Civilização e individualidade em Emma Goldman

Emma Goldman entrou para a história do anarquismo por sua contribuição com o anarco-feminismo e por combinar o anarquismo social com o individualismo anarquista, além de ser um exemplo de ativismo incansável. O objetivo deste zine é relacionar o pensamento de Goldman em “O Indivíduo, a Sociedade e o Estado” ao pensamento anticivilização.


A vida de Emma Goldman

Emma Goldman nasceu na Lituânia em 1869. Aos 16 anos ela fugiu para os Estados Unidos para não ser obrigada a se casar. Mudou-se para Nova York aos 20 anos, quando iniciou uma longa amizade com o anarquista Alexander Berkman. Três anos depois, durante uma greve, nove trabalhadores foram assassinados. Após uma tentativa malsucedida de matar o responsável por essas mortes, o industrialista Henry Frick, Berkman foi condenado a 22 anos de prisão. Goldman tentou defender o amigo, mas seu próprio envolvimento no assassinato não foi considerado durante o julgamento.

Aos 24 anos, Goldman foi presa por tentar incitar trabalhadores grevistas à revolta. Ela foi presa novamente pouco tempo depois, ao distribuir panfletos sobre o direito reprodutivo das mulheres. Aos 37 anos, quando Berkman saiu da prisão, ela e Berkman criaram o periódico “Mãe Terra”, no qual ela permaneceu como editora por 11 anos. Aos 39 anos, sua cidadania estadunidense foi revogada e ela foi considerada como “a mulher mais perigosa do mundo“ por Edgar Hoover, primeiro diretor do FBI. Mesmo assim, Goldman permaneceu nos Estados Unidos e continuou provocando debates sobre anarquismo e causas sociais.

Aos 48 anos, Goldman foi presa novamente por se manifestar contra o envolvimento dos Estados Unidos na guerra. Após dois anos presa, ela e outros 247 anarquistas foram deportados à força dos Estados Unidos para a Rússia Soviética sob a acusação de subversão.

Quando o governo soviético reprimiu os anarquistas, Goldman organizou protestos. A dissidência anarquista foi brutalmente esmagada pelo governo soviético, e Goldman passou os últimos 20 anos de sua vida auxiliando a causa antifascista na Europa e no Canadá, tendo inclusive participado da revolução Espanhola.

“O Indivíduo, a Sociedade e o Estado” é o último artigo dela, publicado no ano de sua morte, em 1940, quando ela residia no Canadá. É um texto que concentra toda sua intensa experiência de vida participando ativamente do movimento anarquista.

O conceito de civilização em Goldman

Logo no primeiro parágrafo do texto, Goldman cita o conceito de civilização e de crise civilizacional:

As mentes dos homens estão confusas, pois os próprios fundamentos de nossa civilização parecem estar cambaleando. As pessoas estão perdendo a fé nas instituições existentes, e as mais inteligentes percebem que o industrialismo capitalista está indo contra o propósito que supostamente teria.

Esta análise permanece bastante atual. Mas Goldman não usou o termo “civilização” no mesmo sentido que usamos na crítica à civilização. Na maioria das vezes em que usa esse termo, ela reproduz a visão herdada de outros anarquistas, como Bakunin e Kropotkin, associando a civilização ao progresso da liberdade humana:

Pois o que é civilização no verdadeiro sentido? Todo progresso foi essencialmente uma ampliação das liberdades do indivíduo com uma correspondente diminuição da autoridade exercida sobre ele por forças externas. Isso vale tanto no domínio da existência física quanto na política e econômica. No mundo físico, o homem progrediu na medida em que subjugou as forças da natureza e as tornou úteis a si mesmo. O homem primitivo deu um passo no caminho do progresso quando produziu o fogo pela primeira vez e assim triunfou sobre as trevas, quando acorrentou o vento ou aproveitou a água.

Essa visão contribuiu com um distanciamento entre o pensamento anarquista e o pensamento anticivilização. Goldman, seguindo o pensamento dos anarquistas do seu tempo, parece apontar para uma visão histórica na qual partimos de uma condição hostil e progredimos em direção à liberdade. Ela chega a dizer que se não fosse pela racionalidade humana, “ainda estaríamos vagando pelas florestas primitivas”. Porém, essa leitura pode ser contraposta a outras presentes no mesmo texto. Por exemplo, Goldman admite que o estado nem sempre existiu e que a condição natural da humanidade era de igualdade e liberdade:

Houve um tempo em que o Estado era desconhecido. Em sua condição natural o homem existia sem nenhum Estado ou governo organizado. As pessoas viviam como famílias em pequenas comunidades; lavravam o solo e praticavam as artes e ofícios. O indivíduo, e mais tarde a família, era a unidade da vida social onde cada um era livre e igual ao seu próximo. A sociedade humana então não era um Estado, mas uma associação; uma associação voluntária para proteção e benefício mútuos. Os mais velhos e os membros mais experientes eram os guias e conselheiros do povo. Eles ajudaram a administrar os assuntos da vida, não a governar e dominar o indivíduo.

Apesar de usar o conceito iluminista de progresso, o cerne da sua crítica é compatível com a crítica à civilização: A autonomia antecede o estado. Além disso, Goldman considera a anarquia como uma proposta que se difere tanto da democracia quanto do autoritarismo.

Em outras palavras, devemos curar os males da democracia com mais democracia, ou devemos cortar o nó central do governo popular com a espada da ditadura? Minha resposta é: nem uma nem outra. Sou contra a ditadura e o fascismo assim como me oponho aos regimes parlamentares e à chamada democracia política

Sua crítica à democracia representa uma crítica radical a toda forma de governo. O governo, ao invés de um meio válido para realizar os grandes feitos da humanidade, é na verdade o grande obstáculo à autonomia humana. Além disso, ela tratou o conceito de civilização como algo mais complexo do que o simples progresso tecnológico: 

Não é a invenção e a mecânica que constituem o desenvolvimento. A capacidade de viajar a uma velocidade de 100 milhas por hora não é evidência de ser civilizado. A verdadeira civilização deve ser medida pelo indivíduo, a unidade de toda a vida social; por sua individualidade e na medida em que é livre para que seu ser cresça e se expanda sem entraves de autoridade invasiva e coercitiva.

Seu critério de civilização era medido pelo grau de autonomia, cooperação e ausência de hierarquia, que também são as características das sociedades que nós chamamos de “incivilizadas” ou “selvagens”, e é nesse sentido que sua perspectiva anarquista pode ser combinada com a crítica à civilização.

O conceito de individualidade em Goldman

A partir de uma leitura de Stirner e Nietzsche, Goldman descreve o indivíduo como “a verdadeira realidade da vida” e “cosmos em si mesmo”, enquanto descreve a sociedade como “apenas um conjunto de indivíduos”, ou seja, algo abstrato. O indivíduo seria “a única fonte e força motriz da evolução e do progresso” e a civilização seria a “luta contínua do indivíduo ou de grupos de indivíduos contra o Estado e mesmo contra a ‘sociedade’, isto é, contra a maioria subjugada e hipnotizada pelo Estado e pelo culto ao Estado”. Goldman chega a dizer que sem o indivíduo “não há raça”: “É o indivíduo que vive, respira e sofre”. Todas as questões sociais devem ser pensadas a partir do indivíduo.

Sendo o indivíduo a única coisa concreta, ela entende o progresso como uma luta contra as abstrações. “Em suma, dos fatos contra a fantasia, do conhecimento contra a ignorância, da luz contra as trevas”. Como outros anarquistas de sua época, ela enalteceu os progressos da ciência, da filosofia e da indústria como produtos de “homens de mente forte e vontade de liberdade”. Ela descreve esses homens como faróis que apontam um caminho para a sociedade.

Ao mesmo tempo, ela aponta para a alienação individualista como produto da dominação cultural. Podemos interpretar sua defesa do indivíduo como uma crítica à tradição, à moral e à educação doutrinária:

O pensamento humano sempre foi falsificado pela tradição e pelo costume, e pervertido pela falsa educação no interesse daqueles que detinham o poder e gozavam de privilégios. Em outras palavras, pelo Estado e pelas classes dominantes. Este conflito constante e incessante tem sido a história da humanidade.

Minha ressalva seria esta: ao invés da história da humanidade, ela está descrevendo a história da civilização. As sociedades com estado, segundo ela mesma, nem sempre existiram. A aparente contradição talvez possa ser explicada pelas referências que estavam disponíveis a ela. Tais referências estavam limitadas a uma visão positivista da história.

É preciso notar que o conceito de indivíduo em Goldman se difere do conceito liberal de indivíduo e se aproxima do conceito autonomista de individualidade:

A individualidade pode ser descrita como a consciência do indivíduo sobre o que ele é e como ele vive. É inerente a todo ser humano e é algo em crescimento. O Estado e as instituições sociais vêm e vão, mas a individualidade permanece e persiste. A própria essência da individualidade é a expressão; o senso de dignidade e independência é o solo em que ela prospera. A individualidade não é a coisa impessoal e mecanicista que o Estado trata como um “indivíduo”. O indivíduo não é meramente o resultado da hereditariedade e do ambiente, de causa e efeito. Ele é isso e muito mais, muito mais. Um ser vivo não pode ser definido; ele é a fonte de toda a vida e de todos os valores; ele não faz parte disto ou daquilo; ele é um todo, um todo individual, um todo crescente, mutável, mas sempre constante.

Sendo a individualidade algo ao mesmo tempo “inerente a todo ser humano” e “em constante desenvolvimento”, é possível compreender que é o estado que rompe com a condição humana natural de liberdade e impõe obediência.

A defesa da individualidade em Goldman não pode ser confundida com aquilo que ela chama de “individualismo rude”. Esse individualismo não dá poder real ao indivíduo nem reconhece a individualidade. Ao invés disso, ele dá poder à classes dominantes, domesticando o espírito humano e o rebaixando a um estado servil:

A individualidade não deve ser confundida com as várias ideias e conceitos do Individualismo; muito menos com aquele “individualismo rude” que é apenas uma tentativa mascarada de reprimir e derrotar o indivíduo e sua individualidade. O chamado Individualismo é o laissez faire social e econômico: a exploração das massas pelas classes por meio de artifícios legais, aviltamento espiritual e doutrinação sistemática do espírito servil, processo conhecido como “educação”. Esse “individualismo” corrupto e perverso é a camisa de força da individualidade. Ela converteu a vida em uma corrida degradante por coisas externas, por posse, por prestígio social e supremacia. Sua maior sabedoria é “dane-se quem ficar por último”.

Ela também identificou os Estados Unidos como 

melhor representante desse tipo de individualismo, em cujo nome a tirania política e a opressão social são defendidas e tidas como virtudes; enquanto toda aspiração e tentativa do homem de ganhar liberdade e oportunidade social de viver é denunciada como ‘antiamericana’ e má em nome desse mesmo individualismo.

Sua crítica ao individualismo estadunidense é inseparável da sua crítica ao estado democrático, cuja função é “dar uma aparência de legalidade e direito ao mal cometido por poucos a muitos”. A democracia é uma versão moderna do falso consentimento ao contrato social, construído sob o dogma da incapacidade humana de autodeterminação:

Esse consentimento é a crença na autoridade, na necessidade dela. Em sua base está a doutrina de que o humano é mau, vicioso e incompetente demais para saber o que é bom para ele. Sobre isso se constrói todo governo e opressão. Deus e o Estado existem e são sustentados por esse dogma.

Podemos entender a defesa da individualidade em Goldman como uma crença na autodeterminação e na capacidade humana de quebrar determinismos históricos e culturais. Assim, podemos relacioná-la com a defesa da peculiaridade, feita pelo autor chileno Jesús Sepúlveda. Em “O jardim das peculiaridades”, Sepúlveda combina o pensamento anarcoprimitivista de John Zerzan com o seu próprio, fazendo uma defesa da individualidade em contraposição à padronização civilizacional. 

O conflito entre individualidade e civilização

Como defensora do ateísmo, Goldman via deus e o estado como abstrações, assim como  o conceito de nação ou de humanidade. Assim como deus, o estado seria a “sombra” do humano, um produto da ignorância e do medo. O estado foi revestido de atributos divinos pelos filósofos modernos, e servir ao estado foi considerado como virtude. Goldman rejeita não apenas o estado burguês, mas qualquer forma de estado: 

O Estado, todo governo, qualquer que seja sua forma, caráter ou cor – seja absoluto ou constitucional, monarquia ou república, fascista, nazista ou bolchevique – é por sua própria natureza conservador, estático, intolerante à mudança e oposto a ela.

Sendo o humano a fonte de toda mudança, é possível compreender o estado como uma força contrária ao “espírito humano” ao invés de um meio que pode ser usado para o bem ou para o mal. Ele é sempre um obstáculo à liberdade humana, pois “é da natureza do governo não apenas manter o poder que tem, mas também fortalecê-lo, ampliá-lo e perpetuá-lo, nacional e internacionalmente”. 

Assim, Goldman identifica na natureza do governo a mesma lógica de crescimento indefinido que torna o capitalismo insustentável:

A psicologia do governo exige que sua influência e prestígio cresçam constantemente, em casa e no exterior, e explora todas as oportunidades para aumentá-lo. Essa tendência é motivada pelos interesses financeiros e comerciais por trás do governo, representado e servido por ele.

Esta é uma crítica ao expansionismo presente tanto no pensamento estatal quanto no comercial. A tendência de todo governo é se tornar cada vez mais conservador, cerceando cada vez a individualidade:

Em “autodefesa” o Estado, portanto, suprime, persegue, pune e até priva o indivíduo da vida. É auxiliado nisso por todas as instituições que defendem a preservação da ordem existente. Recorre a toda forma de violência e força, e seus esforços são apoiados pela “indignação moral” da maioria contra o herege, o dissidente social e o rebelde político.

Como um deus artificial ou uma máquina anti-humana, o estado cria um modo de vida baseado no culto a si mesmo, que o engrandece na medida que diminui o ser humano, tornando a vida cada vez mais uniforme, mecanizada e padronizada. Esta crítica à padronização como tendo um fim em si mesmo serve perfeitamente de ponte entre o pensamento de Goldman e a crítica à civilização:

O mais forte baluarte da autoridade é a uniformidade; a menor divergência é o maior crime. A mecanização total da vida moderna aumentou a uniformidade mil vezes. Está presente em todos os lugares, nos hábitos, gostos, vestimentas, pensamentos e ideias. Sua estupidez mais concentrada é a “opinião pública”. Poucos têm a coragem de se destacar contra isso. Aquele que se recusa a se submeter é ao mesmo tempo rotulado de “queer”, “diferente” e criticado como um elemento perturbador na estagnação confortável da vida moderna.

A uniformidade social faz com que dissidentes se sintam sempre no não-lugar, sem pertencimento. Com a globalização desse modo de vida, “o mundo tornou-se uma prisão, e a vida, um confinamento solitário contínuo”. Por isso, não é contraditório que Emma Goldman tenha sido uma referência constante na revista anticivilização Green Anarchist.

A complexidade do pensamento de Goldman é evidenciada pela insistência em unir o pensamento individualista de Max Stirner ao pensamento anarco-comunista de Peter Kropotkin. Ao se referir a Kropotkin, ela afirma que este “mostrou que resultados maravilhosos essa força única da individualidade do homem alcançou quando fortalecida pela cooperação com outras individualidades”. Ela chama Kropotkin de “grande cientista e pensador anarquista”, que teria demonstrado o equívoco da teoria de Darwin, expandindo-a para compreender a importância da cooperação na evolução das espécies: “Ele demonstrou que apenas a ajuda mútua e a cooperação voluntária – não o Estado onipotente e devastador – podem criar a base para uma vida individual e associativa livre”.

Goldman considerou a crise econômica mundial de 29 como uma evidência de que o modo de produção capitalista é insustentável: 

O trabalhador médio não tem nenhum ponto de contato interno com a indústria em que está empregado e é estranho ao processo de produção do qual é uma parte mecânica. Como qualquer outra engrenagem da máquina, ele é substituível a qualquer momento por outros seres humanos despersonalizados semelhantes.

Nem sequer o trabalho intelectual possibilita liberdade, pois: “quase todo mundo está deslocado em nosso atual esquema de coisas. As massas se arrastam, em parte porque seus sentidos foram entorpecidos pela rotina mortal do trabalho e porque precisam sobreviver”.

A busca pela individualidade é a busca pela autenticidade, pela naturalidade, pelo ser em si. A civilização, no sentido crítico do termo, é aquilo que cria a inautenticidade, a separação, a hierarquia, a alienação, a domesticação do ser. É por isso que a principal contribuição da crítica à civilização para a prática anarquista é a renaturalização, a reintegração do ser humano ao seu habitat natural. A oposição entre individualidade e civilização é inegável. O que críticos da civilização chamam de “espírito da civilização”, Goldman chamou de “espírito do governo”. Sua defesa da liberdade positiva aponta, mesmo que implicitamente, para uma liberdade que já existiu e que foi perdida no processo civilizatório.

Goldman abriu caminho para novas abordagens no anarquismo. Hoje, podemos chegar a uma crítica à civilização a partir dessa mesma ousadia de lutar sem parar de dançar. Uma nova compreensão do “espírito humano” foi possibilitada recentemente por trabalhos que avançaram a percepção de Kropotkin sobre a natureza. O conceito de co-evolução, por exemplo, considera o desenvolvimento humano em continuidade com o desenvolvimento ecológico do seu habitat e de outras espécies com quem nos relacionamos. Podemos agora perceber que a própria civilização e seu conceito colonialista de progresso estabelece uma ruptura entre humano e natureza.

A crítica à civilização pode informar o anarquismo sobre a necessidade de atualizar a crítica à dominação para além das barreiras epistêmicas erguidas pela branquitude. O anarquismo anticivilização dialoga com a teoria e prática anarquista contemporânea, seguindo o caminho que foi aberto por pessoas como Emma Goldman.

Referências:

GOLDMAN, Emma. O Indivíduo, a Sociedade e o Estado. Biblioteca Anarquista, 2023. Disponível em: https://bibliotecaanarquista.org/library/emma-goldman-o-individuo-a-sociedade-e-o-estado

SEPÚLVEDA, Jesús. O jardim das peculiaridades. Biblioteca Anarquista, 2023. Disponível em: https://bibliotecaanarquista.org/library/jesus-sepulveda-o-jardim-das-peculiaridades

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