Críticas comuns e FAQ anticiv

A ideia de que a civilização pode não ser a coisa mais incrível de todas pode gerar uma reação bastante intensa em quem toma contato com ela pela primeira vez. Esta é uma lista das objeções mais comuns a essa ideia, juntamente com algumas respostas concisas. Na segunda parte há uma lista de respostas rápidas às perguntas e acusações mais comuns sobre a perspectiva anticivilização.


  1. “A medicina moderna nos salva de muitas doenças que mataram nossos ancestrais.”

Na verdade, a maioria dos humanos que viveu após a agricultura ficou muito mais vulnerável às doenças mais preocupantes do que as pessoas na Idade da Pedra, pela simples razão de que, com poucas exceções, as doenças mais mortais para os seres humanos simplesmente não existiam na pré-história. São subprodutos da própria civilização.

Antes da agricultura, os humanos não viviam com animais domesticados dos quais os patógenos se transformaram em formas perigosas para nossa espécie. Somente após a agricultura surgiram doenças infecciosas como tuberculose, cólera, varíola e gripe, em centros populacionais com densidades suficientes para permitir que se alastrassem facilmente depois de terem sofrido mutação para hospedeiros humanos a partir de vacas, galinhas, patos e porcos domesticados.

O mesmo pode ser dito de muitas das doenças não infecciosas mais letais para nossa espécie: elas resultam da civilização. O desalinhamento entre nossa fisiologia e a dieta e estilo de vida incentivadas pela civilização ocidental está por trás de muitas dessas chamadas “doenças da civilização”. Cardiopatia coronariana, obesidade, hipertensão, diabetes tipo 2, muitos tipos de câncer, doenças autoimunes e osteoporose – todos são raros ou ausentes entre os forrageadores.

  1. “Mas dobramos o tempo de vida humana!”

Não, não dobramos. Os forrageadores costumam viver até os 70 ou 80 anos.

A questão é a seguinte: a mortalidade infantil é alta entre eles – geralmente mais de um terço das crianças morre antes de atingir a puberdade. Muitas dessas mortes são crianças nascidas com deficiências que são deixadas para morrer (deficiências que agora são normalmente detectadas nos testes pré-natais, geralmente resultando em abortos). Quando essas mortes muito precoces são incluídas nos cálculos do tempo de vida dos caçadores-coletores (enquanto os abortos não são incluídos nos cálculos do tempo de vida moderno), a expectativa média de vida dos forrageadores é de 35 ou 40 anos. Mas isso não significa que nossos ancestrais morreram rotineiramente nos seus 30 ou 40 anos. Nenhum ser humano jamais foi “velho” aos 35 anos.

Nossos ancestrais forrageadores que sobreviveram à infância geralmente desfrutavam de uma vida ativa e vigorosa de 70 anos. O verdadeiro aumento de nossa expectativa de vida é mais ou menos dez anos nos países industrializados, e muito disso é um retardamento doloroso do processo de morrer, em vez de um prolongamento da vida.

  1. “Mas há muito mais pessoas no mundo! Certamente, isso é um sinal de progresso.”

O que é “bom” para a espécie não é necessariamente bom para o indivíduo. Considere o frango. Charles Darwin sugeriu pela primeira vez que uma espécie selvagem no sudeste da Ásia, conhecida como galinha vermelha selvagem (Gallus gallus), é provavelmente o ancestral da galinha moderna, um palpite confirmado por testes recentes de DNA. Ninguém pode dizer quantas dessas aves existiam antes de serem domesticadas, mas certamente era uma pequena fração dos 50 bilhões de galinhas que vivem hoje.

Galinhas criadas para carne passam a vida em galpões imundos com dezenas de milhares de outras aves. A criação seletiva e o uso imprudente de hormônios do crescimento resultaram em animais que crescem tão rapidamente que suas pernas frequentemente se dobram com seu próprio peso e seus órgãos internos são incapazes de funcionar. As galinhas poedeiras, por outro lado, normalmente vivem seus dias em gaiolas de arame empilhadas, resistindo a tempestades intermináveis ​​de merda e xixi chovendo nelas até que a produção de ovos caia, e então elas são enviadas para o abate. Em que sentido, então, Gallus gallus é uma espécie de sucesso?

A civilização funciona para nós ou nós é que funcionamos para a civilização?

  1. “A guerra era constante entre as tribos.”

Não. Por definição, os caçadores-coletores de retorno imediato não têm recursos acumulados. Sem jardins, sem porcos, sem casas, sem sacos de grãos, sem ouro. Eles carregam o mínimo possível porque são nômades e sabem como encontrar / fazer o que precisam em seu ambiente. Eles se movem pela paisagem, então eles têm pouca necessidade de parar e brigar por qualquer local em particular. Todo mundo está armado e sabe como usar bem suas armas. O que o motivaria a arriscar sua vida atacando-os? O que eles têm que vale a pena morrer?

Além do ilógico de supor que as pessoas sem nada para lutar estavam constantemente brigando, há muitas evidências de que, de fato, a guerra só se tornou onipresente nas sociedades sedentárias, expansionistas, agrícolas, com sistemas sociais hierárquicos e recursos acumulados sem os quais é impossível se espalhar para novos territórios.

  1. “Eu não gostaria de ser forrageador. Eu nem sei como acender uma fogueira! Eu não gostaria de viver sem meu iPhone e outras conveniências.”

Verdade, mas ainda sem sentido. É como dizer: “Estou feliz por não ser francês, nem mesmo falo o idioma!”. Se você fosse, você saberia.

É um erro comum julgar “qualidade de vida” pelas coisas que se valoriza em sua própria vida. Olhamos para os inuíte e achamos que eles devem ser infelizes sem aquecimento central, pizza no microondas e Netflix. Enquanto isso, eles estão olhando para nós e se perguntando como sobrevivemos sem cães de trenó, espaços abertos e gordura de foca.

Uma maneira melhor de avaliar a qualidade de vida geral dos seres humanos (e não só de seres civilizados) é começar perguntando o que é valorizado por todas as sociedades e depois pensar em quão rica ou pobre é uma sociedade nessas áreas. O Netflix e a gordura de focas são específicos da cultura, mas o tempo livre, a autonomia pessoal, muito sono, baixo estresse, boa saúde, risos, muitos amigos, uma rica vida sexual e uma morte relativamente rápida e indolor são todos valorizados em todas as sociedades, e sugerem critérios válidos para avaliar a qualidade de vida. Quando começamos a olhar as sociedades nesses termos, vemos que os povos forrageadores ficam muito à nossa frente quando usamos esses critérios.

  1. “Se a vida de caçadores- coletores era tão boa, por que a civilização está em quase toda parte? É nitidamente uma maneira melhor/mais dominante de viver.”

Essa é uma pergunta justa, mas assim como a população total não é um bom indicador de qualidade de vida, o domínio de uma determinada sociedade não é uma indicação do contentamento das pessoas dentro dela. O poder da civilização é gerado por um conjunto de fatores inter-relacionados: crescimento populacional rápido, hierarquias políticas, escravidão, sistemas econômicos eficientes que centralizam o poder e fomentam o desenvolvimento tecnológico, etc… Todos os quais tornam a civilização “mais forte” do que as sociedades de forrageamento simplesmente porque a civilização cria muito mais pessoas e melhores armas. Mas nada disso implica que os agricultores tenham uma vida melhor que os forrageadores. De fato, a evidência sugere exatamente o oposto.

Poucos forrageadores se juntam voluntariamente ao civilizado. Eles precisam passar fome, serem caçados e levados para a civilização em correntes.

  1. “A vida pré-histórica era uma luta constante para sobreviver. Não, obrigado!”

Quase sem exceção, os caçadores-coletores raramente “trabalham” mais de três ou quatro horas por dia, e essas atividades são os tipos de coisas que fazemos nas férias: caçar, fazer piquenique, pescar, brincar com crianças. A ideia de que é preciso fazer coisas desagradáveis ​​para “pagar” pela vida não está presente nas sociedades de caçadores-coletores – a maioria das quais não tem nem uma palavra para “trabalho”.

  1. “Ótimo, então o que devemos fazer agora? Voltar a viver na floresta?”

Isso não é possível, e eu não recomendaria isso de modo algum. Percorremos um longo caminho e nos tornamos dependentes de muitas coisas que não dá pra abandonar agora: o sistema de produção massiva de energia e bens de consumo primários, por exemplo. Moramos numa espécie de zoológico há tanto tempo que não sabemos mais como viver fora dele. Mas podemos nos mover para esse objetivo, criando um zoológico cada vez mais próximo do mundo que nos criou, até que não seja mais um zoológico.

Adaptado de: https://chrisryanphd.com/civilized-to-death-cocktail-party-cheat-sheet/


Perguntas e respostas (FAQ anticiv)

Esta é uma seção com respostas curtas às principais acusações e questionamentos quanto à perspectiva anticivilização. Estes assuntos são cotidianamente discutidos em profundidade nos diversos espaços que participamos. Novas perguntas e respostas podem ser adicionadas posteriormente. Se tem uma sugestão, inclua nos comentários.

  • É pura hipocrisia criticar a civilização e manter um site na internet sobre isso.

Não é hipocrisia porque não estamos pregando boicote à sociedade civilizada. Não queremos nos isolar dela, nós queremos transformá-la. Transformá-la num sentido profundo, fundamental ou, se preferir, radical. Não apenas mudar os móveis de lugar. Para isso é preciso usar as ferramentas disponíveis na civilização.

  • Se você odeia tanto a civilização, por que vive nela? Vai morar no mato então!

Nossa crítica não é baseada em simples ódio cego, mas sim numa crítica a uma estrutura que compreendemos ser prejudicial. Isolar-se dela não é uma solução real, nossa perspectiva não é a salvação de indivíduos, mas a mudança social.

  • Vocês demonizam a tecnologia e querem que paremos de usar coisas como óculos e saneamento básico, o que é absurdo.

Não, não queremos boicotar essas coisas. Nós queremos colaborar com a teoria crítica à tecnologia, que inclui a crítica tanto à tecnofobia quanto à tecnofilia. Não entendemos tecnologia como algo natural ou que sempre existiu, mas como um sistema de controle totalitário. Não é uma crítica ao uso de ferramentas ou à capacidade humana de criar soluções.

  • E quanto à ciência, ela não avançou muito mais na civilização? Querem que nos conformemos com a ignorância e ausência de métodos científicos?

A crítica à ideia de “avanço científico” é muito maior que a crítica anticivilização. Concordamos com a crítica ao colonialismo epistêmico e ao epistemicídio, acreditamos que outros modos de vida tinham e tem formas de saber tão válidas e “avançadas” quanto as sociedades industrializadas. Também nos utilizamos da ciência e dos métodos, inclusive para criticar as concepções colonialistas de conhecimento, razão e progresso.

  • Mas não dá pra voltar atrás agora que temos todo esse conhecimento científico e tecnológico. A questão é usá-lo para o bem.

Sim, não negamos isso. Não dá pra esquecer o que aprendemos, mas o que aprendemos só tem funcionalidade em uma estrutura social de massas, num ambiente altamente industrializado e urbanizado. Essa estrutura em si é insustentável. Se a superarmos, o conhecimento que nos será útil provavelmente será bem diferente. Essa mudança não é forçada, ela é consequência natural da mudança de modo de vida.

  • E quanto à cultura simbólica, querem que paremos de fazer arte ou usar linguagem?

Do mesmo modo que a crítica à tecnologia, a crítica à cultura simbólica não é uma crítica a uma capacidade humana de imaginar, expressar, abstrair e fazer arte de qualquer tipo. É uma crítica a um sistema de dominação que limitou e impôs valores civilizados a essas coisas, aumentando a alienação e diminuindo nossa capacidade de experimentar o mundo livremente.

  • Vocês idealizam e romantizam demais os caçadores-coletores. Eles também extinguiram espécies. Isso é mito do bom selvagem.

Nós sabemos que povos caçadores-coletores não são anjos. Mas também não são demônios nem inferiores. Saber como viviam é imprescindível para compreendermos quem somos nós, de onde viemos, e para onde queremos seguir. Pouco a pouco a própria ciência, ao observar melhor esses povos, reconhece que nossa relação com esse modo de vida pode ser muito maior do que a civilização nos fez crer a partir de uma narrativa de separação total em relação à natureza. Rejeitar o mito do bom selvagem não necessariamente justifica o mito do bom civilizado.

  • Os primitivistas não acreditam que a civilização emasculou o homem? Não fazem culto à masculinidade? Não são contra o feminismo?

Não, não e não. Infelizmente, assim como existem pessoas que se consideram “anarco-capitalistas”, ou até mesmo “anarco-monarquistas” (por mais absurdo que isso pareça), algumas pessoas também tiveram a infeliz ideia de tentar juntar a crítica à civilização com um anti-feminismo, a ideia de que a civilização inverteu os papéis naturais de gênero, afeminando o homem e masculinizando a mulher, o que resultou na decadência da sociedade. Essa ideia é totalmente conservadora e absurda. A crítica à civilização é inseparável da crítica ao patriarcado. A dominação do homem sobre a mulher é uma das origens da domesticação e da alienação da natureza.

  • E quanto às acusações de transfobia no movimento anticivilização? É um movimento relacionado ao feminismo radical? As pessoas trans não são bem-vindas?

Infelizmente, há especificamente um movimento anticivilização, o Deep Green Resistance, ou DGR, movimento de “ambientalismo radical” dos EUA,  fundado por Derrick Jensen, Lierre Keith e Aric Mcbay, que tem propagado discurso transfóbico, segundo diversos relatos. Mas não nos associamos a esse movimento. Embora Jensen tenha escrito livros que ainda são referência para a crítica à civilização, o DGR tem sido bastante criticado pelas atitudes de seus membros e organizadores. Um dos fundadores, Aric Mcbay, abandonou e critica o movimento, dizendo que ele se tornou autoritário. Jensen tem feito afirmações cada vez mais controversas, se afastando rapidamente do resto do movimento anarquista e anticivilização. Compreendemos que é preciso criticar a transfobia, a homofobia, o machismo, o racismo e outras formas de preconceito num movimento anarquista anticivilização.

  • Mas a ideia de viver em tribos não acaba caindo numa espécie de nacionalismo? Não é o que os nacionalistas brancos pregam, quando criticam a miscigenação que só foi possível por causa da civilização?

Alguns nacionalistas e conservadores da extrema direita podem até pensar assim, mas discordamos totalmente dessas perspectivas. Enquanto podemos ter uma crítica ao modo como a civilização obrigou diversas culturas a cooperar com seu projeto imperialista e expansionista, por meio da escravidão por exemplo, o medo da miscigenação é uma reação xenofóbica, e a procura por comunidades brancas isoladas é uma versão tóxica da busca por comunidade e identidade coletiva. É muito fácil para descendentes de europeus que dominaram o mundo querer se isolar agora que a civilização está entrando em colapso, para se salvar enquanto o resto do mundo sofre as consequências das ações deles. Sem responsabilidade histórica não há como pensar a construção de uma nova organização social, fundada em relações mais justas. Enquanto houver racismo, esse “territorialismo” é só uma forma de proteger privilégios.

  • O anarcoprimitivismo não propõe ação prática nenhuma, não tem uma perspectiva política real.

Esta exigência é equivocada, porque parte do pressuposto que o anarcoprimitivismo estaria como que concorrendo com outras perspetivas políticas, ao invés de complementando e participando delas. As propostas socialistas contra o Estado atualmente também são bastante limitadas. A abolição do Estado é uma perspectiva mais longínqua, que depende de todo um processo, mas não deixa de ser política. A superação da civilização é tão ou mais complexa que a superação da sociedade de classes, e o que podemos fazer agora se encontra bastante limitado, mas não nos afasta da luta mais imediata e urgente contra o capitalismo. A perspectiva política anticivilização é uma continuação, não uma negação, da perspectiva anticapitalista.

  • Mas como vamos alimentar 7 bilhões de pessoas sem agricultura, que é uma invenção da civilização?

Com ou sem agricultura, até quando vamos viver dominando a terra? O problema não é como alimentar todas as pessoas, já que não dá pra fazer toda estrutura civilizada sumir num passe de mágica, da noite pro dia. Viveremos um bom tempo com ela, mas como muitos demógrafos sugerem, temos que pensar um modo de voltar a ter uma população sustentável. O crescimento populacional exponencial foi um efeito de um projeto absurdamente insustentável. Continuar dependendo de avanço tecnológico para manter as pessoas vivas tem um preço crescente sobre a humanidade e o planeta, que não vai poder ser pago pra sempre.

  • O anarcoprimitivismo está associado ao eco-extremismo e eco-terrorismo.

De modo algum. Essas perspectivas políticas são distantes tanto na prática quanto na teoria. Não nos associamos com elas, nem defendemos esse tipo de violência como solução para qualquer problema. Isso não quer dizer que defendamos o puro e simples pacifismo. As forças economicamente dominantes hoje também são extremistas e terroristas, fazem genocídio e se baseiam numa violência muito maior do que qualquer desses grupos de pessoas tão desesperadas para defender o planeta que chegam a desistir da própria segurança e arriscam suas vidas em ações que não necessariamente nos ajudarão a compreender, criticar, abandonar, destruir ou superar a civilização. Ataques com intenção terrorista podem inclusive colocar o movimento em risco.

  • Os anarcoprimitivistas podem participar de ações e organizações políticas de esquerda? Eles podem ser de esquerda?

Por que não poderiam? A discussão sobre a relação entre anarquia e esquerda é longa e polêmica. Mas se eco-anarquistas podem se identificar como parte da esquerda e participar de organizações de esquerda, não há nenhum motivo pelo qual anarcoprimitivistas não poderiam, assim como podem, como outros anarquistas, criticar essas coisas e preferir outras formas de organização e ação.

  • Os anarcoprimitivistas não podem apoiar movimentos sociais, já que esses lutam para melhorar as condições das pessoas NA civilização.

Isso não faz sentido. Embora discursos como o “O Navio de Tolos” e o “The Sinking Ship” levem a crer que a crítica à civilização desdenha das pautas de movimentos sociais pela inclusão de minorias e melhoria das condições de vida, essa não é uma conclusão necessária da perspectiva anticivilização. Não há motivos pra pensar que a perspectiva de uma mudança mais profunda no modo de vida deva nos deixar inertes diante de problemas sociais atuais e imediatos, que podem ser ao menos amenizados com algumas ações. Essas lutas não podem resolver a coisa toda, mas nem por isso são inúteis ou sem sentido. As propostas do tipo “ou tudo ou nada” geralmente vem de militantes que tem condições privilegiadas o suficiente para não precisarem desses movimentos sociais.

  • O anarcoprimitivismo não é abilitista, já que os povos caçadores-coletores matavam crianças deficientes?

Seria, se a proposta fosse simplesmente imitar os povos caçadores-coletores nos mínimos detalhes, independente do contexto. Mas seria uma proposta idiota. Ao invés disso, nós poderíamos fazer o melhor que pudermos para evitar crueldade e sofrimento desnecessário. A questão é, por que esses povos faziam isso? Pura maldade? E como podemos evitar? Vale qualquer preço? É uma questão complexa, mas não podemos reduzir a uma posição dogmática. Teremos bastante trabalho discutindo isso, mas primeiro temos que decidir se a civilização é realmente insustentável e compreender qual é o preço de mantê-la em pé.

  • Qual a diferença entre anarcoprimitivismo e anarquia anticivilização? Qual a relação de ambas com a eco-anarquia?

Eco-anarquia ou anarquia verde é um termo guarda-chuva para diversas perspectivas anarquistas que se focaram na preocupação ambiental. Anarcoprimitivismo e anarquia anticivilização são consideradas como perspectivas eco-anarquistas por sua crítica ao modo como a civilização impõe uma separação prejudicial entre o ser humano e seu habitat natural, cujos efeitos deletérios vão se acumulando continuamente durante seu processo histórico. A diferença entre as duas não é tão óbvia nem bem definida. Ambos criticam a civilização, mas primitivistas tendem a ver as sociedades coletoras como modelo ideal de sociedade humana, enquanto anarquistas anticivilização não necessariamente. Estes últimos podem usar outros critérios para definir e criticar o processo civilizatório, que não a simples transição de sociedades coletoras ou forrageadoras para sociedades agrícolas.

  • Não é meio inútil criticar a civilização, já que as novas tecnologias podem resolver tudo?

Essa pergunta poderia ser feita a praticamente qualquer perspectiva política de crítica social. Se praticamente qualquer problema social pode ser resolvido com uma nova tecnologia, por que se importar em criticá-lo? Há vários motivos. Primeiro, porque não podemos dar uma boa solução para um problema sem uma boa crítica, uma boa compreensão do que é o problema. Segundo, porque a ideia de resolver tudo com tecnologia pode ser um problema em si. No mínimo, não deveríamos colocar todas as nossas expectativas numa solução tecnológica, que pode falhar ou criar novos problemas ainda piores.

  • Essa crítica à civilização só serve aos interesses liberais e burgueses, ela não nos ajuda a construir uma sociedade pós-capitalista ou socialista.

Sabemos como o movimento LGBT, por exemplo, pode ser cooptado ou utilizado para fins políticos e econômicos que beneficiam o capitalismo ou a conciliação de classes disfarçada de inclusão social. Isso não significa que a opressão a pessoas com sexualidades fora do padrão não seja real ou não precise ser discutida. Nós não podemos tapar esse buraco no “armário” da civilização. Não adianta querer construir uma sociedade socialista que ignore esse processo de libertação sexual. Com a crescente tendência de conectar cada vez mais nossos problemas ambientais, sociais e psicológicos ao modo de vida civilizado, é inevitável que essa questão também seja mais presente. É previsível que ela seja recebida com a mesma indisposição usual pela maior parte da população no começo.

  • Como eu poderia ser anticivilização se eu sou civilizado e não posso deixar de ser?

Como você poderia ser anti-racista se é branco, ou contra o machismo se é homem? Do mesmo modo que ser anti-racista não é o mesmo que simplesmente assumir que todos os brancos são inimigos, mas sim se opor a uma estrutura de dominação com base numa divisão racial, se você compreende que a civilização é uma estrutura de dominação (baseada na ideia de superioridade de um modo de vida sobre todos os outros), e você é contra essa estrutura, então você é anticivilização.

  • Criticar a civilização não seria uma falácia naturalista? Como afirmar que algo é bom só porque é natural?

A falácia naturalista ou apelo à natureza é uma resposta a um argumento que pretende identificar o que é “bom” (no sentido ético) somente a partir do que é tido como “natural” (no sentido de comum), como por exemplo numa ética utilitarista que pretende dizer que apenas o prazer é inerentemente bom. A crítica à civilização, como a crítica à colonização, não está fazendo uma afirmação ética sobre a bondade inerente dos modos de vida que foram e continuam sendo destruídos pela sociedade que se considera superior. A questão ética é muito maior que isso, assim como ocorre com a ética ambiental e a ética anti-especista. Não é porque deveríamos nos preocupar os rumos da sociedade civilizada que estamos afirmando que tudo que não é civilizado é bom. Além disso, a dicotomia natureza-civilização nem sempre é correta. Nem tudo que é civilizado nega o natural, nem tudo que é natural nega a civilização. Partindo da distinção antropológica entre natureza e cultura, por exemplo, nem tudo que é contrário à civilização é contrário à cultura humana. As culturas humanas não são necessariamente “naturais”, são criações humanas, mas não são necessariamente civilizadas nem levam necessariamente ao tipo de desenvolvimento que resulta em civilização.

  • Eu entendo e concordo em partes com o que está dizendo, mas como mudar essa estrutura? Somos reféns dela!

Isso é o que estamos tentando descobrir. Não é porque não há saídas visíveis agora que não seja possível encontrar uma saída. Primeiro precisamos de mais pessoas procurando e ajudando a construir alternativas.

  • Como eu posso colaborar com essa perspectiva?

Você pode ajudar levando essa discussão para os espaços que você participa. Pode contribuir com comentários, críticas, correções, reflexões, avaliações… Pode nos ajudar a traduzir ou produzir mais material que ajude a disseminar a ideia, melhorar a apresentação e a argumentação, dialogando com mais pessoas e mais perspectivas. Você pode sugerir ações mais “práticas” também, mas não espere encontrar um programa pronto com uma lista de ações pontuais para derrubar a civilização. Nós nem sequer acreditamos que seja possível construir tal programa. Se quer saber mais, eu sugiro paciência. Nós temos uma crítica, não um programa. Isso não é incoerente, simplesmente a civilização não é o tipo de coisa que se pode boicotar ou desfazer daqui para ali.

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3 Responses to Críticas comuns e FAQ anticiv

  1. Diars diz:

    Agradeço muito pelo seu site. Um dos únicos sites anti-civ no Brasil, e com certeza o melhor.

  2. Lúcio diz:

    Agradeço pela nitidez do texto!

  3. TheDragonoyd diz:

    Muito interessante e útil. Me remeteu um pouco as teses do Jason Godesky.

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