A civilização é a causa original do ecocídio

Um ensaio sobre ecocídio, sustentabilidade, civilização, capitalismo e ecossocialismo, baseado num texto de Kollibri terre Sonnenblume e nas ideias de Ailton Krenak.


Antes de começar, peço licença a Ailton Krenak para usar as palavras dele na minha própria moldura de pensamento, e aviso que minhas afirmações não expressam necessariamente o que ele pensa.

Recentemente li um texto chamado It’s Not Capitalism that’s Driving Ecocide; it’s Civilization (Não é o capitalismo que está impulsionando o ecocídio, é a civilização), escrito por Kollibri terre Sonnenblume, e resolvi escrever algo sobre isso. Você pode ler a tradução aqui. Eu concordo que não é apenas o capitalismo que está impulsionando o ecocídio e que a sociedade colonialista já estava fazendo isso desde muito antes. Pelo título, algumas pessoas podem achar que ele está dizendo que o capitalismo não é um grande problema, o que seria equivocado já que o texto afirma que “o capitalismo não pode ser reformado e deve ser desmantelado”.

O ponto central do texto deve ser lido como uma pergunta: é possível conciliar o marxismo e o ambientalismo? Embora ecossocialistas garantam que sim, existem algumas complicações a serem resolvidas, especialmente quando se consideram conceitos como “supremacia humana” e antropocentrismo. E com isso não estou dizendo que movimentos como o Earth First sejam mais coerentes. Não tenho condições pra fazer essa avaliação.

O problema é que boa parte da ecologia e do socialismo são antropocêntricas. A maioria dos ecologistas e ecossocialistas não problematizam a civilização. Uma parte do eco-anarquismo compreende essa crítica porque se abriu para outras perspectivas ecológicas. O Estado também não pode ser reformado e deve ser desmantelado. A crise ecológica torna o capitalismo ainda mais contraditório, mas a contradição civilizatória está presente desde a fundação da sociedade de classes: a oposição entre ser humano e outros seres.

A questão é: quão longe o ecossocialismo pode ir na sua crítica ao domínio humano sobre a natureza? Para refletir sobre isso, podemos começar pensando nas palavras de Ailton Krenak: “Botei em questão se tem algo possível de se pensar como sustentável no modo de vida urbano e moderno que nós compartilhamos em vários lugares (…). Qual atividade pode ser sustentável dentro de um sistema desse?”

Se a civilização iniciou o ecocídio muito antes do capitalismo, como pode o fim do capitalismo ser o fim do ecocídio? É possível uma civilização socialista, ecológica e sustentável?

Continuando com a reflexão de Krenak, “a produção de alimento com certeza não é sustentável”. A revolução agrícola (também chamada de revolução neolítica) é considerada um grande avanço na história da humanidade, assim como a revolução verde (uso de novas tecnologias para o aumento da produção agrícola, a partir dos anos 60). Mas ambas foram desastrosas para a natureza e para a vida humana. A biotecnologia representa um próximo passo na mesma direção, enquanto a agroecologia promete reverter os efeitos devastadores dessas “revoluções”, transformando a agricultura numa prática sustentável.

Mas consideremos a sustentabilidade enquanto mito, ou “como uma narrativa que foi criada pelas corporações para continuar conquistando consumidores com a ideia de aquilo que você está consumindo é produzido de uma maneira sustentável, mas é uma mentira”. Neste sentido, como saber se a agroecologia é realmente sustentável?

Mesmo com a agricultura mais ecológica do mundo, é possível que “a conta não feche”, como diz Krenak. Isso porque as necessidades que temos agora não correspondem às necessidades naturalmente sustentáveis para seres humanos. São necessidades criadas pela civilização, que jamais seriam possíveis sem um modo de vida baseado em patriarcado, exploração, acúmulo, expansão, invasão, escravidão, genocídio, epistemicídio e ecocídio. Se de fato “a infraestrutura que existe nas cidades vai sofrer um colapso” e “todas as tentativas do mundo de regular o consumo, produção, distribuição de mercadoria são insustentáveis”, o que fazer?

Bem, nós sabemos o que não fazer. Não podemos continuar assumindo as mesmas premissas de que basta acabar com o desperdício gerado pelo capitalismo, ou investir em avanços científicos e tecnológicos que visem o bem comum (da humanidade) ou invés do lucro de empresas. Isso ainda pode ser insuficiente. A tecnologia nos confere poderes extraordinários. Podemos usar todos esses grandes poderes produzidos pelo nosso “avanço” tecnocientífico para o bem de todas as espécies e do planeta como um todo? Isso é humanamente possível? Isso é possível sem antropocentrismo ou excepcionalismo humano?

É preciso entender que “estamos fazendo escolhas erradas”. Não apenas os capitalistas, mas todos nós estamos fazendo escolhas erradas há muito, muito tempo. Podemos assumir toda a responsabilidade que vem junto com os poderes concedidos pelo desenvolvimento tecnológico? Ambientalistas em geral não criticam a tecnologia ou o modo de vida urbano em si. Pelo contrário, falam de cidades sustentáveis e tecnologia verde. Mas e se o modo de vida urbano e tecnológico for, necessariamente, uma “armadilha”, algo inerentemente insustentável?

A proposta de Krenak é uma sociedade humana que não deixe rastros de sua passagem pela terra. “Nós deixamos rastro demais e toda cultura que deixa rastros é insustentável”. O mais importante dessa ideia, para mim, passa despercebido para a maioria das pessoas: que estamos aqui só de passagem. Não apenas nós enquanto indivíduos, mas a humanidade como um todo está aqui só de passagem. Isso é, a humanidade tem uma existência finita. A civilização é, em muitos sentidos, a negação desse fato. A nossa cultura não se perdeu, não se tornou insustentável por um acidente de percurso. Ela é insustentável desde que nasceu.

Estamos alienados “em relação a origem de tudo que a gente come, bebe, veste”. Mas também estamos alienados em relação ao descarte, isso é, do destino final de tudo que a gente come, bebe, veste, e até do nosso próprio destino final. Nosso modo de vida, nosso consumo e nossa própria existência se tornou insustentável. E por isso tentar ser individualmente “mais sustentável” é uma “vaidade pessoal”. Não mudaremos nada se não mudarmos tudo.

A ideia de que você pode salvar o planeta fazendo sua parte cria “um ambiente psicológico que despista a verdadeira razão” da crise ecológica. O modo como estamos vivendo, num sentido mais fundamental que apenas o sistema econômico, é a causa da crise ecológica. Mas somos levados a crer que não há outro modo de viver, já que estamos no modo mais “avançado”, e já que não podemos “retroceder” ou “voltar no tempo”.

Há outras maneiras de viver, mas como diz Krenak, algumas delas são “racistas e de classe, sugerem que quem sabe viver no mundo são os ricos”. Esta frase pode ser reinterpretada ou completada do seguinte modo: sugerem que quem sabe viver no mundo são os brancos. São os povos que criaram a revolução industrial. São os povos que criaram impérios. São os povos que criaram um modo de vida baseado no uso intensivo de animais e do solo. Percebe? Quem inventou a riqueza e a pobreza?

Podemos impedir os processos industriais de acabar com nossa água? Em outras palavras, podemos impedir a civilização de destruir o mundo? Para citar um dos problemas mais difíceis: como abandonar o uso de combustível fóssil? Como diz Krenak, “o combustível fóssil já deveria ter sido abandonado na década de 90”. Sabíamos que era preciso parar, mas não paramos. Por que vai ser diferente agora?

A esperança numa civilização sustentável guarda uma crença, uma mitologia moderna, que é a “ideia de autossuficiência” da humanidade. Acreditamos que tudo é possível se nos esforçarmos. Basta um sistema melhor. “Com o avanço disso que foi chamado de civilização, e com o advento da globalização, esse circuito tomou conta do planeta inteiro”, diz Krenak. A civilização tem se apresentado como sustentável desde sempre, e tem sempre falhado nisso. Repito: por que seria diferente numa nova civilização?

A experiência urbana nos afastou da natureza. A simplicidade dessa frase é enganadora. Estar afastado da natureza não é somente não saber como viver sem geladeira e fogão. Significa, antes de tudo, não lembrar QUEM você é e o que está fazendo AQUI. “Muitos valores que temos, que achamos fundamentais para a humanidade foram criados e foram incutidos na nossa cultura, na nossa mentalidade”. Não são valores da humanidade, são valores de uma cultura que nega a humanidade, porque nega a natureza. Assim como nega a vida, porque nega a morte.

Essa “perda de memória” é um conceito central. Quando o poeta diz “as pessoas não são más, elas só estão perdidas”, ele reflete uma ideia ancestral. Quando alguém fazia algo errado, os outros membros da comunidade se juntavam para LEMBRAR àquela pessoa das coisas boas que ela fez de de QUEM ELA É.

Desse modo, a pergunta central para a crítica ao ecocídio não é: “como ser sustentável?”, mas sim “quem somos nós?”, ou ainda, “o que é o ser humano?”. Não parece uma pergunta muito pragmática e você pode protestar que precisamos de mais ação e menos filosofia. Porém, a aderência a essa filosofia silenciosa e não questionada da civilização é que nos trouxe até este pesadelo.

É por isso que considero tão importante que Krenak decida falar sobre “cosmovisão”, e mais especificamente, a cosmovisão de que “a Terra é um organismo vivo”. Isso não deve ser interpretado como metáfora. Não é tratar a Terra “como se” ela fosse um organismo vivo. Se a Terra é realmente um organismo vivo, tudo que a civilização entendeu sobre o mundo está errado, porque todo conhecimento civilizado está baseado na objetificação do mundo natural.

O aquecimento global é apenas a febre da Terra. Não é a doença em si, mas um sintoma. Ambientalistas tradicionais se concentram em tratar o sintoma, mas como tratar a doença? Como diagnosticar a doença?

O ser humano é capaz de sobreviver se largado pelado no mato, mas não é capaz de causar muito dano ao meio ambiente. Para destruir o seu habitat, é preciso criar ferramentas e técnicas especiais para isso, que nada tem a ver com a necessidade de sobrevivência. As culturas que não criaram esses aparatos “não estão engajados no consumo planetário”. Se esses povos são o “remédio”, nos dizeres de Krenak, quem ou o que é a doença? Como ele diz, “sobrou gente fora desse balaio civilizatório que ainda sabe, ainda reflete sobre uma cosmovisão, estão protegidos por essa memória e são capazes ainda de pensar outros mundos e construir outras perspectivas de mundo”. Isso sugere que nós, civilizados, somos aqueles que esqueceram quem são, estamos presos numa única forma de pensar e construir o mundo. Nossa visão é restrita. O peso do sistema técnico que criamos para alterar o mundo como bem entendermos pode ser impossível de carregar, insustentável num sentido mais profundo da palavra.

A tecnocultura civilizatória “é fascinante”, mas também “é um veneno”. “Todo mundo cria dependência com relação a esse grande abarcamento do mundo das aparentes necessidades humanas”. É um vício, como também diz Kollibri. Agora imagine o quanto é difícil se livrar de um vício coletivo que nos domina há milhares de anos… Lógico que parece utópico. Mas ao mesmo tempo, nada poderia ser mais irrealista do que permanecer nesse vício. Como deveria estar nítido, o maior dano desse vício não é exatamente à Terra, mas ao espírito humano. Do mesmo modo que, aquele que pesa excessivamente na vida da sua própria família, causa mais dano à sua própria auto-estima que à sua família.

Não conseguimos eliminar esse peso da nossa consciência. Estamos experimentando uma “dissociação” entre a experiência humana e o planeta. Porém, não destruímos o mundo sem saber o que estamos fazendo. Utilizamos toda nossa inteligência nesse projeto. A necrocivilização, para fazer um paralelo com o necrocapitalismo, nos colocou num mundo simulado, no qual gostamos de estar. Nos leva a fingir que tudo vai ficar bem, quando obviamente não vai. Obviamente o dano que causamos ao mundo não pode ser simplesmente apagado. Como uma mentira que foi sendo mantida a todo custo, as consequências de admitir a verdade agora são necessariamente desastrosas para nós.

“Fomos convertidos a uma ideia de humanidade que não é real. É uma pós-humanidade”, diz Krenak. A humanidade que tentamos realizar não pode se realizar. A tentativa de realizar esse ideal, passando por cima dos outros, é o processo civilizatório, “é o núcleo do pensamento colonial”. Os conceitos de civilização e de humanidade que usamos estão impregnados de colonialidade. “O colonialismo diz: vamos modernizar, vamos civilizar, vamos humanizar”. A saída não é colonizar outros planetas, mas conhecer a si mesmo.

O quão longe os críticos tradicionais do capitalismo tem ousado ir na viagem “para dentro de nós mesmos”? O quanto tem questionado aquilo que tem sido considerado como humanamente necessário, e o quanto tem simplesmente aceito o processo histórico civilizado como se este contasse a história da humanidade?

O cerne da crítica ao antropocentrismo pode ser resumido na seguinte frase de Krenak: “O problema é quando pensamos que somos a única vida aqui, a ponto de, quando a base para sua continuidade aqui não for suficiente, a gente vai reproduzir em outro lugar”. Isto me leva novamente à negação do limite, do fim inevitável da vida. Tudo que começa tem um fim. Mas o conceito antropocêntrico de sustentabilidade não enxerga um fim para a humanidade. Mesmo quando a perspectiva ecológica se considera ecocêntrica ou biocêntrica, ela não pensa na existência humana dentro de um ciclo com começo, meio e fim. Ela quer barganhar a continuidade do esquema.

Novas mentes, por outro lado, não querem mais a continuidade do esquema. “É isso que os meninos e meninas estão fazendo, estão dizendo ao mundo que os adultos falsificam uma narrativa sobre o mundo, e eles não querem”. Algumas pessoas percebem isso mais facilmente. Como um amigo recentemente me fez pensar, a civilização criou uma linguagem excludente para pensar o mundo, uma linguagem neurotípica ou “normal”, que exclui a diversidade natural de formas de pensamento, porque essa diversidade não é eficiente para a produção de um projeto civilizatório. É comum pessoas com estruturas mentais neurodiversas terem dificuldade de compreender regras sociais e de comunicação, pois elas não parecem fazer o menor sentido. Somos obrigados a reprimir uma parte de nós mesmos para nos tornarmos “funcionais”, e geralmente isso vem com uma sensação de estar agindo como um robô. De certo modo, é exatamente como qualquer pessoa se sente na civilização, em algum grau. Isso apenas passa mais despercebido quando a sua atuação é aceita pela sociedade. Mentes “normais” se esquecem de como é pensar fora da caixinha que a civilização nos coloca, mas mentes “diferentes” não conseguem esquecer, porque são péssimos em fingir.

É por isso que a tolerância ou convivência com o diferente não é suficiente. É preciso uma “alternância”. A alternância implica em saber passar a bola, e também saber quando ir embora, descansar, parar, desistir. Voltar depois, quem sabe. A maioria dos homens que se sentem ameaçados pelas mulheres tem dificuldade justamente nesse ponto: não sabem perder. Acreditam que todo peso de uma estrutura de opressão milenar pode ser dissipado com uma política de “participação” da mulher nos mesmos esquemas que o patriarcado criou, sem deslocá-los ou incomodá-los de modo algum. Ou seja, acreditam na “continuidade do esquema”. Como se as coisas não precisassem pesar para os homens. Isso só seria possível se o patriarcado não tivesse produzido privilégios. Nunca é fácil perder privilégios e confortos, mas algumas vezes é necessário.

Isso não deveria ser lido como uma apologia ao catastrofismo ou um pessimismo paralisante, ou pior, uma conivência com um sistema de descarte de pessoas. Mas é difícil não se parecer com um sádico quando se tem más notícias para dar. Eu não pretendo “contar a verdade e correr”. Eu pretendo ajudar quem está recebendo a mensagem a suportá-la. É preciso coragem pra abandonar certos vícios. Mas talvez o que nos prenda seja de outra natureza, algo bem mais difícil de abandonar.

Volto à questão principal aqui: o que ambientalistas estão dispostos a perder em nome da alternância com o Outro? A julgar pelo discurso ecológico mainstream, a resposta seria: nada. Eu poderia citar um exemplo: “Eu não concordo que mais progresso será feito apelando para o coração das pessoas do que para suas carteiras”, diz o economista ecológico Robert Constanza, fundador da International Society for Ecological Economics, principal referência em economia ecológica. Parece romântico demais dizer que é justamente o coração, e não a razão, que pode nos salvar agora. Se for verdade que a ação humana sempre busca a vantagem comparativa, a cosmovisão apresentada aqui não tem nenhuma chance. Porém, se ela tem algum sentido, a economia como um todo precisa ser questionada, não apenas a economia liberal, mas toda nossa auto-imagem como “ser racional” criado pelo mito do “homo economicus”.

O ecocapitalismo quer colocar um preço na natureza para poder protegê-la. O ecossocialismo quer a propriedade coletiva dos meios de produção (como objetivo final) e uma regulação estatal mais eficaz da economia (como objetivo mais imediato) para proteger a natureza. Como Kollibri sugere, o ecocapitalismo é bem mais fácil de refutar. O ecossocialismo, porém, é bem mais complexo de responder. Isso porque, embora ele possa ser mais ecológico, não é exatamente “sustentável”. Como assim?

A resposta, para mim, começa nessa fala de Krenak: “Em algumas culturas, a ideia de cair está dentro do ciclo da existência. Ela se articula com a ideia da semente, que se enterra, morre e vira a árvore e dá mais semente, e frutas, e vira semente, e enterra de novo. Ciclos”. Nossa cultura judaico-cristã, porém, enxerga a queda como um problema. Nós não queremos cair, somos especiais, estamos destinados a um lugar especial, onde ninguém mais morre e ninguém mais cai. E porque não sabemos cair, não podemos ser realmente sustentáveis, porque negamos a alternância. O ciclo da vida inclui a morte. Não queremos o fim da civilização, queremos evitar o colapso desse modelo econômico baseado em cidades que contemplam a eternidade. Queremos usar as técnicas, os conhecimentos, a ciência e a tecnologia civilizadas para impedir a queda e construir um mundo supostamente avançado, e supostamente mais humano. Ao invés disso, deveríamos aceitar as consequências de um acúmulo imensurável de decisões erradas. Decisões tão erradas que não podem mais ser corrigidas. Precisamos aprender a largar e cair. Podemos fazê-lo, ou o poder civilizado é tentador demais?

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2 Responses to A civilização é a causa original do ecocídio

  1. contraciv diz:

    Este comentário é uma resposta a um comentário feito no Discord:

    “Preciso apenas enfatizar que eu concordaria totalmente com sua crítica, se o que tivesse sido afirmado no texto fosse, de fato, qualquer coisa parecida com a teoria de Morgan. O referencial teórico na verdade é a antropologia de Pierre Clastres e Marshal Sahlins, entre outros. O conceito de civilização usado no texto é diferente do que você usou e do usado pela ideologia dominante, e está definido em outros textos. O texto está inserido num debate muito maior, não é um texto introdutório. Se o pressuposto fosse mesmo o conceito de civilização como sinônimo de “sociedade organizada” aí eu concordaria que seria um argumento eurocêntrico e tautológico. Em momento algum eu culpei um povo. O paralelo mais próximo na verdade seria entre o modo de vida civilizado e a “sociedade de classes”. O argumento é contra um modo de vida baseado em acúmulo e expansão que antecede o “modo de produção capitalista” e cria bases para ele. Não é uma simples repetição do Marx disse, uma vez que parte da crítica anarquista ao estado e à propriedade, e a expande para a relação entre humano e não-humano.”

    • contraciv diz:

      A crítica à civilização não trabalha com o conceito de “civilizações” no plural, como sinônimo de sociedades humanas “desenvolvidas”, mas sim com o conceito de civilização como processo histórico, modo de produção e visão de mundo ao mesmo tempo. A diferença é que esse processo não é exaltado como produtor de avanço para humanidade e sim criticado como alienante e ecologicamente inviável. O texto de Kollibri diz o seguinte: “Enquanto o capitalismo remonta ao século XVI (mais ou menos), a civilização surgiu com a intensificação da revolução agrícola, entre 8.000 e 10.000 anos atrás”. Esta é a premissa central.

      A civilização não é “europeia”, mas também não é “humana”. Ela existe antes do imperialismo europeu, e não chega a todas as partes do mundo. A resistência à civilização ocorreu, assim como a resistência ao estado. O modo de vida civilizado implica em alienação, desadaptação ecológica e destruição de outros povos. Não pode ser caracterizado somente por algo que nós, civilizados, consideramos “avançado” ou “complexo”, como o que muitos povos amazônicos fizeram.

      O conceito de colonialismo aparece a partir da obra de Ailton Krenak, que o usa no sentido de “pensamento colonial”. Então o que o texto realmente faz é relacionar um modo de vida civilizado (baseado em controle excessivo da natureza) com um modo de pensamento colonial (dominação dos povos que vivem em outros modos de vida). Esse controle excessivo é o que Krenak “deixar rastros”: é a falta de cuidado com o modo como se pisa na terra, ou seja, com o impacto daquilo que se faz.

      O pensamento colonial antecede a colonização da América: ele está presente na violência implicada na expansão do modo de vida baseado em acúmulo de excedente. O ecocídio se origina dessa violência. Você fez uma distinção entre colonização e colonialismo, mas nesse sentido o que muda é só a palavra: a crítica é ao pensamento colonial, de dominação do diferente. Ela não parte da ideia de desenvolvimento europeu, até porque esse suposto desenvolvimento é questionado pela crítica. A própria ideia de um desenvolvimento das sociedades humanas em estágios ascendentes é parte da ideologia do progresso. Estamos falando da civilização como modo de vida caracterizado por uma mudança de relação entre humano e não-humano, de uma relação de cooperação para uma relação de autoridade. A civilização é insustentável porque se baseia no poder autoritário do humano sobre o não-humano. Eliminar a distinção entre civilizado e selvagem oculta este conflito político entre humano e não-humano, que surge no contexto das sociedades patriarcais. O conceito crítico de civilização não pode ser ignorado em nome de um conceito que naturaliza o processo histórico de alienação e dominação da natureza.

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