
Uma crítica ao “ciberlibertarianismo” que não implica numa defesa da democracia
O livro “Cyberlibertarianism: The Right-Wing Politics of Digital Technology”, de David Golumbia, surge como reação ao apoio de figuras influentes da tecnologia a governos autoritários como o de Trump. A aliança entre Musk e Trump escancarou que a tecnologia não é neutra e não é libertadora por si só. O problema não está apenas que ela é usada para fins capitalistas, mas o pensamento tecnológico em si. Não há como realizar a emancipação humana baseando-se apenas em novas tecnologias.
David Golumbia defende que a base política da tecnologia digital é fundamentalmente de direita. Quando pessoas de esquerda exaltam a internet como espaço de liberdade, acabam, sem perceber, reforçando valores conservadores. As tecnologias digitais foram criadas e estruturadas de modo a promover individualismo, livre mercado e desconfiança das instituições democráticas. A promessa de “liberdade” no mundo digital seria, na verdade, um disfarce para a expansão do poder corporativo.
Golumbia está certo em recusar a narrativa reconfortante de que precisamos apenas “recuperar” a tecnologia. Ele acerta ao identificar o ciberlibertarianismo como uma armadilha ideológica que captura até mesmo aqueles que se consideram de esquerda. Mas quando aponta para a solução, a democracia, ele tropeça na mesma armadilha que tentou desarmar.
A democracia, com suas políticas de regulação, não nos salvará da tecnologia digital. A crença de que a democracia pode cumprir o papel emancipador pode ser questionada pelo mesmo motivo que a tecnologia é questionada: pelo fundamento político inerente a ela.
A democracia, assim como a tecnologia, não é neutra. Carrega uma lógica específica em sua estrutura: a lógica governamental. Mesmo a chamada “democracia direta” precisa de canais legítimos de representação dos interesses.
Tanto o algoritmo quanto a democracia prometem liberdade através da escolha, mas reduzem a liberdade a escolhas aprovadas antecipadamente. Em ambos os casos, não se pode questionar as opções oferecidas.
Golumbia acerta ao mostrar como o ciberlibertarianismo diz “liberdade” quando quer dizer “liberdade dos poderosos de fazer o que quiserem”. Mas a democracia funciona da mesma forma: diz “participação” quando quer dizer “participação nos termos prescritos pela liderança”.
O poder exercido por meio de representantes nunca será poder popular. Toda noção de legitimidade política implica na existência da ilegitimidade e na exclusão de atores políticos. A questão, então, é: quem define o que é legítimo e o que é ilegítimo?
Golumbia aponta para as regulações da União Europeia como caminho a seguir. Mas essas regulações não desmantelaram o poder da tecnologia digital, elas apenas o integraram mais suavemente ao controle estatal. Regular não muda a estrutura.
Políticas como “renda básica universal”, por exemplo, só são possíveis num estado de vigilância total. As “cidades inteligentes” que Golumbia corretamente teme não serão impedidas pela regulação democrática. Serão realizadas em nome da participação cidadã, da gestão eficiente e da sustentabilidade. Quanto mais participativo um sistema é, mais difícil questionar sua própria existência.
Liberdade significa mais do que ter direitos protegidos pelo estado. Significa poder determinar nossas vidas de baixo para cima. Significa poder formular as perguntas em vez de apenas escolher as respostas. Isso não pode ser feito pela política representativa ou participativa.
O regime constitucional inventou o indivíduo. Os direitos civis implicam na violência institucional para garanti-los. Não precisamos defender a legitimidade de especialistas e instituições democráticas. Precisamos questionar por que necessitamos de especialistas e instituições nos dizendo como viver.
As redes produzidas pelo liberalismo são inevitavelmente hierárquicas. O liberalismo busca naturalizar a pirâmide da desigualdade. Queremos acabar com as pirâmides, abolir as desigualdades sociais baseadas em relações de dominação e submissão, forçada ou legitimada pelo “socialmente aceitável”.
A tecnologia digital, a democracia representativa e a ideologia liberal são fundamentalmente hierárquicas porque são construídas sobre a mesma fundação civilizacional.
Golumbia está certo ao recusar soluções simplistas. Está certo ao dizer que “muitas partes da infraestrutura digital atual precisam ser abolidas completamente”. Mas quando diz “abolição”, ainda pensa em termos de políticas democráticas decidindo o que abolir.
A democracia não nos dá permissão para desmantelar tudo que nos domina. Não podemos esperar por regulações que não têm garantia de acontecer e, mesmo acontecendo, não garantem mudança estrutural.
Criticar a tecnologia digital não significa parar de usá-la. Significa mudar a lógica que a produz e a torna necessária. O mesmo vale para a democracia.
Em vez de perseguir reformas para “salvar” a democracia, podemos seguir o exemplo daqueles que a democracia de fato nunca alcança, e redistribuir radicalmente o poder.
Golumbia desmascara as mentiras da utopia tecnológica digital, mas quando oferece a democracia como solução, simplesmente troca uma utopia por outra.
Não precisamos de tecnologia melhor nem de mais democracia. Precisamos de uma premissa melhor para nossas relações. As ferramentas da libertação devem ser forjadas na luta concreta. As ferramentas construídas para nos governar, mesmo quando estão nas mãos certas, são extremamente limitadas. Com elas, só mudamos o tipo de dominação.
A liberdade não pode ser alcançada por canais previamente definidos como legítimos. Ela só pode ser alcançada quando destruímos os canais existentes e criamos espaço para algo novo.
A esquerda tradicional provavelmente dirá que isso não passa de ideologia liberal e que não aponta nenhuma solução. Podemos provar que estão errados comparando o que dissemos com o que os liberais dizem, e apontando exemplos reais de soluções anarquistas sendo aplicadas hoje.
Para o primeiro ponto, podemos apontar para um artigo publicado na revista Reason, mantida por defensores da “liberdade de pensamento” e “liberdade de mercado”, sobre o livro de Golumbia. O autor argumenta que a “revolução digital” é inerentemente “libertariana”, porque acredita em coisas como “bitcoin escapa do controle estatal” e “a internet promove descentralização”.
Ou seja, ele concorda que a tecnologia tem uma política embutida, e que essa política é de direita, mas inverte a conclusão. Essa é uma alternativa à ideia de que a tecnologia é neutra e que o problema é somente o estado, mas assume um caráter “antiestatal” da tecnologia.
Ele esquece que as corporações se beneficiam de privilégios estatais, e que as big techs funcionam como braços do estado. Trata “descentralização e escolha” como automaticamente boas e de direita (ou libertarianas). Mas a liberdade, para ele, significa apenas ter mais opções de mercado. A liberdade do indivíduo não pode se limitar às escolhas de consumo.
Liberais acreditam em “autorregulação do mercado” porque ignoram que o mercado é uma força social necessariamente moldada por uma elite. A maioria dos liberais trata os problemas sociais como problemas de engenharia, que podem ser resolvidos simplesmente criando tecnologias melhores ou mais eficientes.
Essa é uma visão tecnocrática que não tem absolutamente nada a ver com questionar as premissas fundamentais da civilização. Os liberais não criticam de fato a democracia, mas sim a administração pública dos recursos. A governança descentralizada que eles defendem é exatamente o que criticamos quando criticamos a democracia.
O artigo reduz a defesa de instituições democráticas a “estatismo” e, por isso, política de esquerda. Nós não estamos defendendo que as instituições democráticas sejam trocadas por iniciativa privada, e sim que ambas sejam questionadas como formas de concentração de poder.
Para o autor do artigo, a esquerda quer apenas controle centralizado, e qualquer alternativa a isso seria liberal. Neste ponto, é até possível ver a esquerda e a direita concordando entre si. Mas o anarquismo não defende controle centralizado nem controle descentralizado, ou desregulamentação de mercado sem questionar a propriedade privada. Defendemos a abolição do mercado e do estado.
A noção popular de que liberais e anarquistas compartilham a mesma crítica ao estado e à centralização confunde oposição política com defesa de uma “alternativa hegemônica”. Liberais não criticam de fato o estado, e sim a “regulação de mercado”. O estado mínimo preserva o poder dos grandes proprietários, e a suposta ausência de estado em utopias anarcocapitalistas é, na verdade, uma forma social em que o estado se confunde com os proprietários das cidades privadas.
Liberais não criticam a centralização de poder, pois defendem a propriedade privada, que implica em centralização de poder econômico. Eles legitimam essa centralização dizendo que a acumulação de capital é justa. É impossível acumular poder econômico sem acumular poder político.
O artigo concorda com Golumbia sobre a natureza política da tecnologia digital, mas inverte a conclusão, reproduzindo o determinismo tecnológico. Para o autor do artigo, a tecnologia liberta justamente porque se opõe ao controle da esquerda, o que apenas confirma que precisamos de cada vez mais tecnologia.
Ou seja, essa posição não faz o básico que nos propomos a fazer: questionar a tecnologia, o estado e o capital. Ela reafirma os três. A aparência de crítica ao estado não resiste à análise mais profunda, pois contradiz a parceria histórica entre estado e capitalismo. Do mesmo modo, a direita não critica a tecnologia porque não a entende como estrutura de poder. Quando criticam a tecnologia, conservadores cristãos, por exemplo, estão criticando vagamente a “decadência cultural” do ocidente. Mas os valores tradicionais que eles defendem e os valores fundamentais da tecnologia compartilham a mesma raiz de controle sobre a natureza e violência colonial.
Alguns liberais podem celebrar a tecnologia como “libertadora” e negar que ela seja uma força de engenharia social. A esquerda que critica a tecnologia só chega até o ponto de negar que ela possa ser libertadora por si só, mas ainda acredita que a liberdade pode ser alcançada por uma forma de engenharia social que chamam de democracia.
Quando se entende que a própria democracia é uma tecnologia, entende-se que a esquerda democrática não faz nenhuma crítica radical à tecnologia e à sua lógica de funcionamento, ou ao seu caráter político intrínseco, mas uma análise parcial que se limita a criticar a direita. Assim, promove a substituição de uma tecnologia de direita (desregulada) por uma tecnologia de esquerda (regulada pelo estado), que supostamente cumpriria as promessas que a outra não conseguiu cumprir.
Contra essas duas utopias, temos os exemplos históricos de sociedades que não estabelecem nem tecnologia nem democracia como valores centrais. O que há de errado na tecnologia não se resume a ela não estar sob controle da humanidade, mas ao modo como o próprio controle da humanidade sobre o mundo não-humano se estabeleceu por meio da tecnologia. O que há de errado com a democracia não se resume a ela não ter se realizado plenamente ainda por causa do capitalismo, mas ao modo como ela estabelece os critérios de legitimidade da ação política. Esses critérios reproduzem as formas hierárquicas de dominação que são aceitas pela maioria das pessoas e pela ideologia civilizatória.
Contra as utopias civilizadas, não temos somente outras “formas democráticas” ou “tecnológicas”, mas sim formas de organização social que não se encaixam no conceito civilizacional de “democracia” ou de “tecnologia”. Mas explicar isso é outro assunto. Por hora, é suficiente dizer que a crítica ao ciberlibertarianismo pode representar um avanço da crítica à tecnologia no campo da esquerda, mas é um avanço tímido e limitado. A solução proposta não contempla a crítica radical ao estado, ou se mostra inviável por ainda depender de valores colonizadores.
Referências:
Digital Technology Will Not Set You Free – A Review of David Golumbia’s “Cyberlibertarianism: The Right-Wing Politics of Digital Technology” – https://librarianshipwreck.wordpress.com/2025/07/18/digital-technologies-will-not-set-you-free-a-review-of-david-golumbias-cyberlibertarianism-the-right-wing-politics-of-digital-technology/
Deserting the Digital Utopia – https://pt.crimethinc.com/2013/10/04/feature-deserting-the-digital-utopia
Lefties Contemplate the Pain of “Cyberlibertarianism,” Wonder Where They’ll Ever Find a Centralized World to Manage Choice and Behavior – https://reason.com/2013/12/06/lefties-contemplate-the-pain-of-cyberlib/?nab=0

Dá uma olhada nesse jogo de RPG de texto, em desenvolvimento, em parte baseado nesse livro: https://janosbiro.itch.io/fully-automated-space-capitalism Sem dar spoiler,…