Uma resposta à “anarco-tecnocracia” de John Cage

Esta é uma análise do texto “Ouvidos novos para o novo: a tecnologia e o anarquismo de John Cage”, escrito por Gustavo Simões e publicado na revista Ecopolítica nº13, de 2015. 

Neste texto, Gustavo procura demonstrar a proximidade do artista John Cage tanto com o anarquismo quanto com a perspectiva de “tecnocracia contra cultural” de Buckminster Fuller (TURNER, 2009). Daí a “singularidade” da perspectiva de John Cage, já que há uma oposição política entre o anarquismo e a perspectiva tecnocrata. A tese central do artigo é que Cage era capaz de se afirmar tanto a favor do anarquismo quanto a favor de uma solução tecnológica para a política, como proposta por Fuller, graças a uma perspectiva que compreende a tecnologia como tendo sido “sequestrada” pela propriedade e pelo Estado. A possibilidade de liberar a tecnologia das mãos dessas estruturas opressivas implica em afirmar que a tecnologia não depende delas. Logo, não seria preciso recorrer a um “anarcoprimitivismo”, que é politicamente contra a tecnologia, e nem defender o avanço técnico capitalista ou sob controle do estado.

Infelizmente, Gustavo comete um erro ao considerar Theodore Kaczynski como um representante do anarcoprimitivismo, uma vez que o próprio Kaczynski rejeitou o anarcoprimitivismo. Kaczynski (2008) rompeu com a crítica anarcoprimitivista, apesar de ainda ser comumente associado a ela por causa da crítica à tecnologia. 

O segundo problema é a ausência de referências anarcoprimitivistas, tanto no artigo quanto em sua tese de doutorado (SIMÕES, 2017), apesar de sua pretensão de apresentar uma perspectiva crítica a esse movimento. A única referência anarcoprimitivista no artigo é um pequeno panfleto, de apenas 400 palavras, que não permite compreender o pensamento anarcoprimitivista em relação à tecnologia. Em sua tese, há apenas uma nota referindo-se ao primeiro ensaio de Zerzan sobre o assunto, Futuro Primitivo. Gustavo resumiu a posição de Zerzan como uma defesa do “retorno ao chamado ‘homem de neandertal’”, que é uma simplificação equivocada. Seria mais correto dizer que Cage não concordou com a rejeição pura e simples da tecnologia. Mas anarcoprimitivistas também não concordam.

Gustavo reproduz também crítica ao anarcoprimitivismo feita por Hakin Bey (1995), que também teve uma visão pouco informada e caricata desse movimento. Bookchin também faz uma crítica desse tipo tanto a John Zerzan quanto a Hakin Bey.

Considerando essa caricatura do anarcoprimitivismo e a posição tecnocrata liberal como dois pontos extremos, a posição de Cage pode parecer moderada e razoável. Porém, é importante notar que a crítica à tecnologia não está sendo devidamente apreciada no artigo. Tal crítica não se limita ao ponto de vista “primitivista” de que toda tecnologia é ruim. A posição anarcoprimitivista não pode ser reduzida a essa expressão. Gustavo se limita a dizer que Cage supera “o suposto antagonismo natureza/ tecnologia”, mas não há um aprofundamento nesta questão nem no artigo nem em sua tese de doutorado. 

Para autores da filosofia da tecnologia, como Feenberg (2012), a possibilidade de se usar a tecnologia “para o bem ou para o mal”, bastando “liberá-la” do sistema capitalista ou da estrutura do Estado levanta uma série de questões quanto à natureza da tecnologia, da sociedade e da ciência. Até que ponto podemos separar de fato a tecnologia de tais estruturas? 

Defender o uso de “tecnologias indígenas”, que a rigor seriam técnicas e não tecnologias, é muito diferente de defender o uso de hidroelétricas, que inclusive operam em detrimento das populações indígenas. A tecnologia seria neutra ou carregada de valores? Como ocorre seu avanço? Seria de modo autônomo, avançando segundo seus próprios meios e fins, ou humanamente controlada, avançando segundo os meios e fins da sociedade na qual ela está inserida? É respondendo essas perguntas que Feenberg distingue entre quatro posições acerca da tecnologia: o determinismo, o instrumentalismo, o substantivismo e a teoria crítica. Em qual posição ficaria a perspectiva de Cage?

O texto parece indicar que a perspectiva de Cage, como a de Fuller, pode ser caracterizada como instrumentalista. Tal perspectiva não combina com os princípios do eco-anarquismo, mas poderia combinar com pelo menos uma parte do anarco-individualismo. A relação entre Cage e o anarco-individualismo poder ser percebida no fato de que Cage teve como uma de suas principais referências o livro “Men Against the State”, de James Martin, um revisionista americano, negador do holocausto, e que foi, de fato, considerado um herói por anarcocapitalistas (DOHERTY, 2009). O Instituto Mises chegou a prestar uma homenagem a ele [1].

A “singularidade” da perspectiva anarquista de Cage se dá justamente pela sua cisão com o anarquismo histórico e adesão a uma visão liberal. Qual exatamente era o anarquismo de Cage? Afirmar que Cage fazia sua própria mistura de anarquismo e tecnologia é uma coisa. Mas considerar sua posição como um argumento sério contra a crítica à tecnologia como um todo é bastante equivocado. O máximo que podemos concluir é que certos anarquistas podem se aproximar mais da visão de Fuller do que da visão de Zerzan. O artigo cumpre o que estabelece no resumo, mas não pode ser usado como resposta à teoria crítica da tecnologia, portanto não abre uma nova perspectiva para se pensar a relação entre anarquia e tecnologia.

Cage, inspirado por Fuller e James Martin, sugeriu “a continuidade da busca por tecnologias capazes de prover o que as pessoas precisam para viver” por uma crença na neutralidade da tecnologia. A crítica à neutralidade da tecnologia, isso é, sobre a possibilidade do uso da tecnologia para emancipação humana, avançou significativamente na área que hoje chamamos de Filosofia da Tecnologia. Partir do pressuposto de que “o problema não é a tecnologia, mas como a usamos” é ignorar a discussão fundante dessa área.

Sem considerar toda essa discussão, a posição “moderada” convencional, expressa como “muito mais do que a mera sobrevivência física e muito menos do que nos impõe o consumismo capitalista” parece razoável. Mas ela parte de uma série de pressupostos que a teoria crítica questiona, e cujos argumentos não são considerados em nenhum momento do texto. O que fica em evidência é que Cage não é um exemplo significativo de alguém que defendeu uma perspectiva anarquista do avanço tecnológico.

O artigo não demonstra nem se propõe a demonstrar por que a tecnologia poderia ser considerada como “facilitadora de uma nova economia libertária”. Ele simplesmente afirma que um artista simpático ao anarquismo acreditou nisso, pois considerou que o problema era o controle sobre a tecnologia, e não a tecnologia em si. Partindo dessas premissas, é possível concluir que não é preciso ir tão longe na crítica à tecnologia para problematizar as afirmações de Cage.

Nem toda crítica à tecnologia sugere um “retorno a um passado idílico” ou a simples “recusa dos avanços técnicos”. Concordar com a crítica a essas ideias não implica que Cage ou Fuller estavam corretos na sua visão de que basta uma “redução” da civilização, uma gestão mais eficiente, mais científica, menos política e menos consumista, um modo de vida eco-tecnológico ou “modesto” e “sem excedentes”. A análise da ecologia profunda, por exemplo, mostra que o problema ecológico é muito maior do que o simples cálculo do impacto que o eco-modernismo defendeu. Diz respeito ao tipo de relação estabelecida entre seres humanos e outros seres (HOEFEL, 1996). Como a perspectiva de Cage poderia nos ajudar nessas questões?

Outra questão, aparentemente semântica, é o que significa “tecnologia”. Se é verdade que os povos “selvagens” não tinham uma tecnologia menos avançada, mas sim uma tecnologia mais avançada, como então caracterizar o anarcoprimitivismo como “anti-tecnologia”? O termo “tecnologia” precisa ser usado em dois sentidos diferentes para que ambas as afirmações sejam verdadeiras. Se o sentido dado por Clastres é usado, inverte-se a relação: Fuller é que seria anti-tecnologia, por ainda acreditar no avanço tecnocientífico da modernidade. Fuller não discordou da tecnocracia, e pretendia apenas incluir nela as considerações sobre ecologia e liberdade individual. Zerzan, nesse caso, é que seria pró-tecnologia, já que defende o uso de tecnologias “selvagens”, sem alienação, que permanecem sendo usadas por povos originários, e portanto não defende tecnologias “do passado”, mas sim, segundo o critério usado no texto, tecnologias “mais avançadas”. 

Qual conceito de tecnologia está sendo usado? Não é possível usar o conceito de tecnologia num sentido amplo para criticar o desenvolvimentismo estatal e capitalista, e logo depois usá-lo num sentido estrito para criticar o anarcoprimitivismo ou a negação da tecnologia que é atribuída a esse movimento. De que modo esse texto contribui para o debate sobre o anarcoprimitivismo? Sem tirar o mérito da pesquisa sobre a vida e as ideias de John Cage, não podemos concluir que o texto apresenta uma nova perspectiva anarquista em relação à tecnologia, mas sim uma perspectiva do senso comum, muito pouco informada tanto pela crítica anarquista como um todo quanto pela crítica à tecnologia.


Notas:

[1] Ver https://mises.org/library/men-against-state-expositers-individualist-anarchism-america-1827-1908

Referências:

BEY, Hakim. Primitives and extropians. Anarchy: A Journal of Desire Armed, v. 14, p. 39-43, 1995.

DOHERTY, Brian. Radicals for capitalism: A freewheeling history of the modern American libertarian movement. PublicAffairs, 2009.

FEENBERG, Andrew. Questioning technology. Routledge, 2012.

HOEFEL, João Luiz. Arne Naesse e os oito pontos da ecologia profunda. Tematicas 4.7 p. 69-89, 1996.

KACZYNSKI, Ted. The Truth About Primitive Life: A Critique of Anarchoprimitivism. The Anarchist Library, 2008.

SIMÕES, Gustavo Ferreira. Ouvidos novos para o novo: a tecnologia e o anarquismo de John Cage. ECOPOLÍTICA, n. 13, 2015.

__________. O desconcerto anarquista de John Cage. 2017. Tese (Doutorado) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017.

TURNER, Fred. R. Buckminster Fuller: A Technocrat for the Counterculture. New Views on R. Buckminster Fuller, p. 146-159, 2009.ZERZAN, John; CARNES, Alice. Questioning Technology: Tool, Toy Or Tyrant? New Society, 1991.

ZERZAN, John; CARNES, Alice. Questioning Technology: Tool, Toy Or Tyrant? New Society, 1991.

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