a.C., tal sistema “foi totalmente articulado como uma ciência computacional abstrata por volta de 2000 a.C.” (Brainerd, 1979) Nos séculos seguintes os babilônios até inventaram uma álgebra simbólica, embora a matemática babilônica-egípcia seja geralmente considerada como extremamente empírica, ou de “tentativa-e-erro”, em comparação com a dos gregos muito mais tarde.

Para os egípcios e babilônios figuras matemáticas têm referentes concretos: a álgebra ajudou as transações comerciais, um retângulo era um pedaço de terra de uma forma particular. Os gregos, no entanto, foram explícitos ao afirmar que lidavam com abstrações da geometria, e esta evolução reflete uma forma extrema de divisão do trabalho e estratificação social. Ao contrário da sociedade egípcia ou babilônica, na Grécia, uma classe de escravos grande realizava todo o trabalho produtivo, técnico e não qualificado, de modo que a classe dominante, que incluía matemáticos, desdenhou buscas ou aplicações práticas.

Pitágoras, mais ou menos o fundador da matemática grega (século seis a.C.), expressou esta inclinação rarefeita, abstrata, em termos inequívocos. Para ele, os números eram imutáveis e eternos. Antecipando diretamente o idealismo platônico, ele declarou que os números eram a chave inteligível para o universo. Normalmente encapsulada pelo “tudo é número”, a filosofia de Pitágoras declarou que os números existem em um sentido literal e são, literalmente, tudo o que existe.

Esta forma de filosofia matemática, com a sua busca extrema por harmonia e ordem, pode ser visto como um profundo medo da contradição ou do caos, um reconhecimento oblíquo da repressão maciça e, talvez, instável, subjacente à sociedade grega. Uma vida intelectual artificial que descansava tão completamente sobre o excedente criado por escravos teve o cuidado de negar os sentidos, as emoções e o mundo real. A escultura grega é outro exemplo, nas suas conformações abstratas, ideológicas, desprovidas de sentimento ou de suas histórias. Suas figuras são idealizações padronizadas; o paralelo com um culto altamente exagerado à matemática é evidente.

A existência independente de ideias, que é a premissa fundamental de Platão, é diretamente derivada de Pitágoras, assim como toda a sua teoria das ideias flui do caráter especial da matemática. A geometria é propriamente um exercício de inteligência desencarnada, pensava Platão, de acordo com sua visão de que a realidade é um mundo de forma do qual a matéria, em todos os aspectos importantes, é banida. O idealismo filosófico foi assim estabelecido a partir deste empobrecimento que nega o mundo, baseado no primado do pensamento quantitativo. Como C.I. Lewis observou, “desde Platão até os dias atuais, todas as principais teorias epistemológicas foram dominadas pelas, ou formulado à luz das concepções de matemática que as acompanha”.

Não foi acidentalmente que Platão escreveu: “Deixe apenas geômetras entrar”, através da porta de sua Academia, já que a sua República totalitária insiste que os anos de formação matemática são necessários para abordar corretamente as questões políticas e éticas mais importantes. Consistentemente, ele negou que uma sociedade sem Estado tenha algum dia existido, identificando tal conceito com o de um “estado de suínos”.

Sistematizada por Euclides, no século III a.C., cerca de um século depois de Platão, a matemática atingiu um apogeu que não foi igualado por quase dois milênios; o santo padroeiro do intelecto para as sociedades escravistas e feudais que se seguiram não foi Platão, mas Aristóteles, que criticou a antiga redução de Pitágoras da ciência à matemática.

O longo não desenvolvimento da matemática, que durou praticamente até o final do Renascimento, permanece um mistério. Mas o crescimento do comércio começou a reviver a arte do quantitativo pelos séculos XII e XIII. A ordem impessoal da casa de contagem no novo capitalismo mercantil exemplificava uma concentração renovada na medição abstrata. Mumford sublinha que a matemática foi pré-requisito para a posterior mecanização e normalização; no mundo mercantil em ascensão “a contagem de números começava aqui e no final os números contavam-se por si mesmos.” (Mumford, 1967)

Mas a convicção da Renascença de que a matemática deve ser aplicável a todas as artes (para não mencionar precursores anteriores e atípicos como a contribuição de Roger Bacon no século XIII em direção a uma ótica estritamente matemática), foi um prelúdio suave para a magnitude do triunfo de número no século XVII.

Embora eles tenham sido logo eclipsados por outros avanços de 1600, Johannes Kepler e Francis Bacon revelaram seus dois aspectos mais importantes e intimamente relacionados no início do século. Kepler, que completou a transição de Copérnico para o modelo heliocêntrico, viu o mundo real como composto apenas por diferenças quantitativas; suas diferenças são estritamente de número. Bacon, no The New Atlantis (c.1620) representou uma comunidade científica idealizada, a qual o objeto principal era a dominação da natureza; como Jaspers colocou, “O domínio da natureza… ‘conhecimento é poder’, tem sido a palavra de ordem desde Bacon.”

O século de Galileu e Descartes – preeminente entre aqueles que aprofundam todas as formas anteriores de alienação quantitativa e, portanto, esboçam um futuro tecnológico – começou com um salto qualitativo na divisão do trabalho. Franz Borkenau forneceu a chave de por que uma profunda mudança na visão de mundo ocidental teve lugar no século XVII: um movimento rumo a uma perspectiva fundamentalmente matemática-mecanicista. De acordo com Borkenau, uma grande extensão da divisão do trabalho, ocorrendo em meados de 1600, introduziu o novo conceito de trabalho abstrato. Esta reificação da atividade humana provou ser crucial.

Junto com a degradação do trabalho, o relógio é a base da vida moderna. Igualmente “científico” em sua redução da vida a uma mensurabilidade, via unidades mercantilizadas de tempo. O relógio cada vez mais preciso e onipresente atingiu uma dominação real no século XVII, quando, correspondentemente, “os grandes nomes das novas ciências manifestaram um interesse ávido sobre a relojoaria”.

Então, é apropriado introduzir o Galileu em termos desse forte interesse de medir o tempo; a sua invenção do primeiro relógio mecânico baseado no princípio do pendulo foi inclusive um marco apropriado em sua longa carreira. Como um tempo cada vez mais objetificado e concreto reflete, talvez em um nível mais profundo, um mundo cada vez mais alienado, o objetivo principal do Galileu era reduzir o mundo a um objeto a ser dissecado matematicamente.

Escrevendo alguns anos antes da Segunda Guerra Mundial e Auscheitz, Husserl localizou as raízes da crise contemporânea nessa redução e objetificação, identificando Galileu como seu principal progenitor. O mundo vivo foi “desvalorizado” pela ciência precisamente na medida em que a “matematização da natureza” iniciada por Galileu procedeu – claramente uma acusação forte (Husserl, 1970).

Para Galileu, assim como para Kepler, matemática era a “gramática raiz de todo o novo discurso filosófico que constituía o método científico moderno”. Ele anunciou o princípio “para medir o que é imensurável e para representar o que ainda não é”. Dessa forma, ele ressuscitou a substituição pitagoreana-platônica do mundo real por um mundo de relações matemáticas abstratas e também a afirmação de seu método de renúncia absoluta aos sentidos de conhecer a realidade. Observando essa mudança da qualidade para a quantidade, esse salto no mundo etéreo das abstrações, Husserl concluiu que a ciência matemática moderna nos previne de conhecer a vida como ela é. E a ascensão da ciência alimentou uma forma de conhecimento cada vez mais especializada, essa progressão atordoante e aprisionadora que nós conhecemos tão bem hoje em dia.

Collingwood chamou Galileu de “o verdadeiro pai da ciência moderna” pelo sucesso de seu ditado que o livro da natureza é “escrito em linguagem matemática” e de sua conclusão que “a matemática é a língua da ciência”. Devido a essa separação da natureza, concluiu Gillipsie, “Depois de Galileu, a ciência não pode mais ser humana”.

Parece apropriado afirmar que o matemático que sintetizou a geometria e a álgebra para formar uma geometria analítica (1637) e que, junto com Pascal, é creditado com a invenção do cálculo, teria moldado o matematismo galileano em um novo sistema de pensamento. A tese de que o mundo é organizado de forma que há uma ruptura completa entre as pessoas e o mundo natural, vista como uma visão de mundo total e triunfante, é a base para o renome de Descartes como o fundador da filosofia moderna. A fundação desse novo sistema, a famosa “cogito ergo sum” (penso logo existo), é a atribuição da certeza científica á certeza da separação entre o homem e o resto da realidade.

Esse dualismo providenciou uma forma alienada de enxergar apenas uma natureza completamente objetificada. Em seu “Discurso do Método”, Descartes declarou que o objetivo da ciência é “nos tornar os mestres e possuidores da natureza”. Apesar de ser um cristão devoto, Descartes renovou o distanciamento da vida que um deus já evanescente não podia mais legitimar efetivamente. Enquanto o cristianismo enfraquecia, uma nova ideologia central de alienação surgiu, garantindo ordem e dominação baseadas na precisão matemática.

Para Descartes, o universo material era uma máquina e nada mais, da mesma maneira que animais eram apenas “nada mais do que mecanismos, ou matéria em um modo de movimento continuo e ordenado”. Ele via o próprio cosmos como um mecanismo gigante, ao mesmo tempo em que a ilusão de que o tempo é um processo separado e autônomo ganhava influência também. Enquanto a natureza viva e animada morria, dinheiro inanimado passou a ganhar vida como capital; e o mercado assumiu atributos de processos e ciclos orgânicos. Finalmente, a visão matemática de Descartes eliminou os elementos caóticos, bagunçados ou vivos e colocou em seu lugar uma visão mecânica que coincidia com a tendência de favorecer controles governamentais centralizados e a concentração de poder na forma do estado-nação moderno. “A racionalização da administração e da ordem natural estavam ocorrendo simultaneamente”, nas palavras de Merchant. A ordem total da matemática e de sua filosofia mecânica se provou irresistível; no tempo da morte de Descartes em 1650 ela já havia se tornado o parâmetro oficial de pensamento da Europa.

Leibniz, um quase contemporâneo, refinou e estendeu o mundo de Descartes; a “harmonia pré-estabelecida” que ele viu na existência é também de linhagem pitagórica. Essa harmonia matemática, que Leibniz ilustrou fazendo referência a dois relógios independentes, lembra seu ditado: “Não há nada que foge dos números”. Leibniz, como Galileu e Descartes, era profundamente interessado no design dos relógios.

Na aritmética binária que ele idealizou, uma imagem da criação foi evocada; ele imaginou que o um representa deus e o zero o nada, e que a unidade e o zero expressam todos os números e toda a criação. Ele procurava mecanizar através do cálculo formal um projeto que ele impulsivamente esperava que se concretizasse em cinco anos. Esse projeto deveria providenciar todas as respostas, inclusive para as questões da moralidade e da metafísica. Apesar de esse esforço ter fracassado, Leibniz for talvez a primeira base para uma teoria de matemática baseada no fato de que ela seria uma linguagem simbólica universal; ele estava certo de que “o primeiro pensador moderno a ter obtido alguma compreensão sobre o verdadeiro caráter do simbolismo matemático”.

O monarquista Hobbes levou adiante o modelo quantitativo, que reduzia a alma humana, o arbítrio, o cérebro e os apetites a matéria em movimento mecânico, contribuindo diretamente para a concepção de pensar no “output” do cérebro como um computador.

A objetificação completa do tempo, tão presente entre nós hoje, foi atingida por Isaac Newton, que mapeava o funcionamento do universo mecânico galileano-cartesiano. Produto da visão severamente repressiva e puritana, que se focava em sublimar a energia sexual e transformá-la em trabalho bruto, Newton falava do tempo absoluto, “fluindo uniformemente indiferente a qualquer coisa externa”. Nascido em 1642, no ano da morte de Galileu, Newton marcou a revolução científica do século 17 ao desenvolver uma formulação matemática completa da natureza como uma máquina perfeita, um relógio perfeito.

Whitehead acreditava que “a história do século XVII parece um sonho vívido de Platão e Pitágoras”, percebendo o seu modo incrivelmente refinado de pensamento quantitativo. Novamente, a correspondência com um salto na divisão de trabalho é algo que vale apontar; como Hill descreveu no meio da Inglaterra do século XVII “uma especialização significativa começou a se assentar. Os últimos eruditos estavam morrendo”. As músicas e dances dos camponeses morreram lentamente, e as terras comunitárias foram fechadas e divididas em uma matematização liberal.

O conhecimento da natureza era uma parte da filosofia até esse tempo; os dois seguiram caminhos diferentes depois que o conceito do domínio sobre a natureza chegou a sua forma moderna. O número, que surgiu primeiro como dissociação do mundo natural, terminou descrevendo-o e dominando-o.

O Prefácio sobre a Utilidade da Matemática e da Física de Fontenelle (1702) celebrava a centralidade da quantificação de um espectro inteiro de sensibilidades humanas, contribuindo para a consolidação das descobertas da era passada no século XVIII. E enquanto descartes afirmava que animais não podem sentir dor porque eles não tem alma, e que o homem não é exatamente uma máquina por ter alma, LeMetrie transformou o homem em um ser completamente mecânico em seu L’Homme Machine.

As grandes conquistas de Bach na primeira metade do século XVIII também esclarecem o espírito da matemática que surgiu um século antes e ajudou a moldar a cultura a esse espírito. Em referência a música relativamente abstrata de Bach, pode ser dito que ele “falava matematicamente com deus” (LeShan & Morgenau, 1982). Nesses tempos, a voz individual perdeu a sua independência e tom e não era mais entendida como uma canção, e sim como uma concepção mecânica. Bach, tratando a música como uma forma de matemática, moveu-a para fora do palco da polifonia vocal para aquele da harmonia instrumental, baseada sempre sob uma única voz autônoma fixada por instrumento, ao invés relativamente variada com vozes humanas.

Mais tarde nesse século, Kant disse que em qualquer teoria particular só há ciência na medida em que há matemática, e dedicou uma parte considerável da sua Critica a Pura Razão para uma análise dos princípios fundamentais da geometria e aritmética.

Descartes e Leibnitz buscavam estabelecer um método matemático e científico como uma forma paradigmática de conhecimento, e viram a possibilidade de uma única linguagem universal baseada em símbolos empíricos que poderiam conter toda a filosofia. Os pensadores ingleses Iluministas do século XVIII trabalharam mais tarde em concretizar esse projeto. Condillac, Rousseau e outros também foram caracteristicamente preocupados com as suas origens – como também com a origem da linguagem; o objetivo deles de compreender o entendimento humano ao levar a linguagem até a sua suprema e matematizada forma simbólica os tornaram incapazes de ver que a origem de todo o simbolismo é a alienação.

Terras aradas simetricamente são quase tão antigas quanto a própria agricultura, um meio de impor a ordem em um mundo outrora irregular. Mas como a paisagem de cultivo passou a se distinguir por formas lineares de uma crescente regularidade matemática – incluindo a popularidade de jardins comuns – outra marca do século XVIII pode ser analisada.

No início dos anos 1800, no entanto, os poetas românticos e artistas, entre outros, protestaram contra a nova visão da natureza como uma máquina. Blake, Goethe e John Constable, por exemplo, acusaram a ciência de transformar o mundo em um relógio, com a Revolução Industrial fornecendo ampla evidência do seu poder de violar a vida orgânica.

O degradante trabalho dos trabalhadores têxteis, que provocou furiosas revoltas dos luditas ingleses durante a segunda década do século XIX, foi ilustrado por produtos automatizados e barateados como os produzidos pelo tear Jacquard. Este aparelho francês não só representou a mecanização da vida e do trabalho desencadeados pelas mudanças no século XVII, como também inspirou diretamente as primeiras tentativas de desenvolver o computador moderno. Os desenhos de Charles Babbage, ao contrário das “máquinas lógicas” de Leibniz e Descartes, envolviam tanto memória quanto unidades de cálculo sob o controle dos programas por meio de cartões perfurados. Podemos dizer que os objetivos do matemático Babbage e do inventor-industrial J.M. Jacquard baseiam-se na mesma redução racionalista da atividade humana à máquina como a que, em seguida, começou  a crescer com o industrialismo. Digna de nota foi a ênfase do trabalho matemático de Babbage na necessidade de uma melhor notação para promover os processos de simbolização, seu Princípios de Economia contribuiu para as fundações da administração moderna – e sua fama contemporânea contra as “nuances” de Londres, como os músicos de rua!

Em paralelo à destruição generalizada do capitalismo industrial e a divisão extremamente acelerada de trabalho que ele trouxe consigo há um avanço significativo no desenvolvimento matemático. De acordo com Whitehead, “Durante o século XIX, os matemática pura fez quase tanto progresso quanto durante os séculos precedentes de Pitágoras em diante”.

As geometrias não euclidianas de Bolyai, Lobachevski, Riemann e Klein devem ser mencionadas, assim como a álgebra moderna de Boole, esta geralmente considerada como a base da lógica simbólica. A álgebra booleana possibilitou um novo nível de pensamento formalizado, como seu fundador ponderou “a mente humana… é um instrumento de conquista e domínio sobre os poderes da natureza circundante” (Boole, 1952), em um espelhamento do capitalismo dominantemente matematizado crescente na metade dos 1800. Embora o especialista raramente seja criticado pela cultura dominante pela sua criatividade “pura”, Adorno observou habilmente que “a inconsciência resoluta dos matemáticos atesta a ligação entre divisão do trabalho e ‘pureza’“.

Se a matemática é uma linguagem empobrecida, ela também pode ser vista como a forma madura da coerção estéril conhecida como lógica formal. Bertrand Russell, de fato, determinou que a matemática e a lógica se tornasse um. Descartando a não confiável linguagem cotidiana, Russell, Frege e outros acreditavam que no avanço da degradação e redução da linguagem residia a verdadeira esperança para o “progresso da filosofia”.

O objetivo de estabelecer a lógica por meios matemáticos esteve relacionado a um esforço ainda mais ambicioso até ao final do século XIX, o de estabelecer os fundamentos da própria matemática. Com o capitalismo havia começando a redefinir a realidade à sua própria imagem e desejando assegurar seus fundamentos, o estágio “lógico” da matemática no final do século XIX e início do século XX, cheios de novos triunfos, realizou a mesma procura. A teoria do formalismo de David Hilberts, uma tentativa de banir a contradição ou o erro, explicitamente destinava salvaguardar “o estado de poder da matemática por todo o tempo, de todas as rebeliões”.

Enquanto isso, o número parecia estar indo muito bem sem os fundamentos filosóficos. O pronunciamento de Lord Kelvin no final do século XIX de que nós realmente não sabemos nada a não ser que possamos medir por meio de uma medida dotada de confiança elevada, assim como a Administração Científica de Frederick Taylor se tratava de levar a quantificação da gestão industrial no sentido de subjugar o indivíduo à Categorias newtonianas de tempo e espaço – categorias sem vida.

À respeito disso, Capra afirmou que as teorias da relatividade e da física quântica, desenvolvidas entre 1905 e final de 1920, “quebraram todos os principais conceitos da visão de mundo cartesiana e da mecânica newtoniana”. Mas a teoria da relatividade é sem dúvida um formulismo matemático, e Einstein buscou um campo teórico unificado por uma física geometrizante de tal forma que o sucesso teria lhe permitiu ter dito, como Descartes, que toda a sua física era nada mais do que a geometria. Essa medição de tempo e espaço (ou “espaço-tempo”) é uma questão relativa da qual dificilmente seja possível remover de seu núcleo a medição como elemento principal. O cerne da teoria quântica, certamente, é o Princípio da Incerteza de Heisenberg, que não se desfaz da quantificação, mas exprime as limitações da física clássica em formas matemáticas sofisticadas. Assim como Gillespie sucintamente havia apontado, a teoria física cartesiana-newtoniana “era uma aplicação da geometria euclidiana ao espaço, a relatividade geral era uma espacialização da geometria curvilínea de Riemann e a mecânica quântica era uma naturalização da probabilidade estatística.” Mais sucintamente ainda: “A natureza, antes e depois da teoria quântica, é o que está para ser compreendida matematicamente”.

Durante as três primeiras décadas do século XX, as grandes tentativas de Russell e Whitehead, Hilbert, et al., de fornecer uma base completamente não-problemática para toda a edificação da matemática acima referida avançou com um otimismo considerável. Mas, em 1931, Kurt Godel frustrou essas entusiasmantes esperanças com seu Teorema da Incompletude, que demonstrou que qualquer sistema simbólico pode ser completo ou totalmente consistente, mas não ambos. A devastadora prova matemática de Godel disto não só mostrou os limites de sistemas axiomáticos numéricos, como também o encerramento da natureza por meio de qualquer linguagem fechado e consistente. Se houver teoremas ou afirmações dentro de um sistema de pensamento que não podem ser provadas nem refutadas internamente, se for impossível dar uma prova de consistência dentro da linguagem utilizada, como Godel e sucessores como Tarski e Church argumentaram de forma convincente, “qualquer sistema de conhecimento sobre o mundo é, e deve permanecer, fundamentalmente incompletos, eternamente sujeitos à revisão” (Rucker, 1982).

Morris Kline aponta em sua obra Matemática: a Perda de Certeza relacionada às “calamidades” que se abateram sobre a outrora aparentemente inviolável “majestade da matemática”, deve principalmente à Godel. A matemática, como a linguagem, utilizada para descrever o mundo e a si mesmo falha em sua missão totalizante da mesma forma que o capitalismo não pode dotar-se de bases inatacáveis. Além disso, com o Teorema de Gödel a matemática foi não só “reconhecida como muito mais abstrata e formal do que se tinha tradicionalmente suposto”, mas também tornou claro que “os recursos da mente humana não foram, e não podem ser, totalmente formalizados” (Nagel & Newman, 1958).

Mas quem poderia negar que, na prática, a quantificação tem nos dominado, com ou sem um suporte definitivo para sua base teórica? O desamparo humano parece ser diretamente proporcional à dominação da tecnologia matemática sobre a natureza, ou como Adorno expressou, “a sujeição da natureza exterior só é bem sucedida na medida da repressão da natureza interior.” E, certamente, o entendimento é diminuído pela marca característica do número: a divisão do trabalho. Raymond Firth acidentalmente exemplificou a estupidez da especialização avançada em um comentário passageiro sobre um tema crucial: “a proposição de que os símbolos são instrumentos de conhecimento levanta questões epistemológicas para as quais os antropólogos não são treinados para lidar”. A conexão com uma degradação mais comum é feita por Singh, no contexto de uma divisão cada vez mais refinada do trabalho e uma vida social cada vez mais tecnicizada, notando que “a automação da computação imediatamente abriu o caminho para automatizar operações industriais”.

O tédio elevado do trabalho informatizado de escritório é uma manifestação muito visível do trabalho mecanizado e matematizado, com sua quantificação neo-taylorista via telas de exibição eletrônicas anunciando a “explosão da informação” ou a “sociedade da informação”. O trabalho de informação é agora a principal atividade econômica e a informação se tornou uma mercadoria, em grande parte, ecoando o principal conceito da teoria da informação da década de 1940 de Shannon, no qual “a produção e a transmissão de informações poderiam ser definidas quantitativamente” (Feinstein, 1958).

Do conhecimento, à informação, aos dados, a trajetória matematizante afasta-se do significado – posto em paralelo com o campo das “ideias” (aquele desprovido de metas ou conteúdo, que é) pela ascensão do estruturalismo. A “revolução das comunicações globais” é outro fenômeno revelador, pelo qual um “input” sem sentido deve estar imediatamente disponível em todos os lugares para as pessoas que vivem, como nunca antes, em isolamento.

Nesse vácuo espiritual o computador dá passos largos. Em 1950, Turing disse, em resposta à pergunta “podem as máquinas pensar?”, “eu acredito que, no final do século, o uso de palavras e de opiniões geralmente educadas irão alterar tanto que seremos capazes de falar à respeito de máquinas pensantes sem esperar que sejamos contrariados.” Note-se que a resposta dele não tinha nada a ver com o estado das máquinas, mas sim inteiramente com o dos seres humanos. Com as pressões para moldar a vida para se tornar mais quantificada e semelhante à máquina, surge um movimento igual para tornar a máquina semelhante à vida.

Em meados dos anos 60, de fato, algumas vozes proeminentes já anunciavam que a distinção entre homem e máquina estava prestes a ser substituída, e viram isso como positivo. Mazlish fez um comentário especialmente inequívoco: “O homem está no limiar de quebrar a antiga descontinuidade entre ele e máquinas… não podemos mais pensar no homem sem a máquina… além disso, esta mudança… é essencial para a nossa aceitação harmoniosa de um mundo industrializado”.

O pensamento do final dos anos 80 personificou suficientemente a máquina a ponto de especialistas em Inteligência Artificial, como Minsky, poderem falar com naturalidade do cérebro manipulador de símbolos como um “computador feito de carne.” A psicologia cognitiva, ecoando Hobbes, tornou-se quase totalmente baseada no modelo computacional de pensamento nas décadas que se seguiam à previsão de Turing em 1950.

Heidegger sentiu que há uma tendência inerente ao pensamento ocidental de se fundir em ciências matemáticas, e viu a ciência como “incapaz de despertar, sendo na verdade castradora, o espírito genuíno da investigação.” Nos encontramos numa época em que os frutos da ciência ameaçam acabar com a vida humana por completo, onde um capitalismo moribundo parece capaz de levar tudo com ele, sendo mais apto a querer descobrir as origens finais do pesadelo.

Quando o mundo e seu pensamento (Lévi-Strauss e Chomsky imediatamente vêm à mente) chegam a uma condição cada vez mais matematizada e vazia (onde os computadores são amplamente apontados como capazes de sentimentos e até mesmo de vida própria), o início desta jornada sombria, incluindo as origens do conceito de número, exigem compreensão. Pode ser que esta pergunta seja essencial para salvar a nós e nossa humanidade.

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