Imposto é roubo? Uma perspectiva anticiv

Esta é uma resposta ao vídeo Imposto é Roubo? de Humberto Matos, do canal Saia da Matrix. O vídeo foi postado em janeiro de 2017, mas revisitado por causa de um vídeo recente sobre o mesmo assunto.


Em primeiro lugar, eu concordo com o argumento central do vídeo, o atual conceito de propriedade privada é legitimado pelo contrato social, ou seja, pelo Estado, e o atual Estado de direito depende do imposto como condição material de sua existência, logo seria contraditório defender a propriedade privada no atual Estado de direito e ao mesmo tempo afirmar que imposto é roubo ou que sonegação não é crime. É um material bastante didático sobre Teoria Geral do Estado e a relação entre propriedade e Estado. O autor parece ter sentido necessidade de fazer posteriormente outro vídeo, mais curto, simples e provocativo, pelo fato de que a maioria dos anarcocapitalistas (ancaps a partir de agora) que assistiram o vídeo tentaram refutar com simples reafirmações da ética libertária.

O melhor argumento, ao meu ver, é que é impossível não utilizar os serviços oferecidos pelo Estado moderno vivendo numa sociedade civilizada. Mas ao defender que precisamos de impostos para que haja propriedade privada, ele acaba sugerindo que precisamos do modo de vida civilizado para nosso desenvolvimento histórico. Não sei o quanto o autor concorda com isso ou se está apenas apresentando uma teoria, mas em todo caso eu aproveitei essa oportunidade para introduzir a discussão sobre crítica à civilização.

Estado = Civilização

Sim, é possível compreender como Estado implica necessariamente em Civilização. Essa é uma conclusão da abordagem histórico-materialista convencional. Mas alguém poderia perguntar: existe civilização sem roubo? A própria civilização não seria fundada na invasão, expropriação e exploração do trabalho? Haveria então algum sentido em que a frase “imposto é roubo” não seria tão errada assim? Como o autor comenta, “propriedade privada dos meios de produção é roubo”, ou ainda, exploração. E o Estado surgiu justamente  para organizar a propriedade privada dos meios de produção, ou seja, para organizar o roubo ou a exploração. Não que a culpa seja dos impostos em si, eles apenas mantém o Estado, e se não vivemos sem Estado, não podemos viver sem imposto. Mas libertarianos acreditam que a diminuição dos impostos tem a ver com a diminuição do Estado, ou sua abolição. As teses mais elaboradas pela diminuição do Estado não foram tratadas nesse vídeo.

O ponto interessante para nossa discussão aparece a partir dos 16:07 do vídeo, em que o autor diz não apenas que o Estado implica em civilização ou que civilização implica em Estado, mas que a “sociabilidade estabelecida” implica em contrato social, e logo em Estado. Segundo essa tese, o único modo de viver sem Estado seria viver isolado. O Estado seria consequência inevitável de um avanço da sociabilidade humana. Essa tese encontra vários problemas de sustentabilidade, tendo sido criticada por diversos teóricos sociais que NÃO defendem o liberalismo. É o caso de todos os teóricos que citarei nesse texto, todos eles são contra o liberalismo também.

Mais adiante, o autor diz algo como “o grande salto evolutivo das sociedades humanas se deu justamente com a formação do Estado organizado. Foi só aí que a produção foi organizada a ponto de permitir o aumento da população”. O que seria um “salto evolutivo” e qual sua relação com o “aumento populacional”? Segundo a ecologia humana, seria equivocado considerar o crescimento populacional como uma adaptação biológica benéfica, e logo o uso do termo “salto evolutivo” fica compromissado. O máximo que seria possível é usar o conceito de evolução num sentido genérico, como sinônimo de progresso, e não como conceito biológico. O crescimento populacional possibilitado pelo modo de vida agrário é um fenômeno social, não biológico. Não se trata de um desenvolvimento necessário do processo histórico humano. Segundo o biólogo Stephen Jay Gould, essa concepção de progresso é totalmente inverificável. É ideológica, e não científica.

A civilização não é uma consequência natural do desenvolvimento humano

A divisão de trabalho é de fato um pilar do desenvolvimento da civilização. Mas a divisão de trabalho não é uma construção social? Não pode ser criticada? Não faltam ancaps querendo relacionar o livre mercado com algum tipo de crítica à civilização. Mas são perspectivas completamente incompatíveis. A perspectiva eco-anarquista entende que as sociedades nativas e ancestrais não são menos desenvolvidas que a nossa, e o conceito de propriedade privada não é um sinal de avanço irreversível da história humana, seria na verdade a própria fundação da civilização. Criticar a civilização sem criticar a propriedade privada seria totalmente contraditório.

O contrato social ocorreu em diferentes partes do mundo e diferentes períodos históricos, mas isso por si só demonstra que se trata de uma evolução natural das sociedades humanas? Segundo a perspectiva eco-anarquista, não há evolução natural das sociedades em direção a uma sociedade com Estado. O Estado pode ser considerado como uma solução técnica para resolver o problema da sociabilidade complexa gerada pelo crescimento populacional. Mas esse crescimento populacional não é natural, é também o resultado de uma solução técnica, e se baseia em acúmulo de excedente. Acúmulo de excedente fundamenta o modo de produção que chamamos de civilizado. Esse modo de produção não vem de um desenvolvimento natural das sociedades nem é uma exigência da sobrevivência humana, é apenas uma escolha técnica, cultural, ética e política. Logo, O Estado não apenas funda os modos de relação civilizacionais, como é também resultado das escolhas éticas, políticas, técnicas e culturais que determinaram a substituição do forrageamento pela produção de excedente, que depende de domesticação. Não se trata de evolução biológica ou cultural, mas de dominação de uma macro-cultura sobre as outras. Segundo Pierre Clastres, as sociedades humanas se organizavam “contra” o Estado, isto é, impedindo a formação de algo como o Estado, mas isso não significa que estavam impedindo o desenvolvimento humano ou se sujeitando à fome e à miséria material por causa disso. É uma questão de valores culturais fundantes. As técnicas de produção agropecuárias é que fundam a escassez econômica. É preciso questionar a lógica eurocêntrica que coloca os valores da sociedade dita “organizada” como superiores.

A tese de que tal modo de vida teria surgido de modo natural e espontâneo em diferentes lugares está sendo cada vez mais contestada. Estudos sobre as ondas migratórias indicam que em todos os lugares em que foi desenvolvido um projeto civilizatório, houve alguma forma de contato prévio com uma cultura já civilizada. Foram assim que se espalharam certas técnicas de cultivo e de construção de ferramentas, por exemplo. Não podemos descartar a hipótese de que, assim como aconteceu na colonização da América, a cultura civilizada se espalhou por assimilação, seja de base violenta ou apenas persuasiva (conversão religiosa).

O Estado é uma técnica de controle social

Sem as condições materiais do Estado não se desenvolvem as forças produtivas e não há avanço tecnológico. Isso é verdadeiro se e somente se partimos de um conceito bastante específico de tecnologia. E não há problema nisso, eu mesmo prefiro tal conceito. Mas se admitirmos um conceito mais amplo, como aquele pressuposto na ideia de uma “tecnologia indígena”, temos que admitir que o avanço tecnológico não depende do Estado, ou pelo menos não do Estado como a Teoria Geral do Estado (TGE) o concebe. Este modelo de Estado é necessário apenas para o NOSSO TIPO de avanço tecnológico. Porém, o autor relaciona este avanço tecnológico com o aumento na qualidade de vida, o que implica que sociedades nativas teriam uma qualidade de vida inferior à nossa. E esse é o ponto central da discussão eco-anarquista. O avanço civilizacional, quando analisado mais profundamente, revela prometer muito mais do que realmente entrega. Seus benefícios são relativos, cheios de contradições e custos ocultos, e provavelmente com mais perdas líquidas do que ganhos líquidos. Este assunto tem sido aprofundado por diversos autores, mas infelizmente a discussão ainda não ganhou a atenção merecida. Ela mexe com questões muito sensíveis, talvez ainda mais do que a libertação animal. Pelo que eu tenho acompanhado até agora, penso que os argumentos em defesa da ideia de houve um aumento absoluto da qualidade de vida humana a partir do progresso civilizado se encontram cada vez mais em xeque.

O Estado tem uma motivação (social) pressuposta na sua própria condição de existência. A perspectiva anarquista não nega isso, mas afirma que as pessoas podem se organizar em sociedades sem Estado. Como isso pode ocorrer, se é preciso um período de transição ou não, é uma longa discussão. Na perspectiva anticivilização (ou apenas anticiv), o Estado pode ter sido determinante para a civilização, mas a civilização não é o destino manifesto da humanidade. Os povos mais antigos que se organizaram em civilizações não tem mais de 10 mil anos. O ser humano tem pelo menos 300 mil anos. É inconcebível que o ser humano tenha passado tanto tempo sem nenhum desenvolvimento social. A perspectiva primitivista é polêmica justamente porque desafia uma concepção muito arraigada do que significa desenvolvimento social e humano. Mas a sua base é a simples ideia de que esses povos são pessoas como nós, e suas sociedades são tão desenvolvidas quanto as nossas, ou talvez até mais desenvolvidas, dado que nos encontramos alienados de nós mesmos vivendo num ambiente confinado, separado do habitat no qual e para o qual nossos organismos se desenvolveram na forma que se encontram hoje. Caçadores-coletores não são atrasados, não pararam no tempo, simplesmente escolheram viver de outra forma. E nós também podemos escolher outra forma de viver, não estamos condenados eternamente ao Estado e à Civilização, sejam estes dirigidos pelo sistema capitalista de produção ou não.

O Estado nasceu para garantir aquilo que pretendemos destruir

Antes do Estado não havia noção de propriedade privada dos meios de produção, que é a base do capitalismo, e é justamente essa a relação entre a luta contra o Estado e a luta contra o Capital. Eu sei que marxistas tem uma outra concepção, que não necessariamente implica no fim da propriedade privada, mas na socialização dos meios de produção. Porém, alguns marxistas também se mostram abertos para aprofundar a crítica contra a propriedade privada em si, como fonte primária da alienação humana, e às vezes contra os meios de produção civilizados como um todo, por causa das questões ambientais inerentes a eles.

Dependendo do que se quer dizer quando se chama os bandos de caçadores-coletores nômades de “horda primitiva”, a generalização se mostra enganosa. Trata-se de uma diversidade incrivelmente grande de culturas, cada uma com seu próprio modo de vida, sua própria língua e suas próprias concepções de mundo. O que temos hoje é uma cultura padronizadora, contrária à diversidade. Seria mais correto dizer que a civilização trata-se de “um bocado de domesticadores sedentários”, ou uma horda moderna, que vive num modo de vida baseado em acúmulo de excedente e expansão de território. Precisam tanto expandir, que se não tiver mais terreno pra invadir, pensam em colonizar outros planetas. Este crescimento parece estar acima de tudo e ser um fim em si mesmo.

Estas sociedades “primitivas”, em que não havia estruturas hierárquicas rígidas, não pertencem simplesmente ao passado. São culturas que estão sendo dizimadas até hoje em nome do progresso, e que permanecem resistindo à civilização. São modos de vida pelos quais pessoas ainda estão lutando e morrendo.

O que a perspectiva anticiv traz é justamente o questionamento a essa ideia de que houve um avanço significativo de toda humanidade graças à civilização. “Ao desenvolver o conhecimento da agricultura, as sociedade humanas puderam se sedentarizar”. Puderam, ou foram obrigadas? E o que exatamente significou essa sedentarização? Ao rejeitar o ciclo natural de fartura e fome ao qual todas as outras criaturas terrestres estão sujeitas, e que mantém suas populações em equilíbrio dinâmico com as condições ecológicas do meio, algumas populações foram condicionadas a se desconectar da terra e a tratar a natureza como uma entidade hostil, que precisa ser conquistada à força, dominada, domesticada.

A perspectiva indígena

Esses povos “nômades” na verdade tem muita mais conexão com a terra: conhecem muito bem por onde andam e o quanto podem pegar. Nas palavras de Ailton Krenak, eles pisam leve sobre a terra. A sedentarizarão começa com o estabelecimento de propriedade da terra, mas também aumentou muito a mobilidade geográfica desses povos. Eles passaram a se importar cada vez menos com os ciclos naturais de cada região, e a se mover para cada vez mais longe de suas regiões originais. Passaram a fazer incursões de exploração, para descobrir recursos utilizáveis para construção de obras monumentais nas cidades e centros urbanos, que visavam não o bem público, mas a glória dos governantes. Quando os recursos se esgotam, eles simplesmente se movem adiante. Os grandes desertos nos quais estão as ruínas das primeiras civilizações foram criados pela ação das mesmas. A desertificação se deu por desmatamento, as evidências geológicas apontam que as civilizações nascem em áreas de abundância de vida natural. A civilização é essa máquina que precisa de cada vez mais lenha para continuar nos provendo necessidades crescentes e gerando problemas sociais igualmente crescentes. Nossa carência profunda de significado cresce na medida do nosso desenvolvimento tecnológico, porque todas as nossas criações são substitutos inadequados para algo que tínhamos quando vivíamos no nosso habitat natural, quando fazíamos parte da comunidade da vida. A civilização é a guerra contra a vida.

Uma das principais bases da crítica à civilização é justamente a crítica à divisão de trabalho. O que significa dizer que a divisão de trabalho se deu por aptidão e possibilitou criações mais complexas? Ela possibilitou, ou antes criou tais necessidades, que antes não existiam? O antropólogo Marshall Sahlins, em Economia da Idade da Pedra, demonstrou que tais necessidades foram criadas pela civilização, e não simplesmente supridas como se sempre existissem, ou como se a pobreza material ou técnica fosse a condição humana desde seu surgimento até o advento da civilização. Infelizmente, essa é a concepção filosófica que fundamenta a TGE, o mito hobbesiano sobre um estado de natureza miserável, do qual os seres humanos buscavam desde sempre se livrar, mas só conseguiram nos últimos 10 mil anos, nos últimos 1% da história humana. Acontece que, para Hobbes e os teóricos do século XIX, que desconheciam a idade real da humanidade, era comum pensar que o ser humano tinha uma história muito mais curta, que ele não vagou por aí em hordas de caçadores-coletores nômades por muito tempo. Que tão logo ele aprendeu a usar o polegar opositor e o telencéfalo desenvolvido, ele começou a criar civilização.

Este é o mito que a paleontologia humana tem desbancado. Hoje sabemos que o ser humano existe, com basicamente a mesma estrutura biológica, há muito mais tempo do que os teóricos do século XIX pensavam. Mas ao invés de reformular as velhas concepções de humanidade e sociedade, o que fizemos foi adaptar as teorias e explicar que, se não era isso que estávamos fazendo desde muito cedo, pelo menos era isso que estávamos DESTINADOS a fazer. E isso, deixe-me enfatizar, é totalmente IDEOLÓGICO. Não é científico, é uma crença que provavelmente tem origem religiosa. A ideia de superioridade humana, do direito de conquista pelo dom da racionalidade, de que a razão, como elemento divino no homem, o coloca num patamar acima da animalidade. E no entanto ensinamos isso na escola às crianças, porque é a narrativa que compõe nossa identidade macro-cultural, enquanto seres civilizados. Esta identidade, ou a narrativa mitológica que a fundamenta, é que está ameaçada pela concepção primitivista. Mas ela é repetida por praticamente todos os teóricos clássicos do marxismo e do anarquismo, incluindo Bakunin. E é por isso que o anarco-primitivismo é tão esculachado pela esquerda ortodoxa.

Conclusão: precisamos nos conhecer melhor

O imposto é a condição de existência da sociedade moderna, na qual a maior parte dos humanos vivos hoje habita (unicamente por conta da invasão e do massacre de outras terras e culturas), e que providencia benefícios dos quais desfrutamos em diferentes graus. Porém, essas sociedades não foram construídas com o simples trabalho humano. O imposto que pagamos também financia o genocídio indígena e a colonização sem a qual nenhum desses desenvolvimentos seria possível. Essas vítimas primárias dessa sociedade, as formas de vida não-civilizadas, são a base do nosso desenvolvimento, e elas não recebem esses benefícios. Pelo contrário, são inimigas do Estado. Uma vez que o Estado não pode existir sem expropriar tais formas de vida de seus recursos e condições de existência, seríamos forçadas a admitir que, pelo menos nesse sentido, o imposto realmente implica num tipo de roubo. Mas esse roubo não preocupa os ancaps. Eles não são anticiv nem eco-anarquistas, não compartilham nossa perspectiva política. São contra a civilização comunista e a perspectiva civilizada de superação do capitalismo. Eles não defendem a reconstrução das relações ecológicas entre seres humanos e os demais seres vivos. Eles só querem pagar menos imposto e defender a condição primária do capitalismo, que é a propriedade. Os anticiv são aliados dos comunistas na luta contra o capitalismo de livre mercado. Precisamos nos reunir, conversar, debater esses temas, especialmente com ecossocialistas, porque não creio que nossas diferenças de perspectiva nos afastem tanto assim de uma luta comum por um mundo melhor para todos.

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