Anarquia é o oposto de governo

Este ensaio busca demonstrar que a crítica liberal à interferência do estado na economia é incompatível com a crítica anarquista ao estado.


Assim como a crítica anarquista ao capitalismo não é uma defesa do intervencionismo estatal na economia, e sim uma crítica a toda forma de exploração do trabalho, a crítica anarquista ao estado não é uma defesa do livre mercado, e sim uma crítica a toda e qualquer forma de autoridade política hierárquica (ou simplesmente autoridade).

Defensores do livre mercado defendem, de um modo ou de outro, a existência de governos. Há aqueles que defendem um estado que esmaga a oposição política em nome de valores “tradicionais”. Defensores do estado mínimo defendem a democracia liberal. Anarcocapitalistas, apesar de afirmarem defender sociedades sem estado, defendem formas de governo privado que no fundo são governos autocráticos. Quando o dono de uma cidade privada cria regras para o estabelecimento de acordos, ele está governando.

Boa parte das pessoas acredita que o governo é uma necessidade, seja essa necessidade específica da sociedade de classes, da civilização ou da humanidade. Mas governos são relativamente recentes na história humana. Acreditar que governos são uma tendência natural em todas as sociedades humanas é um equívoco antropológico. Não há nenhuma determinação histórica que leve as sociedades humanas a criar governos para sobreviver. Governos são produto de certas condições materiais e sociais e da adoção de certos valores, e não uma necessidade histórica.

Uma das premissas que fundamentam o conceito moderno de estado é que o humano não é um animal político por natureza. Ele precisa de um contrato social, que legitima o estado, para conseguir viver em sociedade. A teoria política colonial conclui que a sociedade necessita de uma autoridade política centralizada para evitar a guerra de todos contra todos. Apesar das diferenças, a maioria dos teóricos ocidentais acredita que a vida sem governo produz uma condição indesejável ou insustentável (STEINBERGER, 2008). 

Anarquistas entendem o estado enquanto aquilo que governa, não como um tipo de governo. Logo, onde há governo há estado, e vice-versa. Aqueles que acreditam na necessidade de governo só podem decidir sobre que tipo de estado querem ter: absoluto, democrático, mínimo, etc… Anarquistas defendem outras formas de organização política que, em último grau, prescindem da necessidade de governantes.

“Isso significa que nenhum estado, por mais democráticas que sejam suas formas, nem mesmo a mais vermelha república política – uma república popular apenas no sentido da mentira conhecida como representação popular – é capaz de dar ao povo o que ele precisa: a livre organização de seus próprios interesses, de baixo para cima, sem qualquer interferência, tutela ou coerção de cima. Isso porque nenhum estado, nem mesmo o mais republicano e democrático, nem mesmo o estado pseudo-popular contemplado por Marx, representa, em essência, outra coisa senão o governo das massas de cima para baixo, por uma minoria educada e, portanto, privilegiada, que supostamente compreende os reais interesses do povo melhor do que o próprio povo.” (BAKUNIN, 2020).

Anarco-coletivistas acreditam que a auto-organização não implica em estado e distinguem as formas organizacionais libertárias das formas organizacionais autoritárias. A autoridade política se opõe à autonomia ou autodeterminação dos indivíduos. Anarco-coletivistas acreditam que os interesses coletivos e individuais são compatíveis e podem ser alcançados sem que exista uma elite mandando e uma massa obedecendo.

Anarco-individualistas fazem uma crítica à ideia de organização coletivista, porém não a substituem por individualismo liberal. A ordem social libertária não emerge da livre competição entre indivíduos, nem de uma ética da propriedade ou de uma dedução lógica sobre a ação humana. As formas sociais humanas são produtos de uma determinada condição histórica e material, assim como da seleção de valores e de interpretações que podem mudar com o tempo. Não derivam de algo abstrato, imutável ou apriorístico, mas sim de relações sociais mutáveis e difíceis de representar matematicamente.

Anarquistas questionam a necessidade de uma organização social que exige governo. O governo só é possível a partir de um modo de produção que possibilite o acúmulo de propriedade privada, o que implica em exploração do trabalho. Para Emma Goldman, por exemplo, governo e anarquia são duas forças antagônicas: uma representa o desejo de dominar, e a outra o desejo de ser livre de toda forma de dominação.

“Acredito que o governo, a autoridade organizada ou o estado são necessários apenas para manter ou proteger a propriedade e o monopólio. Ele provou ser eficiente apenas nessa função. Como defensora da liberdade individual, do bem-estar humano e da harmonia social, que por si só constituem a ordem real, o governo é condenado por todos os grandes indivíduos do mundo.” (GOLDMAN, 2020).

Desse ponto de vista, a crítica anarquista ao governo está diretamente ligada à sua crítica à propriedade. Uma vez que a propriedade é produto da expropriação, o que o governo protege ao proteger a propriedade não é a liberdade individual mas sim o sistema de exploração do trabalho para acúmulo de poder.

A crítica eco-anarquista ao governo

A população humana oscilou por centenas de milhares de anos dentro do limite de capacidade de carga do seu meio, como qualquer outra espécie. Há uma mudança relativamente repentina para um crescimento exponencial nos últimos séculos. Não foi o desenvolvimento dos aglomerados urbanos nem o aumento da qualidade de vida que produziu esse crescimento. Ele pode ser considerado, em termos de ecologia humana, como uma desadaptação ao meio. 

Eco-anarquistas entendem isso como uma consequência da alienação entre humano e não-humano. Quando uma espécie se aliena do seu habitat natural, é possível que a população cresça a ponto de consumir todos os recursos disponíveis e então entrar em colapso. Tais espécies geralmente são chamadas de “pragas”.

Em algum ponto, criamos um modo de vida que não se adapta ao nosso meio. Quando falamos de fenômenos sociais que ocorrem “à medida que o número de pessoas aumenta”, estamos sugerindo que esse crescimento acontece espontaneamente. Mas o crescimento populacional surge dentro de um projeto político de colonização do espaço geográfico que chamamos de expansionismo. 

O crescimento populacional exponencial não ocorreu na espécie humana como um todo, mas sim nos povos que adotaram modos de vida expansionistas e colonizadores. Esse crescimento é resultado da violência inerente ao processo de acúmulo original de propriedade. Inicialmente esse acúmulo foi possibilitado pela domesticação de plantas e animais. Portanto, a crítica eco-anarquista à domesticação também está intimamente relacionada à crítica ao governo, uma vez que o governo é equivalente à domesticação humana.

Não existem governos legítimos

Definir algo como um governo ilegítimo é um equívoco porque implica na existência de governos legítimos. O que poderia legitimar o governo? Se a existência de governos não é um problema para a maioria dos liberais e socialistas, ela não pode deixar de ser um problema para anarquistas. Não existe governo legítimo porque não existe autoridade política legítima. As sociedades que se organizaram contra a legitimação da autoridade política são na verdade as mais prevalentes da história.

A diferença entre governo e autodeterminação nos leva a criticar inclusive o governo da maioria. Não apenas a democracia representativa, mas também a participativa e a direta. Criticar a democracia não significa concordar com regimes autoritários, mas sim defender a autonomia das comunidades auto-organizadas. A solução anarquista para o governo não implica em privatizar o governo, mas em deixar de depender dele por meio do apoio mútuo (CRIMETHINC, 2019).

O socialismo, de modo amplo, é uma proposta que implica numa mudança estrutural global. Socialismo não é necessariamente um tipo de governo. A crítica anarquista ao governo não se limita a criticar ditaduras, governos autoritaristas, corruptos ou ineficientes. Para anarquistas, o problema é a existência do governo em si.

Anarquistas buscam a ausência de governo e enxergam outras possibilidades além da escolha entre capitalismo e estado. Anarquistas não querem apenas a liberdade de escolher seus próprios governos. Eles querem o fim dessas formas sociais. Ao invés de cidades privadas, anarquistas querem comunidades sem donos e sem estruturas penais. Para compreender a crítica anarquista ao estado em toda sua profundidade, é preciso compreender o abolicionismo penal e a crítica às prisões, à polícia e às leis.

O que é preciso para se libertar do governo

Ser livre não significa ser onipotente. Somos limitados porque somos seres vivos. A liberdade anarquista não é um ideal utópico de liberdade ilimitada. Ela existiu antes do estado e permanece existindo enquanto prática anticolonial. Mesmo os ricos não são livres porque precisam obedecer à ordem capitalista.

A lógica da produção capitalista nos torna escravos da eficiência. As máquinas que criamos para aumentar a eficiência da produção se tornam vetores sociais que precisamos alimentar e que moldam nosso modo de viver. O sistema tecnológico dirige o próprio avanço de acordo com uma lógica inexorável. Esse avanço, sendo um fim em si mesmo, produz a automatização da vida. Temos acesso à internet, mas estamos destruindo o solo para criar os dispositivos que nos permitem acessá-la. O preço do progresso parece superior aos seus benefícios, e isso antecede o capitalismo.

Se governo e civilização estão intrinsecamente ligados, então a crítica ao governo exige uma crítica à civilização, e vice-versa. Na lógica civilizatória, a sociedade industrial é um triunfo da capacidade humana, pois conseguiu fazer o que parecia impossível: alimentar uma população que cresce exponencialmente.

Considerando todos os custos ocultos da produção massiva de bens de consumo, vemos que o problema não se limita à distribuição. A eficiência da produção massiva depende de fontes de energia barata, como o petróleo. As fontes de energia barata, apesar da esperança solar punk, nunca serão realmente sustentáveis. Para cada caloria que consumimos, precisamos estocar várias calorias de energia. Mesmo que isso não implicasse na liberação de gases poluentes, esgotamento do solo e da água e extinção de espécies, as consequências ecológicas e humanas desse acúmulo de poder permanecem, segundo a crítica da ecologia profunda. Assim como o crescimento populacional acelerado produz mudanças climáticas, pandemias e guerras, o acúmulo exponencial de energia produz alienação, dependência tecnológica e ansiedade generalizada. Povos forrageadores conseguem produzir tudo que necessitam sem formas sociais civilizadas. O governo não é apenas baseado na exploração de trabalho humano, é baseado na alienação humana em relação aos demais seres vivos.

O governo pode ser necessário à civilização, mas a civilização não é necessária à humanidade. Mesmo uma civilização com abundância material criada pela automação da produção implica em perda do sentido da vida humana e crença na superioridade do ser humano como único ser racional e político.

O ganho com a eficiência produtiva é um ganho relativo. Sociedades que dependem de avanço tecnológico constante e automatização do trabalho para gerar abundância podem apenas minimizar, mas nunca abolir a dominação. Os governos só podem oferecer soluções para os problemas que eles mesmos criam.

A crítica ao governo é inerentemente anticapitalista porque não existe capitalismo sem governo. Se opor ao estado enquanto estrutura que interfere na economia não é suficiente para ser contra o governo. A teoria anarquista não está preocupada em pensar numa forma legítima de governo, seja de poucos sobre muitos ou de muitos sobre poucos. Isso é o que o diferencia das demais propostas socialistas. Assim como não existe capitalismo sem propriedade, não há governo sem hierarquia política (ou autoridade), e a anarquia é a negação da hierarquia política.

Muitos anarquistas acreditam na compatibilidade do mercado e das sociedades civilizadas com as sociedades sem estado. As críticas apresentadas aqui partem de uma perspectiva eco-anarquista e anticivilização. Mas a crítica ao governo é um ponto de encontro entre diferentes perspectivas anarquistas. A crítica liberal ao estado como “opressor da liberdade de mercado” é incompatível com a crítica anarquista ao estado, pois a existência de mercado depende da existência de governo. O anarcocapitalismo falha em criticar o estado, pois não critica seriamente a existência de governos. 

Ao mesmo tempo, os estatistas falham em criticar o capitalismo, porque consideram o estado como um protetor da classe trabalhadora ou como um mau necessário na condição atual. Porém, o estado perde sua capacidade de proteger a classe trabalhadora do capitalismo assim que este entra em crise. As crises cíclicas do capitalismo provocam crises políticas que levam ao rápido desmonte de políticas públicas que beneficiam trabalhadores e minorias, produzindo um “vício” em lutar por direitos pelas vias institucionais ou legais. Ultimamente, a luta por direitos tem se convertido numa luta para manter direitos mínimos, mostrando que a tendência das lutas institucionalizadas é se esforçar cada vez mais para conseguir cada vez menos.

O fortalecimento de políticas autoritárias e fascistas que pareciam estar superadas é outra demonstração da insuficiência do estado e fragilidade da democracia. O avanço numa área ocorre ao custo do retrocesso em outras áreas, enquanto o ponto sem retorno da crise ecológica se aproxima, produzindo ansiedade e desconfiança em relação às estruturas políticas tradicionais, lentas demais para responder às crises crescentes. Essa ansiedade é explorada por extremistas com suas agendas despolitizantes. Diante disso, compreender que a crítica anarquista ao estado é uma crítica a toda forma de autoridade política hierárquica, incluindo aquela criada pelo acúmulo de poder econômico de uma nação (chamado às vezes de “desenvolvimento”), é necessário tanto para quem pretende defender quanto para quem pretende criticar a posição anarquista.

Referências:

BAKUNIN, M. Statism and Anarchy. The Anarchist Library, 2020. Disponível em: https://theanarchistlibrary.org/library/mikhail-bakunin-statism-and-anarchy. Acesso em 26 de Setembro de 2022.

CRIMETHINC. Da Democracia à Liberdade: A Diferença entre Governo e Autodeterminação. CrimethInc, 2019.

GOLDMAN, E. What I Believe. The Anarchist Library, 2020. Disponível em: https://theanarchistlibrary.org/library/emma-goldman-what-i-believe. Acesso em 26 de Setembro de 2022.

STEINBERGER, P. J. Hobbes, Rousseau and the Modern Conception of the State. The Journal of Politics, 70(3), 595–611, 2008.

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