Anarquia anti-civilização

Uma breve introdução à crítica anarquista anticivilização, entendida como crítica ao processo histórico de dominação e destruição ecológica, e defesa de formas de vida diferentes do modelo civilizatório dominante.

Anarquia e crítica à civilização

Anarquia, em seu sentido mais profundo, é a luta pela autonomia frente a todas as formas de dominação: o estado, o capital, o patriarcado, o racismo, a heteronormatividade, a lógica colonial e a objetificação da vida. Historicamente, muitos povos originários resistiram e seguem resistindo à imposição de um mundo centrado no controle e na acumulação. Essas resistências, ainda que não se identifiquem explicitamente como “anarquistas”, compartilham com o anarquismo o impulso pela liberdade e pela recusa à autoridade imposta.

Criticar a civilização significa se opor radicalmente ao colonialismo e suas consequências, pois foi pela dominação colonial que a civilização se espalhou pelo mundo. Significa também questionar a própria noção de “progresso” que sustenta o projeto civilizatório. Uma noção que, mesmo entre anarquistas e comunistas do século XIX, era tomada como um bem em si. A crítica à civilização contemporânea denuncia que o chamado “progresso” não é neutro nem universal, mas implica em destruição, dependência e controle. O que se apresenta como avanço (tecnologias, infraestrutura e conforto) carrega consigo formas intensificadas de alienação, vigilância, extração e devastação.

A civilização é, como dizem alguns pensadores anarquistas contemporâneos, um processo histórico de dominação do ser humano e das demais formas de vida, que transforma a natureza em recurso e os seres em engrenagens de um sistema. Os civilizados amam suas prisões e chamam de liberdade o acesso a comodidades dentro delas.

Perguntar se precisamos da eletricidade, da conectividade permanente, das máquinas que consomem a vida do planeta para manter nossa “rotina” é tratado como heresia, mesmo dentro dos movimentos sociais que se dizem anticapitalistas. Em geral, as críticas à tecnologia se limitam aos seus efeitos colaterais, e não à sua lógica fundamental. É comum ouvir que “o problema não é a tecnologia, mas seu uso”. Mas isso ignora que toda tecnologia carrega consigo uma forma de vida: modos de produção, relação com o tempo, com o corpo, com o outro, com o mundo. Produzir eletricidade por meio de hidroelétricas, por exemplo, envolve o controle forçado de rios, a escavação de terras indígenas, a instalação de redes de vigilância, a dependência de redes globais de exploração. Podemos mesmo dissociar isso do poder?

A ideia de que “as forças produtivas” redimiriam a humanidade se libertas do capital ou do estado ainda encontra defensores na esquerda. Mas a teoria crítica tem mostrado que a própria fé na redenção técnica é parte da ideologia dominante. A civilização se apresenta como redentora de seus próprios crimes: contamina e promete cura, escraviza e promete liberdade, destrói e promete regeneração. A civilização criou os problemas que ela mesma promete resolver.

No século XIX, os anarquistas clássicos, como Bakunin e Kropotkin, viviam num mundo em que a civilização industrial era vista como inevitável. Mesmo os mais radicais pensavam a libertação como um melhor aproveitamento das forças da modernidade. Hoje, após guerras mundiais, colapsos ecológicos, pandemias e vigilância digital em massa, temos outros elementos para repensar isso. A própria ideia de “civilização” como medida de valor humano já se mostra obsoleta, não apenas como conceito eurocêntrico, mas como projeto destrutivo.

As ciências humanas ainda relutam em abandonar a ideia de civilização como destino. A maioria das definições continuam neutras ou celebratórias. Questionar o próprio processo civilizatório é frequentemente descartado como “inviável” ou “antipolítico”. Mas isso está mudando. Cada vez mais vozes de comunidades indígenas, quilombolas, periferias urbanas, coletivos anarquistas, ecofeministas e pensadores decoloniais questionam se o modo de vida civilizado, urbano-industrial, digitalizado e objetificado, é realmente desejável ou mesmo sustentável.

No Brasil, essa crítica se torna especialmente relevante diante do esgotamento da política institucional. A esquerda institucional aderiu à defesa do progresso, do desenvolvimento sustentável e da inclusão no mercado, sem questionar as bases coloniais e extrativistas desse projeto. Enquanto isso, as lutas mais vivas e inovadoras surgem fora das instituições: nas ocupações urbanas, nas retomadas indígenas, nas greves espontâneas e nas redes de cuidado e apoio mútuo que se formam nos territórios abandonados pelo estado.

A crítica à civilização, portanto, não é um luxo teórico. É uma necessidade prática. Não se trata de voltar ao passado, mas de romper com o caminho único imposto como “futuro”. Trata-se de multiplicar os mundos possíveis: mundos onde a vida não dependa da destruição de outras vidas, onde a liberdade não seja medida pelo consumo, e onde possamos reaprender a viver sem dominar violentamente tudo o que existe.

Anarquia e radicalização

A radicalização das lutas sociais no século XX ganhou força com os movimentos feministas e antirracistas, que evidenciaram opressões estruturais além da exploração de classe. Esses movimentos desafiaram a ideia de que apenas a luta econômica seria importante, trazendo à tona questões de gênero, raça e sexualidade como dimensões fundamentais da opressão.

No Brasil, anarquistas têm desempenhado papel significativo em movimentos sociais diversos. Atuando em lutas urbanas, sindicais e agrárias, promovendo a autogestão popular e o federalismo libertário. Articulando-se com movimentos de trabalhadores informais, indígenas e quilombolas, e participando ativamente de protestos contra grandes eventos, como a Copa do Mundo de 2014.

A radicalização, nesse contexto, significa questionar não apenas políticas específicas, mas as estruturas que sustentam as desigualdades. Anarquistas contemporâneos propõem ações diretas e confrontos com as instituições que perpetuam a dominação, o estado e o capital, buscando formas de organização horizontal e autônoma.

Porém, a cooptação de práticas alternativas pelo mercado transforma iniciativas de resistência em nichos de consumo. Estilos de vida “sustentáveis” ou “alternativos” são rapidamente absorvidos pelo sistema, perdendo seu potencial transformador. Além disso, a repressão estatal e a criminalização dos movimentos sociais dificultam a mobilização e a construção de alternativas reais. Essas críticas não são ignoradas pelo movimento anarquista.

Diante disso, em vez de abandonar o anarquismo, queremos criar novas estratégias de luta: como evitar que ações paliativas substituam mudanças estruturais? Como construir movimentos que resistam à assimilação pelo sistema e mantenham sua força transformadora? A resposta pode estar na criação de espaços autônomos, na valorização da solidariedade e na construção coletiva de alternativas que desafiem as estruturas de poder existentes.

Anarquia e as redes sociais

As redes sociais transformaram profundamente a organização política e a prática militante. Com a crescente digitalização das lutas, manifestações de rua passaram a ser também eventos virtuais, promovidos, agendados e disputados em plataformas comerciais. Essa popularização da mobilização, mediada por algoritmos, trouxe consigo formas sutis de captura pelo capital: a lógica da visibilidade substitui a da ação direta, e a performance militante se torna moeda simbólica em um mercado de atenção.

Grupos que se dizem anticapitalistas passaram a operar com estruturas similares às das organizações que criticam: campanhas de doação se tornam branding; redes de apoio mútuo são instrumentalizadas por figuras públicas; projetos autônomos viram vitrines para carreiras acadêmicas, políticas ou culturais. A cooptação não se dá apenas de fora para dentro: ela é reproduzida internamente, mesmo por quem se declara “do lado de cá”.

Militantes com maior capital social nas redes, mais seguidores, engajamento, ou influência em círculos digitais, definem pautas, interpretam os acontecimentos e convocam mobilizações como se falassem em nome de uma base que não está presente. A Internet se torna, assim, uma espécie de parlamento, marcada por bolhas, disputas narcisistas e apagamentos.

Essa estrutura informal de poder digital é ainda mais preocupante quando nos afastamos dos grandes centros. Campesinos, indígenas, moradores das periferias e de comunidades tradicionais, que protagonizam as lutas mais radicais contra o estado e o capital, nem sempre têm acesso a essas plataformas, ou simplesmente não partilham da mesma linguagem. O risco é que a política anarquista se torne cada vez mais midiatizada, elitista e desconectada da base.

A promessa de que a Internet ampliaria a organização popular precisa ser confrontada com seus efeitos reais: vigilância intensificada, rastreamento automatizado de dissidentes, infiltração digital de movimentos e banalização da ação coletiva. Plataformas como WhatsApp, Instagram e X (antigo Twitter) servem como extensão das ferramentas repressivas do estado, ao mesmo tempo em que simulam liberdade de expressão. A própria ideia de “protesto” passou a ser confundida com presença digital.

Além disso, o espetáculo do ódio virou recurso político. Figuras autoritárias aprenderam a explorar os afetos gerados nas redes, usando a repulsa popular como trampolim eleitoral. O culto ao escândalo, a desinformação e a lógica do “engajamento a qualquer custo” favorecem a ascensão da extrema-direita. Como aponta o coletivo Tiqqun, a própria arquitetura da rede é contra-revolucionária: captura o dissenso para o reprogramar em fluxo controlável.

Diante desse cenário, mesmo teóricos otimistas do ciberativismo estão revendo suas posições. A distopia tecnopolítica, antes vista como paranoia antiprogressista, tornou-se uma realidade concreta. Os alertas de críticos como Evgeny Morozov ou autores anarquistas do círculo da “anarquia anticivilização”, como o coletivo Anarchy: A Journal of Desire Armed, começam a ganhar peso, ou pelo menos alguns de seus argumentos. Mas o senso comum ainda trata essas análises como exageradas, quando não risíveis.

A questão é: conseguiremos reagir a tempo? Ou continuaremos terceirizando nossas decisões políticas para sistemas automatizados de comunicação, acreditando que basta estar “conectado” para estar em luta?

Anarquia e legalidade

A crença na legalidade como via de transformação social é uma das mais eficazes ilusões políticas modernas. Ao longo da história, os raros avanços legais obtidos por movimentos populares, do direito ao voto à redução da jornada de trabalho, funcionaram como mecanismos de contenção, não de emancipação. A legalidade regula a intensidade do conflito social, mas não o resolve.

Leis podem atenuar a violência do estado, mas nunca eliminar sua função: garantir a ordem que protege os privilégios. Não há lei acima do poder. O próprio direito, como já denunciava Kropotkin, é instrumento da dominação, não seu limite.

Quando o movimento social apela às leis, supõe a existência de um árbitro neutro. Mas em um estado onde juízes, policiais e empresários caminham lado a lado, essa neutralidade é uma ficção. Mesmo quando “ganhamos” no campo jurídico, os aparelhos repressivos, a mídia corporativa e o moralismo social encontram meios de revogar na prática aquilo que foi conquistado no papel.

A legalidade não é uma arena de disputa justa. Os que operam em seu interior, mesmo os que se dizem aliados, servem mais como gestores de danos do que como agentes de ruptura. Advogados progressistas que condenam o uso da violência nos protestos revelam o limite da sua adesão: precisam da legalidade para continuar exercendo sua função. Mas lutar segundo as regras impostas por quem pode burlá-las a qualquer momento é uma estratégia fadada à derrota.

A repressão às jornadas de junho de 2013 revelou com nitidez esse jogo viciado. Apesar de pequenas vitórias pontuais, como a suspensão de reajustes tarifários, o estado se reorganizou rapidamente para conter a radicalização. Táticas como a dos black blocs, que impuseram resistência real à violência policial, foram criminalizadas e neutralizadas. O movimento institucionalizou-se, perdeu seu ímpeto combativo e foi absorvido por agendas superficiais e gestos simbólicos.

As ocupações de escolas em 2016 representaram uma retomada tática importante, mas também foram alvo de uma repressão mais sofisticada: em vez de tanques, o estado usou pais, diretores e discursos morais. A ofensiva não foi só policial, mas ideológica: evangélicos, professores conservadores e jovens alinhados à nova direita desmobilizaram as ocupações por dentro, acusando-as de imoralidade e criminalidade. Mesmo quando a lei estava formalmente ao lado dos estudantes, ela não serviu de escudo.

O aparato de repressão montado para os megaeventos, Copa do Mundo e Olimpíadas, nunca foi desmontado. Ao contrário, foi intensificado e nacionalizado. Empresas financiaram a militarização do espaço urbano para garantir seus lucros, enquanto os direitos trabalhistas eram desmontados sob o pretexto de combater uma crise “inevitável”.

A política urbana que se seguiu consolidou um novo ciclo de expropriação e exclusão: obras públicas superfaturadas servem ao capital especulativo, não à população. Shoppings e viadutos em áreas de preservação ambiental, remoções forçadas, endividamento forçado via crédito habitacional e transporte público precário compõem o cenário da nova governamentalidade neoliberal brasileira.

A repressão se sofisticou: leis antiterrorismo, restrições ao direito de greve, criminalização de bloqueios de vias e investigações pautadas em monitoramento digital tornaram o estado ainda mais eficiente na neutralização da dissidência. As armas compradas para “combater o crime” são as mesmas usadas contra grevistas, estudantes e sem-teto. A mídia, convertida em aparato ideológico, transforma policiais em heróis e empresários em patriotas, naturalizando a violência contra os que não servem ao mercado.

Esse processo não é particular do Brasil. As tropas brasileiras que participaram da ocupação militar do Haiti foram um ensaio para a repressão doméstica que se seguiria. A militarização da política é global e visa a um novo modelo de acumulação: intensamente excludente, autoritário e tecnologicamente mediado. A pandemia apenas agravou esse cenário.

Mesmo quando a polícia age “dentro da lei”, isso não a torna justa, apenas tecnicamente legal. O estado, ao defender interesses de classe sob a roupagem da legalidade, se deslegitima por completo. A justiça que protege a injustiça estrutural é apenas uma linguagem de dominação. Um poder que se coloca abertamente contra a vida, contra a liberdade e contra os comuns não merece reforma, mas abolição.

Anarquia e democracia

A democracia está em crise. A internet virou o principal meio de participação política, mas também de manipulação. O medo de que a direita volte ao poder fez com que muita gente se apegasse uma esquerda eleitoreira, mesmo sem acreditar de verdade nela. Com isso, cresceu a ideia de que é preciso “fechar os olhos” para os erros da esquerda institucional, só para não dar espaço para o avanço conservador. Gente que antes nem votava agora evita criticar partidos por medo de “fortalecer o inimigo”, apoiando candidatos tidos como “menos piores”, muitas vezes até fazendo piada disso, como se a política fosse só um meme.

Os partidos que se dizem de esquerda se aproveitam de causas sociais para ganhar apoio. Mesmo que quisessem mudar algo de verdade, não conseguiriam, porque dependem do apoio de empresários e banqueiros para ganhar eleições. O dinheiro manda mais na política do que qualquer plano de governo. Por isso, é importante criticar o sistema eleitoral como um todo e pensar em outras formas de ação política, como a auto-organização, a solidariedade e a construção de redes de apoio entre quem tem os mesmos objetivos. Mas, antes disso, precisamos saber o que queremos e com quem podemos contar.

Também precisamos repensar como protestamos. Ultimamente, muitos atos viraram apenas caminhadas pacíficas com escolta policial, que não ameaçam ninguém e não mudam nada. Quando há confronto, a repressão é dura: a polícia usa os protestos como desculpa para prender, intimidar e perseguir quem participa mais ativamente. Não dá para repetir sempre os mesmos métodos e esperar resultados diferentes. É preciso aprender com os erros.

Atacar bancos ou danificar bens públicos e privados pode fazer sentido dentro de uma visão anarquista, que quer romper com o poder do dinheiro. Mas os protestos de hoje têm sido ocupados também por pessoas que são contra qualquer tipo de confronto. Muita gente que participa ainda acredita nas mesmas instituições que queremos questionar, como bancos, empresas e polícia. Igrejas e empresas agora também chamam o povo para ir às ruas, com pautas que dizem defender a democracia e combater a corrupção, mas que no fundo sustentam a mesma moral conservadora de sempre.

O moralismo está invadindo os movimentos sociais. Agora também vemos jovens, mulheres, pessoas negras, LGBTQIA+ e alternativos repetindo o discurso da moral burguesa, pedindo ordem, bons costumes e respeito às instituições. Além disso, grupos de extrema-direita, fascistas, nacionalistas armados, liberais fanáticos, têm se infiltrado nos debates, às vezes se dizendo “anarquistas” ou “contra o sistema”, mas defendendo ideias autoritárias. Eles se organizam como cruzados, com ódio cego e discursos violentos, e muitas vezes acabam fazendo o trabalho sujo do estado.

A repressão hoje não vem só da polícia. Vem também dos nossos chefes, colegas de trabalho, familiares, vizinhos e até dos próprios movimentos. Ela está em todo lugar, em cada casa, em cada rua, em cada rede social. Por isso, pensar e agir de forma libertária exige coragem, atenção e, acima de tudo, união com quem quer, de fato, romper com esse mundo de opressão.

Anarquia e o cotidiano

Nenhuma luta dura para sempre. Mas será que as nossas lutas têm nos deixado mais fortes, ou só nos deixado cansados e esgotados? O que precisa acontecer para que uma mobilização comece? Parece que só conseguimos apoio quando o governo faz algo tão absurdo que é impossível ignorar. A maioria das pessoas está anestesiada, já viu tanto abuso de poder que nem reage mais. Como saber exatamente o momento em que estamos vivendo?

Não dá mais para esperar que uma “classe” inteira se levante junta e do jeito certo. Os partidos de esquerda e suas lideranças já mostraram várias vezes que são bons em trair os próprios movimentos. Os intelectuais também não vão apontar o caminho da revolta. Falar em “consciência de classe” ou “autogestão” parece piada num país onde tanta gente trabalha em coisas inúteis ou precárias. A ideia de que os estudantes ou os trabalhadores são os grandes protagonistas das lutas já não faz mais tanto sentido, porque essas categorias estão cada vez mais fragmentadas ou fora do alcance conceitual da maioria das pessoas. O discurso do empreendedorismo, por exemplo, faz muito trabalhador deixar de se ver como trabalhador, e por consequência como explorado. A automação do pensamento faz jovens desprezarem o estudo e passarem a reproduzir conteúdo de influenciadores sem nenhuma crítica, enquanto se consideram pesquisadores.

A gente não quer só controlar os meios de produção e manter a mesma ideia de progresso, ciência e razão como se isso fosse trazer igualdade. Queremos algo mais profundo: mudar as formas de se relacionar, construir outros modos de vida, criar redes onde possamos compartilhar o que temos, sem precisar de patrão, polícia ou estado. Ser “contra o sistema” não é o suficiente. E tudo que fazemos contra um grupo político pode acabar ajudando outro grupo igualmente ruim. Por isso, é urgente perder o medo da autocrítica. Criticar a si mesmo é mais difícil, mas também mais necessário do que criticar os outros.

Quando a gente não discute bem os nossos métodos e objetivos, fica fácil para grupos com interesses próprios tomarem a frente do movimento. Se a luta não é construída de forma participativa, ela acaba sendo liderada por quem tem tempo, dinheiro e privilégio. E aí vira uma luta por reformas pequenas, não por transformações reais.

As pautas precisam ser concretas, compreensíveis e possíveis de alcançar, mas também precisam ser importantes. Como transformar pequenas vitórias em mudanças maiores? O capitalismo cria empregos inúteis para te manter ocupado, escolas que não ensinam a pensar, hospitais que te obrigam a depender de tecnologias caras, polícia para resolver problemas que poderiam ser resolvidos coletivamente, governos para evitar que você decida por si mesmo. A gente pode tentar melhorar esse sistema ou para substituí-lo.

Melhorar o transporte público ou outros serviços não é pouca coisa. Mas enquanto a gente luta por isso, os ricos e poderosos continuam avançando em outras frentes. Mesmo quando conseguimos vitórias pontuais, se não atacarmos a raiz da desigualdade, é como enxugar gelo.

Esperar que os movimentos um dia adotem de vez a horizontalidade e a autonomia parece ingênuo. Se organizar não é a mesma coisa que entrar para uma organização. De que adianta tirar um governante do poder se quem manda de verdade não foi eleito? O que decide o rumo do país são os interesses de quem lucra com a crise, e é essa base que precisamos atacar, não apenas a superfície.

Toda tática radical, se repetida sem criatividade, acaba virando um espetáculo vazio. Num tempo em que tudo é vigiado, precisamos ser imprevisíveis. Ainda vão surgir novas formas de pensar e agir. Povos indígenas e quilombolas seguem lutando de formas que nem sempre conseguimos entender.

Depois de anos de repressão, prisões políticas, greves proibidas e protestos criminalizados, muita gente passou a repetir: “lutar não é crime”. Mas será mesmo que faz sentido pedir que o estado reconheça a validade da luta contra ele próprio? Nossas ações não precisam ser justificadas com base naquilo que queremos derrubar.

Assumir a ruptura com a civilização não significa abandonar as cidades, os movimentos, a tecnologia ou as formas de organização anticapitalista. Significa entender que não dá pra vencer um inimigo que mente, manipula e mata jogando com as regras dele. Esperar que os agentes da civilização ajam com bom senso é ilusão. Esperar que a população, dominada pela ideologia civilizatória, nos apoie sem nos conhecer também é ilusão. Sem as velhas estruturas dos movimentos sociais do século XIX, precisamos reinventar não só a forma de lutar, mas a nós mesmos. Repensar todo o processo que nos moldou como “cidadãos” dentro de um sistema que não foi feito para nos libertar, mas para aprisionar a vida.

Anarquia e cidadania

Muita gente ainda acredita que a democracia e a cidadania vão resolver nossos problemas. Termos como “cidade acessível” e “cidade sustentável” estão se espalhando entre jovens políticos, arquitetos e urbanistas. Existe um discurso que mistura ideias da esquerda e da direita, dizendo que é possível construir cidades mais “humanas”. Parece bonito, mas para que serve?

Antes de mais nada, precisamos entender como a cidadania foi conquistada e a que custo. Será que mudar leis urbanas ou o plano diretor de uma cidade resolve os problemas da maioria? Muitos urbanistas falam como se vivessem num jogo estilo Sim City, onde mexer em regras e na aparência dos bairros já bastaria. A verdade é que esse jeito de pensar cria uma nova forma de controle. É como uma religião laica que promete “paraísos urbanos” cheios de tecnologia e organização, mas continua excluindo pessoas e perspectivas.

O futuro das cidades parece mais com o que a ficção científica já previa: mais tecnologia junto com menos qualidade de vida. Os bairros “bons” vão se fechar cada vez mais, enquanto o resto vira depósito de gente. Assim como a democracia sempre cria alguma forma de poder central, a cidadania é incompatível com a anarquia. Não existe metrópole anarquista. A vida nas grandes cidades depende de hierarquias, vigilância e destruição ambiental.

A crítica à cidade é, no fundo, uma crítica à civilização. As cidades só surgem com o acúmulo de comida, a domesticação da natureza, o controle do espaço e das pessoas. E isso só funciona com leis, exploração e dominação cultural. A tal “cidadania universal” só existe quando todas as culturas são forçadas a caber num mesmo modelo. A ideia de cidade sustentável é vendida como ecológica, mas no fundo coloca o meio ambiente a serviço da economia.

Boas intenções não são suficientes. A velha ideia de que a educação cosmopolita pode libertar as pessoas também se mostra limitada. No fim das contas, o amor pela cidade vira uma espécie de fé cega no progresso, que trata o modo de vida indígena ou rural como atraso. É uma nova versão da velha ideia de que sem civilização viveríamos na barbárie.

Mas criticar a cidade não significa defender uma volta ao campo ou uma vida rural idealizada. O problema é mais profundo. A expansão das cidades prejudica principalmente os mais pobres. Precisamos ir além das críticas banais à democracia e começar a questionar a própria ideia de cidadania. Shoppings, hipermercados, lojas gourmet, essas estruturas não são neutras.

Não adianta criar hortas comunitárias, feirinhas de orgânicos ou aprender agroecologia se não estamos enfrentando o poder real, o estado e o capital. Sem isso, tudo o que fazemos acaba sendo engolido, transformado em produto ou simplesmente destruído. Termos como “civilização”, “força civilizadora” e “ações civilizadas” são hoje usados justamente por quem quer manter essa estrutura social.

A anarquia tem muito a ganhar com uma crítica mais profunda à ideia de progresso, ao crescimento das cidades, à vida em massa e à tecnologia como salvação. Conceitos como “ciberdemocracia”, “cidades inteligentes” e “urbanismo verde” podem parecer avanços, mas são apenas novas formas de dominação. Estamos chegando num ponto sem volta. As coisas vão estourar, de um jeito ou de outro. E, para enfrentar isso, precisamos falar sem medo sobre o fim do mundo.

É mais fácil imaginar o fim da humanidade do que o fim da civilização. Mas a civilização é insustentável. O fim da civilização não é uma utopia, é a realidade que estamos acompanhando em tempo real. A queda da civilização é inevitável. A questão é se devemos cair junto com ela.

A anarquia contribuiu imensamente com a crítica à civilização, afastando-a de uma ideologia reacionária que busca um retorno a um passado mítico, e colocando as coisas em termos de uma crítica radical aos mecanismos de controle que permeiam o capitalismo, o estado, o patriarcado e a colonialidade. A crítica à civilização tem muito que contribuir com a anarquia, ao trazer para o debate temas importantes para se pensar a crise ambiental e social, a tecnocracia e o etnocentrismo.

Layla AbdelRahim, uma autora da crítica à civilização, afirma que a civilização é, em sua base, um projeto pedagógico violento. Para ela, a civilização parte do princípio de que os seres humanos são naturalmente perigosos, egoístas ou predadores, e que por isso precisam ser domesticados, seja pela escola, pela lei, pela moral ou pela arquitetura da cidade. A domesticação, nesse sentido, não submete apenas a natureza, mas também o desejo, a imaginação e a liberdade humana. A cidade, a escola, a família nuclear e o estado são instituições que ensinam a obediência como virtude e transformam a exploração em normalidade.

AbdelRahim denuncia que a civilização, como projeto, sempre se baseou na separação entre “humanos verdadeiros”, civilizados, urbanos, produtivos, dos “outros”, considerados selvagens, irracionais ou descartáveis. A pedagogia da civilização justifica a exploração com o argumento de que está ensinando a viver de forma “correta”.

Como queremos viver? A crítica à civilização nos convida a imaginar outras formas de convivência que não se baseiam em progresso ou produtividade. A anarquia, ao se abrir a essas críticas, radicaliza a afirmação da vida em suas múltiplas possibilidades.

O fim do mundo talvez seja apenas o fim de um mundo: um mundo domesticado, hierárquico e explorador. O que pode vir depois não precisa ser pior. Pode ser aquilo que realmente queremos, mas não tínhamos noção de que era possível.

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