O manifesto comunista e a crítica à civilização

Um ensaio sobre o Manifesto Comunista de Marx e Engels.


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“A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história da luta de classes”.

A quais sociedades exatamente Marx estava se referindo? Será que a luta de classes deu movimento à longa história humana desde sempre, incluindo povos que até hoje não construíram instituições como fábricas e prisões? Há um movimento progressivo da história, partindo de “hordas selvagens” para cidades industrializadas? Ou será que a história das sociedades humanas não é exatamente a história do processo civilizatório? A história da expansão das sociedades civilizadas e do avanço da cultura civilizada pode ser confundida com a história humana. Mas seria a civilização a finalidade do processo histórico humano?

Essas são algumas perguntas que fazemos ao ler o Manifesto Comunista. Pode a história ser vista como um processo político progressivo? Marx e Engels parecem estar falando de evolução, mas não compreendemos a relação entre evolução e progresso que está implicada no texto: “Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia era acompanhada de um progresso político correspondente”. A burguesia supostamente teria acabado com as relações patriarcais, afogado os fervores do êxtase religioso e do sentimentalismo pequeno-burguês, e deixado apenas o frio e calculista egoísmo humano. “Em uma palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal”. Todas as relações estariam agora reduzidas a relações monetárias, e é isso que permitiu a crítica ao capital.

Sem a expansão da civilização, que envolve a invasão da América, seria possível pensar em comunismo global? A crítica ao processo civilizatório parece incompatível com tal historicismo. Se o avanço civilizado é aceito como avanço da própria história humana, diversos povos parecem ter sido excluídos dessa história. O que muda quando compreendemos a história humana para além da história da civilização?

“A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, a relações de produção e, com isso, todas as relações sociais”.

A falta de segurança e estabilidade distingue a época burguesa de todas as precedentes. Este seria um processo esgotável que possibilita a superação do capitalismo. Logo, se a burguesia encontrasse uma maneira de renovar esse processo esgotável, ela poderia, em tese, institucionalizar a instabilidade.

No século XX, aspectos que a burguesia deveria ter expulsado da história parecem retornar em novas versões. Com o avivamento e o pentecostalismo, há um retorno do fervor religioso no seio da sociedade mais capitalista do mundo. O neo-pentecostalismo e a teologia da prosperidade, em particular, representam a união de dois opostos, de modo que a ideologia burguesa não precisa mais derrubar o fervor religioso para reduzir tudo ao valor monetário. Uma coisa passa a alimentar a outra. Parece que o capitalismo encontrou uma maneira de fazer o que era considerado impossível no século XIX.

O mesmo processo político que gerou a burguesia supostamente derrubaria a ordem social existente e levaria ao comunismo e ao fim do conflito de classes. Esta era uma conclusão previsível pela análise materialista do processo.

“Tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas”.

A condição necessária do materialismo, pressuposta no manifesto, é que tudo se reduz às relações sociais. A burguesia reduz as relações sociais ao egoísmo humano. Esta parte da ideologia burguesa é o ponto fixo da alavanca comunista. Estaria esse ponto fixo ainda disponível?

Aldous Huxley acreditava que a exigência de eficiência levaria o capitalismo a se reinventar de modo a não se encaixar mais nas expectativas comunistas. O capitalismo continuaria sendo criticável, mas poderia ser ecológico e valorizar o prazer no trabalho ao invés da imposição. O capitalista não faria isso por bondade, mas por uma questão de eficiência. Insistir na exploração aberta, cínica, direta e brutal acaba custando mais caro. A exploração velada pode ser renovada com o uso de meios mais criativos de manipulação mental. Nesse sentido, o capitalismo pode retroceder para evitar uma queda. Sacrificar uma mão para salvar um braço. Conceder direitos sociais, mesmo quando eles são resultado de lutas. Dialeticamente, concessões burguesas e lutas sociais não necessariamente se excluem.

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Para a ecologia profunda, processo civilizatório pode até ser fisicamente inesgotável (pode ser renovado com inovações), porém se trata de algo reversível e não inexorável. Não é preciso, e nem possível, levar o processo até seu fim dialético, sua superação no seu estágio máximo de desenvolvimento. É preciso fazê-lo antes. Não podemos reverter a roda da história, mas a roda da história não é a roda da civilização. O processo civilizatório pode e deve ser revertido. Longe de uma necessidade histórica, ele é uma cultura. Se a civilização continuar, poderemos até superar o capitalismo, mas teremos então problemas ainda piores. Criamos novos paradigmas, novas linguagens, novas formas de ver o mundo, novas realidades a serem exploradas, com possibilidades infinitas de expansão. A expansão da mente, a conquista do espaço, a conquista do ciberespaço, a conquista da genética, a conquista do átomo… É assim que a civilização se mantém para além das expectativas de seu esgotamento. Ela sobrevive para devorar o que todo mundo pensava que não poderia ser devorado. Qual a solução deste problema, dentro da perspectiva comunista? Para ela, este não é um problema, é um falso problema e não precisa ser resolvido. O comunismo está focado apenas no capitalismo, e não considera que o mesmo processo que criou o capitalismo pode criar coisas piores, especialmente nas formas de exploração de outros seres vivos.

Mesmo o ecossocialismo não concebeu o processo civilizatório como um caminho possível entre outros, e sim como um produto necessário do avanço das condições materiais. Do nosso ponto de vista, porém, a civilização é um processo anômalo na história humana, e não apenas aquilo que a torna ecologicamente insustentável. É um desvio e não uma necessidade, ainda que tenha se globalizado. O ser humano passou a maior parte de sua história sem traços de civilização. A civilização é um processo que pode ser criticado, e pode ser revertido assim como foi iniciado. Os autores do manifesto comunista não levaram isso em consideração, porque seria impensável a partir dos seus pressupostos e sua visão de mundo. A contingencialidade do processo histórico da civilização não era pauta de discussão. A civilização ainda não era considerada como um modo de vida entre outros, mas como o único modo de vida possível para humanos.

No século XX descobrimos que a espécie humana existe há muito mais tempo do que imaginávamos. Sem este conhecimento, teóricos cometeram o erro de acreditar que o homem nasceu criando civilização, ou tendendo a criar civilização. Se este não é o caso, nossa concepção de história precisa ser revista. Mas se negarmos que a história da civilização é uma parte contingente da história humana, então não resta argumento contra a civilização.

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O que é um modo de produção? Pareceria um absurdo, dentro da teoria do constante desenvolvimento das forças produtivas, que estas permanecessem praticamente estagnadas durante 200 mil anos? Do ponto de vista da ecologia humana,por outro lado, absurdo é sugerir que a história humana possa ser dividida em estágios que estão contidos dialeticamente um no outro. Não há estágios e modos de vida diferentes que ocorrem por adaptações ao meio, e não dentro de um processo progressivo, o que não implica nem em determinismo ambiental nem em autodeterminação absoluta.

A afirmação de que um estágio de desenvolvimento posterior está dialeticamente contido no anterior parece incompatível com o ponto de vista da ecologia evolutiva, pois não há teleologia nos processos biológicos. Por exemplo, podemos dizer que a borboleta “está contida em potência” dentro da lagarta, porque seu código genético condiciona seu desenvolvimento. Mas um cachorro não “está contido” dentro de um lobo, porque são dois processos de natureza completamente distinta. Uma é o desenvolvimento ontológico de um ser, e outra é a modificação da espécie por domesticação. A forma do cachorro é resultado de uma ação humana sobre uma estrutura biológica. As pressões seletivas que a determinaram seguiram, entre outras coisas, preferências estéticas dos controladores da seleção artificial. As características do cachorro foram selecionadas segundo critérios subjetivos. Modos de vida são criados por um processo semelhante. Não são resultado de leis generalizáveis, mas de critérios subjetivos. Nenhum modo de vida decorre simplesmente de uma subsunção dialética, mas de fatores sociais complexos que não podem ser previstos ou analisados dentro de relações mecânicas.

Alguns justificam a expansão civilizatória pelo crescimento populacional, como se esse fosse um fenômeno natural. Mas o crescimento populacional é um efeito da civilização, não uma causa. A população humana permaneceu basicamente equilibrada pela maior parte da história. Populações não crescem do nada. Assim como não desenvolvem técnicas de cultivo pela mera passagem do tempo. Essas mudanças implicam numa seleção de valores. Valores que privilegiam o controle sobre o meio não surgem por causa de condições materiais, mas por escolhas de natureza ética, estética e epistemológica. Não existem tendências evolutivas que causam o crescimento populacional de uma população que já se encontrava estável há centenas de milhares de anos. Esta seria inclusive uma afirmação preconceituosa em relação aos povos que mantiveram sua estabilidade populacional. O desequilíbrio populacional não é explicado pelo avanço das condições materiais ou da relações sociais que derivam destas. Deve haver uma mudança radical na relação entre homem e natureza antes desse crescimento. Essa mudança inclui condições culturais que possibilitam o sedentarismo, a produção de excedente e a domesticação. Essas coisas não são capacidades latentes do ser humano, mas sim produtos culturais, que implicam em valores e dependem de crenças e visões de mundo.

Nós criamos vários mitos para justificar e naturalizar o surgimento de nosso modo de vida. Eles são reproduzidos por autores que ainda não criticaram o colonialismo e o mito do progresso. Acreditar que o processo expansionista dos povos agricultores se tratou de simples “desenvolvimento das forças produtivas” e criou condições para melhorias de qualidade de vida, e pior, para o aperfeiçoamento das capacidades físicas e mentais do ser humano é uma afirmação hoje completamente questionável, para dizer o mínimo. O mito do progresso era lugar comum para os pensadores do século XIX, mas não é mais tão fácil de justificar.

Nossa crítica ao capitalismo começa no conceito de produção: na ideia de que é o trabalho humano que, manipulando a natureza como um objeto sem valor intrínseco, é a fonte do sustento humano. Este conceito de trabalho vem de uma determinada visão metafísica sobre natureza e humanidade. Outras culturas não pensam nos seres da natureza como objetos. Não consideram que nossos interesses estejam acima dos deles. Sem essa mudança na relação não há qualquer forma de civilização, seja capitalista ou não.

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