Desigualdade, Tecnologia e Civilização

Uma reflexão sobre crítica à civilização a partir do artigo “The Origins of Enduring Economic Inequality”, de Bowles e Fochesato.

Bowles e Fochesato (2024) recentemente apresentaram evidências arqueológicas sobre a desigualdade econômica entre caçadores-coletores e agricultores da Eurásia ocidental no período Neolítico (de 11.700 a 5.300 anos atrás). Segundo os autores, essa desigualdade era rara e temporária se comparada à desigualdade duradoura que se estabeleceu nos últimos cinco mil anos. Como essas desigualdades surgiram, e por que surgiram após o Neolítico, e não imediatamente após a Revolução Agrícola?

Os autores propõem que uma cultura de “igualitarismo agressivo” impediu a desigualdade persistente. O “igualitarismo agressivo” é uma defesa coletiva contra as formas sutis de dominação e exploração. A desigualdade persistente seria resultado do desenvolvimento de novas tecnologias agrícolas, como o arado, que aumentaram a produtividade do trabalho. O arado também possibilitou a concentração de poder político e a exploração do trabalho escravo. Eles utilizam evidências como o tamanho das habitações, bens funerários e posse de terras.

A tese tem implicações significativas para a crítica à civilização. Ela reforça a ideia de que a desigualdade social é um produto da organização hierárquica e tecnológica da civilização. Isso contrasta com as afirmações de David Graeber e David Wengrow no livro “O despertar de tudo” (2022).

Graeber e Wengrow argumentaram que a desigualdade e a hierarquia podem ser observadas de forma mais difusa e variada ao longo da história, sem uma linha de desenvolvimento direta entre tecnologia e desigualdade permanente, pois muitas sociedades, mesmo após o advento da agricultura, continuaram a experimentar formas variadas de organização social, às vezes mais igualitárias e às vezes mais autoritárias. Para eles, a desigualdade não foi uma consequência direta do desenvolvimento tecnológico.

Apesar de ambos concordarem que a agricultura, por si só, não causou automaticamente a desigualdade, Graeber e Wengrow rejeitam a ideia de que o desenvolvimento de novas tecnologias agrárias seria um ponto de inflexão. Eles acreditam que a desigualdade é produto de uma escolha humana. A formação de estados hierárquicos e sistemas de escravidão não foi resultado das condições materiais ou da complexidade social e tecnológica, mas sim uma escolha política que muitas sociedades evitaram ou reverteram. Graeber e Wengrow rejeitam a ideia de encontrar um ponto de inflexão da desigualdade e preferem pensar nela como uma possibilidade que sempre esteve presente: podemos sempre escolher viver de um modo igualitário independente do desenvolvimento dos meios de produção.

Já Bowles e Fochesato tendem a ver o surgimento do estado e da escravidão como mecanismos inerentes do desenvolvimento da tecnologia agrícola. A desigualdade duradoura emergiu após um período de relativa igualdade. A introdução da agricultura não causou automaticamente a desigualdade de longa duração, pois era preciso tecnologias específicas para isso. A origem da desigualdade está intrinsecamente conectada ao desenvolvimento da agricultura intensiva e tecnologias de monocultura. Bowles e Fochesato pensam no igualitarismo como uma condição original e frágil, que precisa ser defendida agressivamente.

Em resumo, Bowles e Fochesato defendem uma visão mais determinista, materialista e estrutural do surgimento da desigualdade, enquanto Graeber e Wengrow defendem a flexibilidade cultural e política das sociedades civilizadas. Mas podemos pensar numa terceira perspectiva, na qual a criação de tecnologias para exploração da terra, como o arado, é produto de uma escolha humana ou uma seleção de valores.

Nenhuma tecnologia surge no vazio. O desenvolvimento de ferramentas agrícolas mais eficientes, ainda que pareça uma evolução “natural” das técnicas, reflete uma necessidade de acumulação para além do uso imediato. A escolha de criar tais tecnologias vêm de valores culturais, e talvez seja motivada por mitos fundadores. Assim, o arado não seria exatamente a causa da desigualdade, mas também não está desconectado da mentalidade de centralização do poder e dominação da natureza.

Essa perspectiva permite conciliar parcialmente as perspectivas de Bowles e Fochesato com as de Graeber e Wengrow, e reconhece que as escolhas humanas e contextos materiais estão entrelaçadas. O surgimento da desigualdade não é resultado inevitável da tecnologia nem apenas uma escolha desvinculada das condições materiais, mas um processo dialético no qual tecnologias, valores culturais e relações de poder se moldam mutuamente.

Essa perspectiva também combina com o conceito sociológico de “construção social da tecnologia”. Andrew Feenberg, por exemplo, argumenta que as tecnologias não são neutras nem inevitáveis, mas sim moldadas por valores culturais, interesses sociais e relações de poder. Elas não emergem simplesmente em resposta a necessidades práticas, pois refletem mentalidades e interesses dos grupos dominantes, sendo ao mesmo tempo produtos e fatores da transformação social.

Uma vez que o desenvolvimento tecnológico incorpora escolhas e valores específicos, ele favorece certas formas de organização social em detrimento de outras. As tecnologias agrícolas mencionadas por Bowles e Fochesato não são, portanto, meras técnicas de organização humana ou relação com o ambiente. Elas expressam uma crença na hierarquia entre humano e não-humano. O controle da terra, a exploração do trabalho escravo e a acumulação de excedentes não são meras soluções técnicas para problemas humanos.

Rejeitando o determinismo tecnológico, segundo o qual as tecnologias têm um desenvolvimento linear e inevitável que molda a sociedade, encontramos uma outra perspectiva de crítica à tecnologia, que se foca nas escolhas sobre quais tecnologias desenvolver, e no fato de que essas escolhas são políticas.

Dispositivos tecnológicos também podem ser subvertidos para servir a diferentes finalidades sociais, como sugerem Graeber e Wengrow, mas isso não retira a importância de criticar o próprio desenvolvimento de tecnologias agrícolas, incluindo o arado, como formas de violência ou poder hierárquico. Integrar a crítica construtivista ao debate sobre desigualdade no Neolítico enriquece a análise ao evidenciar que a tecnologia é um agente de mudança social e um produto da ação humana. O desenvolvimento tecnológico molda e é moldado por valores culturais e relações de poder. O arado não é apenas uma ferramenta que permite maior produtividade agrícola, mas também uma expressão material de um sistema simbólico que valoriza acumulação e controle. A escolha de criá-lo pode ser entendida como uma manifestação de valores civilizatórios, onde a dominação prevalece sobre a cooperação.

A crítica à civilização aborda a relação entre tecnologia, desigualdade e os valores culturais que moldam aquilo que chamamos de civilização. Zerzan argumenta que o avanço tecnológico e a complexidade organizacional são produtos de um distanciamento simbólico crescente das sociedades humanas em relação à natureza. Um distanciamento que ele chama de alienação.

A crítica de Ailton Krenak é profundamente enraizada em sua visão de mundo enquanto indígena. Ele critica o antropocentrismo e a relação violenta dos colonizadores com os demais seres da natureza. Para Krenak, a civilização branca impôs uma separação artificial entre humanos e natureza, alimentando a destruição ambiental, a exploração e as desigualdades. O pensamento indígena questiona a lógica que leva à necessidade de tecnologias como o arado, mesmo que a maioria dos povos indígenas hoje pratique agricultura. O surgimento dessas ferramentas pode ser interpretado como resultado de uma desconexão espiritual com a Terra. A monocultura, que é praticamente sinônimo de civilização, não é prática de subsistência comunitária, e sim uma forma de acumulação violenta.

A perspectiva indígena é fundamental para enfatizar um ponto central dessa reflexão: o fato de que nossas escolhas culturais, incluindo aquelas que determinam o desenvolvimento tecnológico, não são escolhas universais. Não são determinadas pela biologia humana, nem pelas necessidades ambientais, nem pelo desenvolvimento do aparelho cognitivo, nem do conhecimento sobre a natureza ou dos valores morais e culturais. As cosmologias dos povos originários revelam que é possível viver sem reproduzir a lógica da dominação.

Tanto Feenberg quanto Zerzan e Krenak rejeitam a ideia de neutralidade da tecnologia. Enquanto o discurso do senso comum ainda é sobre usar a tecnologia para fins mais democráticos, a crítica à civilização coloca em questão a criação de tecnologias que não respeitam a Terra, os animais, os rios e outras existências. As tecnologias de monocultura podem ser vistas como parte de um projeto civilizatório, que separa humanos de sua relação com a natureza e com os outros seres, resultando em hierarquia e violência.

A pergunta a ser feita é se podemos de fato desvincular a tecnologia da lógica de dominação inerente ao projeto civilizatório. A desigualdade poderia ter sido evitada se escolhas diferentes tivessem sido feitas? Este é um convite a uma reflexão crítica sobre as origens da desigualdade, o papel da tecnologia e dos valores culturais nas organizações sociais. No contexto digital, é bastante evidente como inovações tecnológicas podem reforçar estruturas de poder já existentes, mas quase nunca essa associação é feita com tecnologias mais simples ou mais antigas, muitas delas consideradas como “meras ferramentas”, por causa da nossa tendência de naturalizá-las. A crítica à civilização nos desafia justamente a repensar essas crenças estabelecidas sobre tecnologia e civilização.

Referências:

BOWLES, Samuel; FOCHESATO, Mattia. The origins of enduring economic inequality. Journal of Economic Literature, v. 62, n. 4, p. 1475-1537, 2024.

GRAEBER, David; WENGROW, David. O despertar de tudo: uma nova história da humanidade. Companhia das Letras, 2022.

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