Contra a sociedade de massas

Este ensaio foi escrito pelo anarquista Chris Wilson, publicado na revista Green Anarchy n. 6, em 2001, e traduzido pelo Coletivo Erva Daninha. Trata-se de uma crítica ao autoritarismo inerente ao modo de vida civilizado.


Muitas pessoas desejam uma existência livre da autoridade coercitiva, onde cada um estaria em liberdade para fazer as escolhas de sua própria vida, à imagem de suas próprias necessidades, valores e desejos. Para que tal liberdade seja possível, nenhuma pessoa individual pode estender sua esfera de controle sobre a vida dos outros sem a sua escolha. Muitos que lutam contra a opressão no mundo moderno esforçam-se para conceituar “sociedade livre” tentando meramente reformar as mais poderosas e coercitivas instituições de hoje em dia, ou substituí-los por governos “diretamente democráticos”, municipalidades comunitariamente controladas, federações industriais de propriedade do trabalhador, etc. Aqueles que priorizam os valores da autonomia pessoal ou não controlada e existência selvagem têm razões para se opor e rejeitar todas as organizações de grande porte e sociedades com o argumento de que estas necessitam de imperialismo, escravidão e hierarquia, independentemente do propósito para o qual foram criadas.

Os humanos são sociáveis por natureza, mas são seletivos para com quem desejam se associar. Por companheirismo e apoio mútuo, as pessoas naturalmente desenvolvem relacionamentos com aqueles com quem compartilham uma afinidade. Porém, apenas nos últimos tempos as pessoas têm se organizado em agrupamentos de grande porte compostos por estranhos que compartilham poucas e irrelevantemente pouco em comum uns com os outros. Por mais de 99 por cento da história humana, humanos viveram em pequenos e igualitários arranjos familiares estendidos, enquanto extraiam sua subsistência diretamente da terra. Os bandos de coletores e as comunidades hortícolas nômades do passado e do presente são conhecidos por terem desfrutado de extensos tempos de lazer e raramente precisavam de mais de 2 ou 4 horas diárias em média para satisfazerem suas necessidades. Fome e guerra são extremamente raras nessas sociedades. Adicionalmente, saúde física, qualidade dentária e a média do tempo de vida de comunidades de pequeno porte são significativamente maiores que as de sociedades agrícolas e as primeiras sociedades industriais. Líderes são temporários, e não possuem poder além de sua habilidade de persuasão. Enquanto caçadores-coletores e agricultores de corte e queima realizam de fato uma alteração do ambiente local que são por vezes um desperdício, eles precisam provar a si mesmos que são adaptações ecológicas estáveis. A coleta serviu a humanidade por três milhões de anos, enquanto a horticultura vem sendo usada na bacia amazônica por aproximadamente 9.000 anos. As culturas de pequeno porte que restam hoje geralmente preferem seu modo de vida tradicional e muitos estão atualmente empreendendo uma impressionante resistência política contra corporações e governos que querem assimilá-los à força, de modo que sua terra e trabalho possam ser explorados. As pessoas raramente entram em organizações de massa sem serem coagidas, já que isso leva a uma diminuição da liberdade e da saúde.

A ascensão da civilização tornou-se possível por meio da produção em massa compulsória. Quando certas sociedades passaram a priorizar a produtividade agrícola como seu maior valor, eles começaram a submeter à força toda a vida ao alcance de suas cidades para esse fim. Comunidades de pessoas que desejavam coletar ou plantar sobre a terra para subsistência seriam impiedosamente abatidas ou escravizadas e os ecossistemas que habitam seriam convertidos em terras agrícolas para alimentar as cidades. Aqueles comprometidos com a facilitação de tempo integral das colheitas e com a produção animal residiriam na zona rural nas proximidades, enquanto os funcionários públicos, comerciantes, engenheiros, militares, funcionários e prisioneiros habitavam as cidades. A tarefa de criar um excedente para alimentar uma classe especialista crescente fez com que as atribuições dos produtores de alimentos se intensificassem, criando, simultaneamente, a necessidade de mais terra, tanto para a agricultura como para a extração de materiais para construção e combustível. Os seres humanos foram forçados à servidão para o benefício de instituições de sua cultura de produção como um pré-requisito para a sobrevivência, e a vida não humana foi tanto explorada como eliminada para a realização de projetos humanos. Para ocupar a terra, uns seriam obrigados a pagar tributo continuamente na forma de um imposto ou dízimo (ou, mais recentemente, na forma de aluguel ou hipoteca), consequentemente exige-se de uns que dediquem a maior parte do seu tempo e energia a uma forma de emprego politicamente aceita. Ao serem obrigadas a satisfazerem as exigências dos proprietários ou empregadores em troca de espaço pessoal e mercadorias, torna-se impossível para as pessoas ganharem a vida através da caça de subsistência ou da horticultura. Embora as comunidades autossuficientes de pequeno porte resistissem ou fugissem a intrusão de forças militares e comerciais, aquelas que falhassem seriam assimiladas. Posteriormente, elas rapidamente se esquecem de suas práticas culturais, fazendo com que se tornem dependentes de seus opressores para a sobrevivência.

O capitalismo é a atual manifestação dominante da civilização. A economia capitalista é controlada principalmente por empresas subsidiadas pelo Estado. Essas organizações são de propriedade de acionistas que são livres para tomar decisões de negócios sem serem considerados pessoalmente responsáveis pelas consequências. Legalmente, as empresas gozam do estatuto de indivíduos e, portanto, a lesão só pode atingir os bens da empresa em um processo judicial, e não os bens de propriedade dos acionistas individuais. Os empregados dessas corporações são legalmente obrigados a perseguir o lucro acima de todas as outras preocupações possíveis (por exemplo, a sustentabilidade ecológica, a segurança do trabalhador, saúde comunitária, etc.) e podem ser demitidos, processados, ou julgados se fizerem o contrário. Como uma forma tecnologicamente avançada da civilização, o capitalismo invade e utiliza ainda maior território, causando redução do espaço disponível para a vida florescer livremente. Assim como a civilização, o capitalismo recruta tanto a vida humana como a não humana à servidão se as considerar útil, e descarta-as se considerar o contrário. Sob o capitalismo, a maioria das pessoas passa a maior parte consciente de cada dia (normalmente 8-12 horas) envolvida no trabalho sem sentido, monótono, arregimentado, e muitas vezes física e mentalmente prejudicial, para poder obter as suas necessidades básicas. Indivíduos privilegiados tendem a trabalhar de forma intensiva e extensiva, normalmente para responder à pressão social ou para satisfazer uma dependência de bens materiais e serviços. Por causa da apatia, alienação e falta de poder que caracteriza a experiência diária comum, a nossa cultura apresenta altas taxas de depressão, doença mental, suicídio, dependência de drogas, e relacionamentos disfuncionais e abusivos, juntamente com numerosos modos de existência indireta (por exemplo, através da televisão, filmes, pornografia, jogos de videogame, etc.).

A civilização, não o capitalismo em si, é a gênese do autoritarismo sistêmico, servidão obrigatória e isolamento social. Assim, um ataque contra o capitalismo que não consegue atingir a civilização nunca pode abolir a coerção institucionalizada que alimenta a sociedade. Tentar coletivizar a indústria com o objetivo de promover a democratização é deixar de reconhecer que todas as organizações de grande porte adotam uma direção e forma que é independente das intenções dos seus membros. Se uma associação é muito grande para que uma relação face a face entre os membros seja possível, torna-se necessário delegar responsabilidades de decisão aos representantes e especialistas, a fim de alcançar os objetivos da organização. Mesmo que os delegados sejam eleitos por consenso ou por maioria de votos, os membros do grupo não podem fiscalizar todas as ações dos delegados a menos que a organização seja pequena o suficiente para que todos possam acompanhar os outros em uma base regular. Líderes ou especialistas delegados não podem ser responsabilizados por mandatos, nem podem ser responsabilizados pelo comportamento irresponsável ou coercitivo, a não ser que estejam sujeitos à supervisão frequente por uma ampla seção transversal do grupo. Isso é impossível em uma economia baseada em uma divisão altamente estratificada de trabalho onde determinado indivíduo não pode nem mesmo ver as ações do resto. Além disso, os delegados eleitos irão atribuir mais tempo e recursos para preparar e apresentar um caso para os seus objetivos pessoais, e são, portanto, maiores as chances de ganhar mais poder através do engano e manipulação. Mesmo que o grupo como um todo determine todas as políticas e procedimentos (que em si é impossível quando o conhecimento especializado é necessário), e aos delegados só é atribuída a função de aplicá-las, eles ainda vão agir de forma independente quando não concordarem com as regras e sabemos que podem escapar da punição por ignorá-las. A democracia é necessariamente representativa, não direta, quando praticada em grande escala, e é incapaz de criar organização sem hierarquia e controle.

Como as organizações de massa devem aumentar a produção para manter a sua existência e se expandir, eles tendem a estender de forma imperialista seu âmbito de influência. Porque as cidades e indústrias dependem de insumos externos, elas pretendem aproveitar as áreas circundantes para uso agrícola e industrial, tornando-as inóspitas tanto para os ecossistemas não humanos como para as comunidades humanas autossuficientes. Esta área será expandida em resposta a qualquer aumento da população ou de especialização de mão de obra que ocorra na cidade. Alguém poderia argumentar que a produção industrial poderia ser mantida e ainda reduzida, deixando aos ecossistemas e aos povos não industriais algum espaço para coexistir. Em primeiro lugar, esta proposta convida a questão de por que a civilização deve determinar seus próprios limites, em vez de as vítimas de sua predação. Em segundo lugar, não há exemplos históricos de economias de produção que não se expandem, principalmente porque elas precisam se expandir depois de esgotar todos os recursos à sua disposição a qualquer momento.

A complexidade estrutural e a hierarquia da civilização devem ser recusadas, juntamente com o imperialismo político e ecológico que se propaga por todo o globo. Instituições hierárquicas, a expansão territorial, bem como a mecanização da vida são todas necessárias para a administração e processo de produção em massa ocorrer. Apenas pequenas comunidades de indivíduos autossuficientes podem coexistir com outros seres, humanos ou não, sem impor sua autoridade sobre eles.

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