O neo-tribalismo e a crítica à civilização

Um resumo e uma análise crítica do conceito de neotribalismo do sociólogo francês Michel Maffesoli.


Em O tempo das tribos, o sociólogo francês Michel Maffesoli fala sobre o tribalismo pós-moderno ou neotribalismo, relacionando-o ao declínio do individualismo na sociedade de massas. Maffesoli considera que há um retorno do arcaico na pós-modernidade, usando o termo “arcaísmo juvenil”. A força que move o neo-tribalismo contemporâneo não é um poder instituído, mas uma “potência societal” que precede e fundamenta o poder. Este movimento não pode ser assimilado pelo princípio do logos, mas somente pelo princípio do eros, que não está submetido à razão e sim à corporeidade.

Nos tempos atuais há uma saturação e uma superação do princípio de individualização. O tribalismo é um fenômeno cultural, e não apenas político, econômico e social. Nas palavras do autor, é uma “verdadeira revolução espiritual. Revolução dos sentimentos que ressalta a alegria da vida primitiva, da vida nativa” (MAFFESOLI, 2000, p. 6). Ao invés de progresso, o autor usa o termo “ingresso”, que representa um eterno retorno em espiral de valores arcaicos acomodados ao desenvolvimento tecnológico. Ingressar sem progredir significa um constante “entrar”, sem direção e sem objetivo específico.

Neste ponto, há uma valorização das manifestações lúdicas como fontes de vitalidade e dinamismo para a sociedade de massas. “Pode-se localizar esse vitalismo nas efervescências musicais, mas pode-se, igualmente, observá-lo na criatividade publicitária, na anomia sexual, no retorno à natureza, no ecologismo ambiente, na exacerbação do pelo, da pele, dos humores e dos odores, em suma, em tudo o que lembra o animal no humano. A vida se torna selvagem!” (MAFFESOLI, 2000, p. 8). As estruturas verticais (hierarquia autoritária) deixam de ser suficientes, passamos a pensar em termos de estruturas horizontais (igualdade e participação).

Maffesoli também usa o conceito de “criança eterna” para caracterizar o indivíduo pós-moderno. A criança eterna é fiel ao “mundo como ele é”, mas isso não significa aceitar o status quo. O civilizado que se satura de civilidade precisa resgatar a selvageria para continuar escavando novas fontes de vida para a civilização, que não se sustenta por si só. A barbárie nega e ao mesmo tempo fomenta a “dialética não-teleológica” da civilização.

Segundo Charles Fourier, o homem necessita do prazer para não morrer de tédio. A cidade não deve ser um lugar monótono, mas ao contrário, deve ser um lugar estimulante e plural. As “pequenas hordas” de marginais e delinquentes dão vida à cidade, mesmo que agindo de forma anômica. Isto porque a cidade ideal não deve ser regulada pela moralidade, mas sim pelas paixões. Nisso consistia a crítica à civilização de Fourier: os indivíduos deveriam ter a liberdade de formar associações indefinidas, o que se aproxima do conceito de força societal de Maffesoli. Maffesoli vê no cristianismo primitivo um modelo de humanismo, dizendo que o ideal de “comunhão dos santos” é o verdadeiro ethos da civilização. A rede de computadores, as relações abertas e os diversos tipos de solidariedade representam o novo espírito do tempo (zeitgeist) civilizado.

O afeto liberado das rédeas da moralidade e da racionalidade passa a ser organizado numa “nebulosa afetiva” que reflete uma “união em pontilhado”. A polis é complementada pela tíade (bacanal), Apolo por Dionísio e a função pela disfunção. A anomia é integrada no ideal de cinestesia social. O desenvolvimento do individualismo levou à necessidade de perder-se a si mesmo no outro. É aí que entra a busca pela sociabilidade comunitária ao invés de mera sociedade comum. “O tribalismo lembra, empiricamente, a importância do sentimento de pertencimento, a um lugar, a um grupo, como fundamento essencial de toda vida social” (MAFFESOLI, 2000, p. 11), e ao mesmo tempo, o poder de atratividade dos grupos nos faz transitar constantemente de um para outro, de acordo com a situação.

O poder de atração da comunidade se deve ao que o autor chama de “instinto de imitação” ou “pulsões gregárias”, que eventualmente nos impelem para histerias coletivas ou para as formas contemplativas. Vemos a crescente importância das redes de influência. O jogo político se aproxima cada vez mais dos jogos em rede: os políticos se unem em clãs que já não são separados por grandes diferenças ideológicas ou de comportamento, mas sim unicamente por símbolos. “O processo tribal tem contaminado o conjunto das instituições sociais” (MAFFESOLI, 2000, p. 14). Segundo o autor, as “redes de redes” não são boas nem ruins, devemos perceber que já estamos enredados nelas até o pescoço. O mundo começa a se organizar como um grande conjunto de falastérios.

Podemos chamar isso de politeísmo axiológico (a aceitação de múltiplos valores ao mesmo tempo), de estrutura holomórfica, de lógica inconsistente ou de organização fractal. Esses conceitos são tomados como base do pensamento e da ação e devem ser aceitos por si sós. Na “ambiência erótica da vida social”, o indivíduo sofre a ação quando acredita estar agindo por si mesmo. Temos uma sociedade fusional, onde as distinções são fundidas sem que disso resulte uma unidade definida. É “tudo junto e misturado”. Os sistemas teóricos ocidentais chegaram ao limite. Agora vivemos sob a regência da paixão comunitária. Libertários como Hakin Bey e Bob Black irão se aproximar dessa perspectiva para criticar a sociedade industrial e defender a união da humanidade numa comunidade mágica ou lúdica.

O autor também usa o conceito de “participação mágica”: um modo de participação que não pode ser plenamente racionalizado, e que se dá na relação com os outros (tribalismo), com o mundo (magia) e com a natureza (ecologia). A identidade é considerada como uma prisão, um “enclausuramento na fortaleza do próprio espírito”, e o imperativo passa a ser a “perda de si” e a “sede de infinito”. O dinamismo do devir só pode ser vivido de modo pré-individual, e por isso retornamos ao conceito de inconsciente coletivo em oposição ao de sujeito. Essa perspectiva indica o fim do primado do indivíduo. Agora retornamos ao destino comunitário das interações multidirecionais, à harmonia dos diferentes e à efervescência que quebra as regras e que nos excita a “continuar vivendo”. Para o autor, a conclusão é que “a vida continua”, “não devemos desprezar quase nada” (Leibniz) e não podemos negar a realidade do tribalismo, que está aí, para o bem ou para o mal.

E o que há de errado com isso?

Se você não problematizou nada nessa exposição, bem, leia de novo. O neotribalismo não é uma crítica radical à civilização, mas a criação de um novo modo de civilização, um avanço no processo civilizatório, que integra os contrários e dá um novo dinamismo a um processo civilizatório desgastado pelo seu próprio sucesso. Além de compreender esse processo, é importante perceber que todos esses elementos, aparentemente libertários, são formas assimiladas pelo processo domesticador e usadas como ferramentas para nos manter felizes com nossa própria escravidão. Isso se relaciona com a crítica ao conceito de biocivilização.

Como foi dito naquele texto, a civilização é um processo assimilador, que assimila contrários e se transforma em algo que possa durar mais. Este processo de escavar o passado e tentar apreender o selvagem de modo que ele reavive o civilizado é o que eu chamei de sustentabilidade da morte-vida. A aparente diversidade, redução dos níveis hierárquicos e aumento da mobilidade na verdade coopera com o objetivo central da civilização, que é a alienação, e avança a agenda transhumanista. Não é uma questão de negar políticas de identidade, ancestralidade, diversidade de gênero ou sexual, mas é uma questão de levar a sério o poder que este sistema tem de transformar o discurso que atrai ativistas dessas causas em iscas para novas formas de capitalismo e de controle social que produzem problemas humanos ainda maiores, e que já podem ser vislumbrados na nova ascensão do conservadorismo, do fascismo e do totalitarismo.

Como é que essa potência societal, esse arcaísmo juvenil e esse retorno ao animal no homem podem se relacionar ao retorno de fenômenos como o fascismo? Considere o discurso sobre a natureza e a saúde do corpo que foi feito durante o fascismo histórico na Itália e na Alemanha, a política da pós-verdade, o eco-tecnicismo, a miséria da política e nova ascensão do pseudo-intelectualismo. Falar de um movimento não pode ser assimilado pelo logos ou pela lógica convencional, que não está submetido à razão mas ao corpo é interessante, mas é perigoso. Esta revolução “primitivista” pode tomar contornos fascistas, como o ocorre com o masculinismo (a crença de que a civilização emasculou ou tirou a masculinidade do homem, e evoca uma imagem de macho alfa enquanto homem autêntico). Anarco-primitivistas tem todos os motivos para combater essa distorção da crítica à civilização.

Do mesmo modo, o conceito de “ingresso” leva a uma falsa crítica ao progresso, uma vez que ele pretende fazer a síntese entre primitivo e tecnológico, sendo que essa síntese é a própria raiz do controle técnico sobre a natureza. Desde seu fundamento, o pensamento técnico civilizado objetiva roubar os poderes da natureza por uma espécie de mimetismo. Nas palavras de Francis Bacon (1561-1626), o método da ciência se fundava em torturar a natureza como uma bruxa, para que ela confesse seus segredos. Os métodos de controle sobre a natureza avançaram no mesmo sentido que os métodos de controle sobre a mulher. Se hoje, além da violência física, a mulher sofre também pela manipulação psicológica em relacionamentos abusivos, o novo método de controle da natureza é analogamente sutil: ele implica num discurso ecológico de fachada, que meramente romantiza a relação entre civilizado e meio ambiente, quando a exploração permanece ocorrendo. O discurso de síntese ou cooperação entre ecologia e tecnologia é enganador. A tecnologia é muito menos verde do que parece, e implica em novas formas de dominação sobre a natureza, incluindo a natureza humana, que podem ser ainda mais insidiosas.

Outro ponto é sobre a viabilidade da sociedade de massas, este modo de vida que nunca existiu, e que exige respostas que não se encontram na natureza. Como Maffesoli afirma, o neotribalismo injeta nova vitalidade à ideia de uma sociedade de massas mais orgânica, menos mecânica. Isso não representa necessariamente uma reversão do processo, mas uma consequência do esgotamento natural do processo e uma possível reformulação do processo para sua sustentabilidade. Implica que a sociedade de massas pode se tornar selvagem. Isto é como selecionar características físicas de lobos em cães domésticos. Eles se parecerão mais com lobos, mas não quer dizer que são menos domesticados.

Por último, qualquer marxista poderia fazer a crítica ao socialismo utópico de Fourier, que Maffesoli considera como uma inspiração para o novo espírito do tempo civilizatório. Torna-se nítido como o discurso do afeto substituindo o moralismo pode a um só tempo remediar e aprofundar a crise humana. Pois se a polis é complementada pela tíade, essa perspectiva orgânica, holística e integradora é fundamentalmente durkheimiana, ou seja, ela nega o conflito social inerente e força uma conciliação de forças antagônicas para a manutenção social. Nós vimos essa mesma questão com o conceito de glocal (junção de globalismo com pertencimento local) e que acabaram produzindo perspetivas como o coaching sistêmico, que perdem de vista toda questão social e política do capitalismo e da economia de mercado. O paradigma das redes, como a teoria da relatividade, pode ser usada por ambos os lados da disputa.

Num discurso semelhante ao de Pierre Lévy, Maffesoli convida o leitor a tomar essa nova perspectiva como como um dilúvio  inevitável, uma nova realidade contra a qual não se pode lutar, exceto contra seus efeitos mais nocivos. A luta contra esse monstro só pode ocorrer a partir de dentro. O problema imediato com essa perspectiva é que ainda há seres humanos fora. Estas forças sociais sendo tomadas como agentes naturais, acima dos indivíduos, não atingem todos os pontos do globo. Além disso, há um otimismo exacerbado quanto às novas possibilidades resultantes de uma indefinição social, da mistura aparentemente caótica de elementos, que na verdade pode representar uma forma de autoridade líquida. Se torna necessária uma crítica semelhante à da tirania das organizações sem estrutura. O conceito de participação mágica em si não é suficiente para evitar abusos mais sofisticados do patriarcado e do racismo. A reavaliação do conceito de indivíduo também pode flertar com uma falsa neutralidade, o centro isento que na verdade reproduz preconceitos invisibilizados por uma idealização de uma humanidade “sem cor”, onde a diferença ao invés de aceita é esvaziada de sentido próprio, ou seja, ignorada sem que suas questões históricas sejam de fato resolvidas.

Referência:

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos. Declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.

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7 Responses to O neo-tribalismo e a crítica à civilização

  1. José diz:

    A tirania das organizações sem estrutura não se aplica ao anarquismo também?

    • contraciv diz:

      Depende de que modo você pretende aplicar. Se for para criticar a hierarquia implícita, é bastante importante. Se for pra impor uma hierarquia explícita disfarçada de estrutura organizacional, como se ela fosse necessária para evitar tirania da ausência de estrutura, aí é sabotar a ideia anarquista de autonomia.

  2. Transdutor diz:

    Rapaz, eu adoro este site com todo esses textos. Mas eu gostaria de ver soluções para o ser humano ou pelo menos, tentativas de usar imaginação para se projetar um futuro melhor, sem cair nas falácia da utopia.

    • contraciv diz:

      Eu também gostaria de ver soluções mas parto da ideia de que para visualizar boas soluções, primeiro é preciso ter uma boa visualização do problema. E o problema da civilização é muito arraigado. Apesar de todos esses textos, ainda estamos apenas começando a discutir essas questões. Antes de construir um programa para solucionar o problema, é preciso construir uma crítica bem fundamentada. Eu espero que esses textos ajudem nesse processo e deixo os vislumbres de um futuro melhor para a imaginação de cada pessoa. Por enquanto é o máximo que posso oferecer.

    • Transdutor diz:

      Nossa, esses texto junto com o seu blog são incríveis. Me inspiram muito, inclusive para temas de meus quadrinhos e música que gosto de fazer.

  3. Pallatus diz:

    O pensamento político e social contemporâneo está tendo que se haver com a realidade do tribalismo. Ou seja, a realidade de que os seres humanos se dividem em grupos de relações pessoais, que acabam formando uma identidade (que partilham modos de pensar, valores, costumes, gostos, etc.) e enxergam seu lugar na sociedade a partir dessas identidades. São modos de inclusão de pessoas numa realidade social maior, mas também excluem que não pertence a eles. Não raro, esses grupos têm como critério original uma diferença central como raça, religião ou língua.

    https://exame.com/economia/nunca-abandonamos-a-tribo/amp/

    • contraciv diz:

      O tribalismo racista e nacionalista não é anarquista. As sociedades humanas são muito mais complexas do que essa simplificação que você apresentou. A formação de uma identidade comum e uma fronteira cultural não implica necessariamente em bolhas sociais. O tribalismo tem sido usado como ferramenta de racistas e nacionalistas. Mas essas formas de tribalismo tóxico (criação de comunidades homogêneas e excludentes) não combina com o ideal eco-anarquista, pois exige um poder autoritário.

      Somos anti-fascistas e não colaboramos com tribalistas que reproduzem discurso racista.

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