A crítica à civilização de Daniel Quinn

Um resumo da obra de Daniel Quinn sobre a civilização.


O romance Ismael (1998), de Daniel Quinn, apresenta um gorila, Ismael, que durante seu cativeiro aprendeu muito sobre a humanidade e que procura um aluno humano para passar seus conhecimentos. Quinn se recusou a resumir sua obra, dizendo que não é “esse tipo de livro”, mas tentarei expor a teoria por trás dela da forma mais direta possível.

Ismael é o primeiro livro de uma trilogia que inclui Meu Ismael (1999) e A história de B (2000). Além da civilização (2001) complementa a trilogia, porém não é um romance e sim um livro de ensaios, que chega a conclusões muito distantes das que a maioria dos leitores de Ismael chegaram. Vou considerar todos esses livros na análise a seguir, apesar de serem tão diferentes que houve até mesmo sugestões de que Quinn não teria de fato escrito Ismael (ele teve problemas com direitos autorais, mas pouco foi falado sobre isso). Em Meu Ismael ele usa o mesmo personagem para reformular algumas teses, dizendo que o personagem do primeiro livro não entendeu exatamente a mensagem. A história de B não envolve o gorila Ismael e se foca mais na questão religiosa, tendo como personagem um padre investigando um crítico da civilização que seria um candidato provável a anticristo. Já em Além da civilização, as afirmações de Quinn estão tão distantes das de Ismael que parecem até contraditórias. Enquanto Ismael condenava a tecnologia em si, Quinn nesse livro chega a falar que é um fã da civilização, e a partir dele passa a se dedicar a dar palestras para empresários que desejam inovações administrativas para suas empresas, e influenciar o uso de seu livro em faculdades.

A tese central de Quinn é que a civilização é uma prisão, um cativeiro. Estar confinado na civilização significa ser compelido a manter o processo de avanço da cultura civilizada, custe o que custar. Ao mesmo tempo, a civilização “mais ou menos nos compele a prosseguir destruindo o mundo para continuar vivendo”. Para Quinn, nós destruímos o mundo por estarmos presos à civilização, e deixar de destruí-lo implica em superar a civilização, abandonando esta cultura em troca de uma cultura sustentável.

Quinn afirma que a cultura civilizada foi construída num processo histórico que tem início definido: o advento da agricultura, ou de um tipo de agricultura chamada por ele de agricultura totalitária. Significa que nem sempre foi o caso dessa cultura existir, e por isso não é necessário que ela continue a existir. Para Quinn, povos nativos são exemplos de culturas sustentáveis, logo não é humanamente impossível viver de forma sustentável. Quinn pretende anunciar que, sendo a civilização uma invenção humana, e não uma manifestação do destino do homem, ela pode ser abandonada e substituída por uma invenção melhor.

Mas por que o homem iniciou a civilização? Quinn interpreta o mito judaico-cristão de Adão e Eva como se o pecado original fosse pensar que podemos ser deuses, isto é, escolher entre o bem e o mal, o que seria uma atribuição exclusivamente divina. Ele usa também o mito de Caim e Abel para dizer que os caucasianos agricultores regaram seus campos com o sangue dos semitas pastores. E usa a teoria da evolução para dizer que o segredo dos povos nativos é que eles seguem a “lei da vida”, que é como uma lei biológica que permite a sustentabilidade de uma espécie.

Por um lado, a cultura seria uma prisão porque somos compelidos por ela a fazer algo que não queremos: destruir o mundo. Por outro, ela é resultado do nosso desejo de sermos deuses, isto é, não ter limites. Quinn diz que nenhum de nós quer destruir o mundo, e, no entanto, cada um de nós contribui com essa destruição diariamente. Mas Quinn acaba se voltando para a ideia de que existem desejos humanos genuínos, e que basta termos a liberdade para exercê-los.

Ismael procura um aluno com o desejo sincero de salvar o mundo. A dificuldade aqui é compreender o que significa estar preso a um processo destrutivo que ao mesmo tempo visa o progresso. O que significa estar preso ao desejo de poder e ao mesmo tempo ter o desejo de salvar o mundo? O verdadeiro objetivo é a sustentabilidade ou a liberdade?

Para Quinn, as revoluções que fizemos em busca de liberdade falharam em nos libertar porque não fomos capazes de encontrar as paredes da prisão, ou seja, identificar em que exatamente consiste nossa prisão. Então, o que realmente nos impede de parar de destruir o mundo? Seria a incapacidade de definir o processo ao qual estamos presos?

A definição do processo é dada historicamente, usando um espectro mais amplo da história humana. Assim, Quinn critica um suposto “vazio da pré-história”: a ideia de que nada aconteceu no período que antecede a cultura que chamamos de civilizada. O que ele aponta é que a pré-história não é vazia, nela ocorreu algo muito significativo: sobrevivemos, o que quer dizer que tivemos sucesso, isto é, vivemos tão bem quanto qualquer outro primata. Partindo do ponto de vista biológico, não há porque esperar algo melhor que isso.

Para Daniel Quinn, portanto, o homem nunca viveu fora da história. Afirmando que os “pensadores basilares da cultura” não sabiam como o homem teria vivido fora da cultura civilizada, Quinn critica a concepção determinista segundo a qual o avanço da cultura civilizada seria o resultado inevitável da história e da evolução humana. Ele critica a ideia de que “o homem daquela ficção conhecida como pré-história atingiu nossa consciência cultural como uma espécie de desencadeador de um processo muito, muito lento, e a pré-história tornou-se uma sequência de pessoas desencadeando um processo, lento, muito lento para se tornarem agricultores e criadores de civilização”.

O ponto central de Quinn é apontar para o modo de vida baseado na agricultura como uma cultura própria, distinta das outras culturas, que se caracteriza pelo acúmulo e pela expansão. Estudar a história da humanidade centralizando-se na história dessa cultura agrícola seria comparável ao geocentrismo, que colocou o planeta terra no centro do universo. Ou seja, Quinn tenta tirar nossa cultura do centro do universo histórico, para colocá-la como inimiga de todas as outras culturas. “Em poucas palavras: a ideia de Revolução Agrícola é que há cerca de dez mil anos as pessoas começaram a abandonar a vida de caça e coleta em favor da agricultura. Essa afirmação é um equívoco em dois planos profundamente importantes. Primeiro, ao sugerir que a agricultura é basicamente uma coisa só (assim como a caça-coleta é basicamente uma coisa só). Segundo, ao sugerir que essa única coisa foi adotada pelos povos do mundo inteiro mais ou menos na mesma época”.

Quinn diz que somos constantemente coagidos pela voz da “Mãe Cultura” a pensar que a nossa história é a história da humanidade. Então, Quinn introduz termos novos para lidar com a questão. Ele chama o nosso tipo de agricultura de “agricultura totalitária”, o que isenta outros povos com culturas agrícolas, mas que nunca formaram impérios. A agricultura totalitária se caracteriza pela produção exclusiva de alimentos para seres humanos, ou da transformação incessante e crescente de biomassa em massa humana, o que se relaciona ao fenômeno da superpopulação. Por isso, Quinn associou a sua crítica a uma tese sobre produção de comida e crescimento populacional. Ele diz que o problema de Malthus foi dizer que não haveria produção suficiente para o excedente populacional, enquanto seu próprio problema é que, embora a produção possa acompanhar o excedente populacional, o planeta não suportará tamanha produção de alimento exclusivamente humano. Ele indica a extinção massiva de espécies nesse ponto: “Com o fim do gorila, haverá esperança para o homem?”.

Este crescimento humano depende do acúmulo de recursos e retira o homem dos ciclos sazonais de fartura e fome. É este processo que gera expansão de um modo de vida específico pelo globo, destruindo outras culturas. “Essa expansão e essa obliteração de estilos de vida continuam sem interrupções pelos milênios que se seguiram, acabando por chegar ao Novo Mundo no século XV e continuando até o presente momento em áreas remotas da África, Austrália, Nova guiné e América do Sul”.

A destruição do mundo, portanto, é resultado da criação de um tipo de economia, baseada no crescimento. Para Quinn, portanto, essa economia deve mudar. Ele não se preocupa muito com as questões éticas que permeiam esse processo. Para ele, trata-se de “mudar de mente”, e “mudar de mente” significa, nesse caso, abandonar uma estratégia de acúmulo e adotar uma estratégia de “competição limitada” ou organização tribal, supondo que esta seria uma forma mais eficaz de realizar os desejos humanos. As pessoas têm que querer mudar por acharem mais vantajoso, e não por qualquer outro motivo.

Um dos pressupostos de Quinn é que o homem está em continuidade com a natureza, sendo parte integrante dela como qualquer outro animal. Ele contrapõe isso à ideia de superioridade humana. Mas não entra no problema da dicotomia entre cultura e natureza: se o homem está em continuidade, porque a civilização não poderia ser uma continuidade do processo evolutivo do homem?

Ele também associa a história humana a uma encenação, indicando que o significado da vida é criado dentro das comunidades, e a grande questão é se este significado é satisfatório para seus membros ou não. Seu ideal de vida primitiva gera controvérsia: “Não estão agitados pelo tédio e a revolta, não estão perenemente debatendo o que deveria ser permitido ou proibido, nem se acusam uns aos outros por não viverem de modo correto, nem sentem pavor de seu vizinho, nem enlouquecem porque suas vidas parecem vazias e sem sentido, nem precisam se estupidificar com drogas para suportar os dias, nem inventam uma nova religião a cada semana para terem algo a que se agarrar, nem estão sempre buscando algo para fazer ou em que acreditar que torne suas vidas dignas de serem vividas”.

Ao mesmo tempo, a questão de Quinn não é exatamente a reconexão com a natureza, a eliminação do Estado ou o regaste de valores autenticamente humanos. Trata-se de levar uma vida satisfatória, seja como for, com ou sem tecnologia, tomando os povos primitivos como exemplo de “sistema funcional”. Em sua crítica à religião, Quinn irá dizer que os povos primitivos eram felizes sem nossas religiões, logo, não precisamos delas para ser felizes. A história desses povos é uma história que “deu certo”, porque seguiu certas leis de construção de culturas. Sua proposta se resume em construir outra cultura que siga essas leis, dadas pela própria natureza.

De certo modo, sua proposta tem um caráter profundamente econômico. Ele julga poder mudar um sistema de transação de produtos por um sistema de transação de “apoio”, ou seja, energia humana. Ele às vezes parece operar com a variável da “dádiva”, mas às vezes também com a ideia de barganhar diretamente com serviços, favores, conhecimentos e habilidades. Isto, segundo ele, geraria igualdade, e não se aproximaria nem do capitalismo nem do socialismo. Então, poderíamos fazer exatamente o que queremos fazer, realizar nossos desejos com mais eficiência, porque não haveria um sistema nos compelindo a acumular coisas para poder viver. “O capitalismo foi apenas a expressão mais recente de uma ideia que surgiu há dez mil anos com a fundação da sua cultura. Os revolucionários do comunismo internacional não se aprofundaram suficientemente para realizar as mudanças que sonhavam. Eles pensaram que poderiam parar o carrossel se capturassem todos os cavalos. Mas, claro, os cavalos não faziam o carrossel girar. Os cavalos eram apenas passageiros, como todos vocês.“.

A ideia é que os outros falharam porque não criaram uma nova estória ou uma nova cultura na qual se inserir. Essa nova estória, no entanto, deve cativar os civilizados, apelar aos desejos, e então se espalhar pelo globo. Quinn cita o iluminismo e o renascimento como exemplos. Talvez por isso ele tenha incentivado a divulgação de suas ideias como princípio de ação em direção à mudança. Dito isso, acho que fica nítido a distância que eu tomei de Quinn quando me aproximei mais do eco-anarquismo e do anarco-primitivismo.

Mais de duas décadas depois, qual é o lugar da obra de Daniel Quinn na vida de quem o leu? Para mim, Quinn apontou para uma direção intrigante, que me levou para ideias às vezes equivocadas, às vezes interessantes, às vezes confusas. Não é a leitura que eu recomendaria hoje, mas é uma que toca, de um modo ou de outro, nos assuntos que eu continuo debatendo até hoje, ainda que sob uma perspectiva diferente.

Referências:

QUINN, Daniel. A história de B. Editora Peirópolis, 2000.

QUINN, Daniel. Além da civilização. Editora Peirópolis, 2001.

QUINN, Daniel. Ismael, um romance da condição humana. Editora Peirópolis, 1998.

QUINN, Daniel. Meu Ismael: o fenômeno continua. Editora Peirópolis, 1999.

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