Comunismo anticivilização?

Este ensaio é uma tentativa de abordar os conflitos e as relações possíveis entre as perspectivas comunistas e a crítica à civilização. Ele foi escrito com a intenção de iniciar um debate mais proveitoso para ambas as partes, e não para resolver esses conflitos de modo definitivo.

Comunismo e civilização

Comunismo não é mero “planejamento centralizado da economia”. A comuna compartilha as coisas e rejeita a ideia de que alguém seja dono de tudo. O acúmulo capitalista possibilita privilégios que nem mesmo os senhores feudais tinham. Em vez de manter os descontentes na linha pela força, você pode fazê-los acreditar na mobilidade social. O capitalismo emprega a ideologia como forma de controle social porque ela é mais eficiente do que o uso da força. Agora as pessoas que trabalham muitas vezes não conseguem sequer comida e moradia decente. O direito ao voto e à propriedade privada não diminuiu a pobreza, pelo contrário, criou a miséria urbana e destruiu ainda mais a possibilidade de vida fora dos centros urbanos.

Comunismo não é sobre economia estatal. A centralização foi sugerida por alguns marxistas como uma solução temporária para um problema específico, que ocorre na transição entre uma sociedade capitalista plenamente desenvolvida e uma sociedade comunista. Mas não é preciso concordar com Marx ou com os marxistas sobre tudo, especialmente sobre a questão do estado, para ser comunista. Anarquistas como Kropotkin e Emma Goldman também são comunistas, mas não concordam com a necessidade de um estado forte. Muitos marxistas atuais também seguem, de uma forma ou de outra, essa crítica ao estado.

A defesa da propriedade privada sempre será a defesa do estado, porque uma coisa não existe sem a outra. As tragédias humanas não diminuíram na modernidade, apenas mudaram de aspecto. Agora se morre de tanto trabalhar, acreditando que basta trabalhar para ser rico.

Para Emma Goldman, não houve comunismo na Rússia. Ela viveu lá durante o regime de Stalin. O anarco-comunismo não é menos comunista que o marxismo-leninismo.

Onde há propriedade privada dos meios de produção há privilégio de classe. O comunismo não é sobre a atenuação do conflito de classes, mas sobre a abolição das classes sociais. Essa abolição não aconteceu na Rússia nem na China ou nos demais países que se consideram socialistas. Os meios de produção não foram socializados, foram nacionalizados e tornados propriedade estatal, sob controle da elite burocrática que compõe o partido comunista. Isso não é comunismo, é capitalismo de estado.

O que o comunismo propõe é um mundo onde não existem “proprietários de empresas” empregando trabalhadores. Os próprios trabalhadores são os donos, assim como são donos de tudo que produzem. Se você quer um exemplo de algo que se aproxima do comunismo, seriam as cooperativas onde há distribuição dos lucros igualmente entre todos os trabalhadores, e gerenciamento coletivo ou autogestão em vez de chefes.

Para que o comunismo funcione de fato, ele não pode ocorrer num único país. Ele precisa superar o capitalismo globalmente. Essa é a proposta marxista. Marx nunca falou sobre como o comunismo poderia competir com o capitalismo ou funcionar num país como a Rússia ou a China, que não tinham um capitalismo plenamente desenvolvido. Marx via o socialismo como um meio pelo qual sociedades plenamente capitalistas se tornam comunistas num processo político. O socialismo se desenvolve por causa das tensões políticas geradas pelas próprias contradições internas do capitalismo. É o próprio avanço dos meios de produção que torna a extração de mais-valia tão eficiente, que os trabalhadores acabam trabalhando cada vez mais e recebendo cada vez menos, levando a uma situação limite onde a única coisa que eles podem fazer é se organizar e se revoltar contra a classe capitalista, que acumulou toda riqueza sem trabalhar. A questão é justamente que o capitalismo é tão eficiente em produzir acúmulo de capital que esse acúmulo se torna socialmente e economicamente insustentável. O capitalismo destrói a si mesmo, porque destrói suas condições de existência, não só os trabalhadores como também a natureza.

A verdadeira questão não é se devemos ser mais parecidos com os EUA ou com a União Soviética. A questão é como existir sem destruir o mundo e as pessoas. Sem criar guerras, fome, doenças, depressão, ansiedade, violência, miséria, escravidão. Essa também é a questão central da anarquia anticivilização.

Nem todos os comunistas estão tentando imitar o que foi feito na Rússia ou na China. Alguns estão questionando o modo como o capitalismo passou a organizar todos os aspectos da vida humana. Podemos estender essa crítica ao modo de vida “civilizado” como um todo.

Não há liberdade no capitalismo, já que ele é sobre acumular à custa dos outros. Os projetos sociais não são suficientes para alcançar o mundo que queremos. Queremos um mundo onde as pessoas cooperem umas com as outras para conseguir tudo que precisam.

Mas quando você é uma pessoa que mora na rua, que não consegue emprego, que enfrenta doenças ou que não tem rede de apoio, faz toda diferença uma casinha fornecida pelo governo, ou uma ajuda para comer. Essas coisas não são suficientes, mas são necessárias.

Igualdade não é sobre todo mundo viver exatamente do mesmo jeito. É sobre ter a mesma oportunidade de desenvolver seu potencial. Para isso é preciso acabar com os privilégios concedidos pelo sistema capitalista. O comunismo não é uma resposta fácil, ele exige enfrentar problemas complexos e leva tempo para ser aprofundado. A praga anticomunista que tomou conta da internet brasileira não é ruim por criticar o comunismo, mas porque ela impede as pessoas de sequer conhecer o que é o comunismo. Ela ensina pessoas a usar clichês importados da “red scare” estadunidense automaticamente para “vencer” um debate, isso é, impedir o pensamento crítico sobre o capitalismo.

Por outro lado, há também muita gente desinformada reproduzindo um comunismo romantizado vindo de um nacionalismo soviético fanático. Ambos são mais parecidos do que imaginam, e a discussão entre ambos na internet apenas diminuiu a qualidade do debate político. É mais um efeito da despolitização do que de uma suposta “radicalização” dos discursos. Em vez de mover pessoas para o extremismo político, o que aconteceu é que pessoas sem nenhuma participação ou consciência política ativa começaram a discutir sobre esses assuntos como se fossem especialistas, mas alimentadas por memes, pensamentos simplistas, negacionismo e outras bobagens. Não estão de fato discutindo política. Estão apenas acusando um ao outro de desonestidade, ingenuidade ou burrice, usando a classificação automática como “direitista” ou “esquerdista” para todos que discordam.

O capitalismo é um sistema de servidão “voluntária”: você pode aceitar ser explorado ou morrer de fome. O controle foi apenas internalizado. Não é preciso corrente se você acredita que ser explorado é ético. Houve uma mudança no marketing, mas não no produto.

A crítica à civilização

Quem fala em crítica à civilização é facilmente acusado de sugerir um fim catastrófico para a sociedade industrial, o que deixaria populações à mercê de doenças e ameaças naturais. Seria um genocídio. Porém, nem todas as abordagens da crítica à civilização são tão ingênuas a ponto de defender algo que sequer temos o poder de realizar.

A civilização é insustentável. Sabemos disso porque o modo de vida civilizado nos tornou dependentes de uma taxa de consumo que ultrapassa a capacidade de regeneração do planeta. O atual modelo de desenvolvimento econômico e social não pode ser aplicado globalmente. É preciso um modelo completamente diferente. Isso exige reconsideração de valores e prioridades. Os modelos centrados no bem-estar humano nunca são realmente sustentáveis. Como disse Emma Goldman, a autoridade humana é falha e a única autoridade legítima é a autoridade da natureza.

Mas que conceito de natureza estamos usando? Defensores do liberalismo enxergam a natureza a partir das leis de mercado, sugerindo que a solução para a civilização seria o livre mercado. Marxistas clássicos sugerem que a civilização só seria um problema nas condições específicas do capitalismo e que numa sociedade pós-capitalista esses problemas poderiam ser facilmente resolvidos.

Contra ambas as posições, surge uma perspectiva que rejeita a ideia de progresso e de avanço tecnocientífico: a anticivilização. O ponto principal da crítica à civilização é questionar a ideia de que o avanço civilizacional e a construção de cidades abastecidas por tecnologia industrial seriam resultados da simples capacidade humana de superar obstáculos, o desenvolvimento bem sucedido de uma capacidade humana fundamental. “Somos seres racionais, com polegares opositores, logo construímos monumentos, arranha-céus, aviões e foguetes para alcançar a Lua e eventualmente sair desse planeta. Este seria o destino da humanidade”. Essa é uma visão mitológica. Essa mitologia nasceu para justificar um modo de vida baseado em acúmulo e expansão de poder.

História da humanidade versus história da civilização

A população civilizada tem crescido exponencialmente desde a chamada “revolução agrícola”. Fora da área de influência do projeto civilizacional, a população humana permaneceu estável, como qualquer outra população de mamíferos grandes adaptados ao seu entorno. Se a história humana se resumisse ao que aconteceu com as populações agrícolas do Crescente Fértil, então estaríamos desconsiderando a maior parte do tempo em que seres humanos existiram. É isso que fazemos quando usamos o termo “pré-história”, como se os povos que existiam antes não tivessem história. Também não consideramos esses seres como plenamente humanos. Achamos que eles viviam vidas miseráveis. Viviam como animais selvagens, sem nenhuma qualidade artística, política, ética ou epistemológica.

A instabilidade populacional é um sintoma, não a causa dos problemas. A questão não é quanto espaço há para seres humanos nesse planeta, mas a viabilidade de um modo de vida centrado na produção e no consumo, dependente de expansão contínua dos meios de produção. O problema central não é que esse crescimento diminui a durabilidade do processo, mas como ele diminui a vida humana em si, alterando as relações entre as pessoas e demais seres vivos. Os seres não humanos são agora considerados como fonte de recursos a ser utilizada exclusivamente pela humanidade. Esta alteração não é viável, e ela esbarra na discussão sobre o que é o ser humano.

Desenvolvimento das forças produtivas e alienação

Na perspectiva da anticivilização, o processo de desenvolvimento dos meios de produção levou ao aprofundamento da dominação e da alienação, e não há saída deste processo num estágio final, numa superação dialética que eliminaria todos os conflitos humanos. Os socialistas revolucionários falam em reorganizar a sociedade de modo a acabar com o conflito de classes, mas não discutem suficientemente os problemas inerentes ao processo que gerou os atuais meios de produção. Muitos se limitam a acreditar que a produção e o consumo serão regulados pelas necessidades dos trabalhadores. Eco-anarquistas e anarquistas verdes em geral não consideram essa proposta satisfatória, pois ela ainda depende de um processo de crescente enquadramento da natureza num modelo econômico centralizado no humano. Uma sociedade onde todo processo natural é direcionado exclusivamente às necessidades dos seres humanos e regulado por leis humanas é tão condenável quanto uma sociedade onde o trabalho é direcionado à obtenção do lucro e regulado pelas leis de mercado. Ambas são insustentáveis.

A perspectiva política tradicional não problematiza suficientemente o desenvolvimento histórico das forças produtivas. A crítica dela quase sempre está restrita à relação entre pessoas, e não considera a relação entre todos os seres vivos, ou a considera somente com base na relação entre pessoas. Muitos comunistas defendem o avanço das forças produtivas como modo de diminuir o tempo de trabalho humano, supostamente aumentando a liberdade e melhorando a qualidade de vida, mas não consideram que essas mesmas forças submetem outros seres a um grau de controle cada vez maior, enquanto nos submete a uma dependência tecnológica cada vez maior.

Tanto comunistas quanto liberais podem ser deterministas em relação ao desenvolvimento tecnológico. Ambos podem considerar normal que a vida humana seja cada vez mais mediada pela tecnologia, embora discordam quanto à distribuição dos benefícios. Seres não humanos continuarão sendo tratados como propriedades humanas, individuais ou coletivas. A única saída é eliminar a propriedade de seres não humanos, que começou com a domesticação.

Coletivizar uma indústria que precisa extrair, possuir, confinar, hibridar, reproduzir, abater e processar outros seres não resolveria o problema. Tais meios precisam ser abandonados. Não se trata de economizar recursos naturais e humanos, mas de romper as mediações construídas e restabelecer a comunicação, diminuir nossa alienação. É impossível continuar dependente da mineração, da produção massiva de energia e da indústria pesada para se locomover, por exemplo. É impossível continuar dependendo do sistema agroindustrial para se alimentar. Esses “meios de produção” são impossíveis de reformar, mesmo quando não implicam na exploração de trabalho humano.

Questionando o progresso

Este modo de vida não é mais avançado e os outros modos de vida não são atrasados. Questionamos a ideia de que o desenvolvimento das forças produtivas civilizadas seria inevitável, uma simples consequência do avanço histórico humano, e por isso deveria ser aceita mesmo quando implica em escravidão e guerras massivas. Alguns comparam tal violência às dores do parto, como se a humanidade estivesse prenhe de uma sociedade mais justa. Mas o avanço da civilização não é necessário à humanidade. Esses modos de produção não pertencem a um estágio necessário da história humana, porque não existem estágios necessários da história humana. A história da civilização é a história de um modo de vida dominante, não a história da humanidade.

Nossas forças produtivas dependem da extração de recursos como petróleo e minérios, e essas atividades são prejudiciais a diversos seres vivos. Não há nenhuma maneira de extrair esses recursos sem um impacto ambiental injustificável ou aumento da dependência tecnológica, que aumenta nossa alienação em relação aos demais seres vivos.

Não podemos mudar o passado ou voltar a um estágio anterior. Mas os modos de vida em que o desenvolvimento das forças produtivas civilizadas não ocorreu não pertencem ao passado, nem representam um estágio que deve necessariamente ser ultrapassado, rumo ao capitalismo pleno, para que então possamos superar o capitalismo e viver numa sociedade sem classes. Essa concepção histórica na qual o avanço dos meios de produção é uma necessidade confunde a história da humanidade com a história da civilização. Nenhum agrupamento humano está destinado à civilização. A civilização ocorreu com alguns poucos povos que criaram um modo de vida expansionista e se espalharam pelo mundo por meio de guerras de conquista, invasão, escravidão e assimilação. A civilização está à beira do colapso. A humanidade civilizada não representa a humanidade como um todo. Os outros modos de vida não estão em estágios primitivos da história. Na verdade, eles representam a resistência a uma força civilizadora e opressora.

Se a história segue um curso que necessariamente leva todo e qualquer agrupamento humano a desenvolver suas forças produtivas de modo a se tornar semelhante ao que nós somos hoje, então não há nada que possamos fazer. Nesse caso a crítica à civilização pode ser descartada, porque a civilização não seria criticável. Sendo uma necessidade histórica, ela é uma consequência de uma lei natural, e lutar contra isso seria lutar contra a natureza. Se isso for verdade, a discussão acaba antes de começar.

Mas os homens que fizeram sua história sob as condições materiais do desenvolvimento das forças produtivas, segundo um modelo civilizacional, não são todos os homens. São alguns homens. Não representam a humanidade. Afirmar o contrário é afirmar que povos nativos são atrasados, primitivos, ingênuos e por aí vai. Do mesmo modo, a tecnologia civilizacional não é universal. A tecnologia depende de um determinado discurso sobre os seres vivos.

Se a questão de classes fosse o único fator que tornasse o desenvolvimento tecnológico enviesado, tudo poderia ser resolvido com uma revolução comunista. A história da civilização é a história da luta de classes, mas a história da humanidade não é a história da civilização. Os povos que não se desenvolveram do mesmo modo que nós não são “historicamente atrasados”. Este ponto central precisa ser enfatizado.

A falácia da naturalização

A naturalização da civilização implica na desumanização do homem não civilizado. A ideia de que o uso civilizacional de recursos pode ser comparável à relação de qualquer outro ser com seu meio implica nessa naturalização. Daí se chega ao argumento reformista da civilização: a ideia de que construir uma barragem para uma hidroelétrica é essencialmente o mesmo que um castor faz quando coloca troncos num rio. Mas a naturalização do modelo de extração civilizacional não passa de uma falácia.

O que torna a extração civilizacional fundamentalmente alienante não é apenas a quantidade de recursos que são extraídos, mas o modo como são extraídos. Tratores, escavadeiras, poços de petróleo e minas de bauxita não são predatórias apenas por seu tamanho, mas pelo fato de que foram construídas tendo em vista unicamente as necessidades civilizadas. Elas foram construídas para suprir as demandas de uma organização civilizatória. Elas não podem suprir as demandas das florestas, dos rios e das montanhas. A tecnologia civilizada se torna mais “ecológica” na medida em que a civilização tenha a necessidade de economizar recursos para continuar existindo. Mas o processo civilizacional não se torna menos destrutivo para a humanidade, já que as necessidades humanas continuariam sendo gradativamente substituídas por necessidades civilizadas. Isso é o que chamamos de “domesticação”.

Alguns temem que esta crítica não passe de uma estratégia retórica para desmoralizar a revolução proletária e manter privilégios de classe. Mas não é tão fácil assim dispensar tais questionamentos. O objetivo dessa crítica é apontar para uma questão central que ainda não foi devidamente tratada pelos pensadores sociais, e que não pode mais ser negligenciada. Esse aviso foi dado por lideranças indígenas, muito antes dos cientistas civilizados comprovarem que eles tinham razão.

Perguntas fundamentais

Existe algum método pelo qual poderíamos verificar se a civilização em si é realmente viável? A história é composta de estágios? Estamos num estágio mais avançado que as outras sociedades? Reverter o processo civilizatório significa retroceder para um estágio anterior? De onde virão os recursos necessários para o pleno desenvolvimento das forças produtivas em todo o mundo? Estas são algumas de nossas perguntas.

A maximização econômica, seja a maximização do lucro ou a maximização da eficiência produtiva, é o que chamamos de “discurso econômico”, algo que alguns autores chamam de “racionalização”. O discurso econômico se opõe à condição não civilizada, pois esta seria uma condição onde o lucro ou a eficiência produtiva estão minimizados. Isto quase sempre se traduz em “necessidades básicas mal atendidas”, “tempo de trabalho excessivo” ou “excesso de esforço para realizar o trabalho”. A fome e a morte prematura seriam resultados dessa condição, que só pode ser superada por meio do avanço da tecnociência. Todo preço seria pequeno para eliminar a “ineficiência”.

Mas por que a vida natural é considerada ineficiente, ou ainda, porque o ineficiente é considerado inferior? Por que o envelhecimento sustentado por tecnologias seria melhor do que a morte natural? Por que justificamos os piores atos da humanidade como se fossem um preço aceitável a se pagar para se livrar de uma condição na qual permanecemos por quase toda nossa existência?

A condição humana

Vivemos por centenas de milhares de anos sem dominar o mundo. Aprendemos a amar, a curar, a cuidar, a correr, a escalar, a nadar, a viver a vida livremente. E agora julgamos que podemos melhorar a vida humana, mesmo que por meio das atrocidades cometidas pelos colonizadores. Não consideramos o aumento populacional exponencial como uma forma de acúmulo injusta, porque não consideramos os outros seres como merecedores da biomassa do planeta. Só para lembrar, a civilização saiu de menos de 1% da biomassa dos mamíferos terrestres para 96%. 99% da biomassa de mamíferos terrestres do planeta era composta de animais selvagens, e agora essa porcentagem é de apenas 4%. Ela foi ocupada por animais domesticados.

Eliminamos a fome produzida pela estiagem e criamos a fome permanente, que não mata do mesmo modo que um desastre natural, pois não mata igualmente e sim os excluídos. Ela mata seletivamente pois é um mecanismo de poder. Nós abandonamos o ciclo de fartura e fome que limita a vida de todos os seres vivos. Colocamos um peso insustentável sobre nossas costas: assumimos a responsabilidade sobre a vida e a morte, não só a nossa própria, mas também a de outros seres que agora só existem para nos servir. Esse domínio trocou velhos problemas por novos problemas.

Nós nos sentimos no direito de exigir mais do que a terra dá a todos os outros seres porque nos consideramos superiores.

Sem escravidão não haveria civilização. A civilização precisa criar a barbárie para então superá-la, criando uma barbárie superior, e assim por diante. Essa dialética consiste no constante aprimoramento das ferramentas de escravidão e degradação da vida. A civilização só emancipa a humanidade tornando-a mais dependente.

A humanidade não está, por si só, numa condição miserável. Isso não é uma romantização, mas o oposto é um fatalismo já que considera a vida humana como deficiente. A humanidade, como qualquer espécie, foi provida daquilo que precisa para viver plenamente. Negar isso é afirmar um excepcionalismo.

Crítica ao marxismo

O que criticamos no pensamento marxista é a crença de que por meio da civilização poderíamos chegar a condições de igualdade. O método marxista analisa a história da civilização, não a história da humanidade. A civilização representa uma ruptura radical em relação à história da humanidade. Além de ocupar apenas uma fração do tempo desta, ela é protagonizada por apenas uma fração dos seres humanos, que se espalharam e estabeleceram domínio sobre outros territórios, substituindo a história dos povos dominados pela história dos dominadores, ou seja, a história da civilização subjuga a história das diversas populações humanas.

É verdade que o fim da propriedade privada dos meios de produção mudaria substancialmente nossa relação com a natureza. Mas a questão ecológica não se limita ao uso racional ou eficiente dos recursos. Ela inclui abandonar a razão instrumental na relação com os demais seres vivos.

Não podemos radicalizar a civilização para depois pensar se ela é viável ou não. Podemos interromper o processo civilizatório. Ele não é um processo inexorável.

O problema em roubar pessoas não é respeitar o tempo delas para se recuperar do dano. As necessidades civilizadas não justificam uma indústria baseada em mineração, agropecuária e alto consumo de energia. Não é a necessidade humana que nos leva a acumular mais do que podemos carregar, ou criar um modo de vida baseado na produção de excedentes, dependente de recursos que não são locais, engenharia e maquinaria. Sem o pressuposto da superioridade humana, toda nossa indústria perderia o sentido.

Predação versus domesticação

Civilizados não são predadores. Predadores devoram outros seres para se alimentar. Civilizados interferem nas condições de vida de populações ou espécies inteiras para expandir a civilização. O logocentrismo fez romper o diálogo existente entre nós e os seres que matamos. Uma relação de predação depende de um envolvimento de ambas as partes num mesmo processo. Se uma delas for prejudicada, ambas as partes serão prejudicadas. A predação só existe porque produz benefício para ambas as partes. Ela é uma relação de cooperação. A domesticação rompe com a cooperação. A domesticação não se comunica, não espera pela resposta da outra parte, ela estabelece domínio. Não considera o outro, age por conta própria e se impõe sobre o outro.

O corte na comunicação ocorre quando não se espera mais que seu comportamento seja gradualmente aceito na complexa rede de relações entre os seres. Ele altera artificialmente os fatores para impor sua vontade imediatamente, evitando qualquer retaliação. A domesticação é uma relação hierárquica e uma técnica de tortura. Ela é impossível sem o excepcionalismo.

A predação não implica em alienação. A domesticação, por outro lado, nos afasta não apenas de outras espécies, mas de outras populações humanas que não fazem o mesmo. Quando interferimos desse modo nas condições de vida de outros seres, estamos dizendo que não nos importamos de fato com a “subjetividade” deles. Nós nos consideramos no direito de controlar e alterar o mundo por decisão própria. Isso nos coloca no papel de regentes com poderes legais, como se o mundo tivesse sido delegado a nós por causa de nossa capacidade cognitiva.

A possibilidade de mudança

A mudança nessa relação é relativamente recente se considerarmos toda a história humana. A civilização nasce do desrespeito pelo outro. Mas nós não somos civilizados, somos seres humanos e apenas nos comportamos como civilizados por causa da socialização. Podemos mudar. A escolha é entre a continuação do processo civilizatório ou a continuação da vida humana em toda sua diversidade.

A domesticação não é um elemento constitutivo da espécie humana, é uma construção social opressiva que rompe com os mecanismos de retroalimentação negativa que mantinham a relação entre o mundo humano e o mundo de cada um dos outros seres vivos. Domesticação e racionalidade instrumental são sintomas de uma alienação.

A maioria das nossas teorias sociais foi formulada por pensadores que tinham um terrível medo das privações e um desejo insaciável por controle. Quando distinguimos o ser humano dos outros animais usando características civilizadas, confundimos civilização e humanidade, e consequentemente excluímos os povos não civilizados da categoria humana, ou pelo menos os diminuímos como se fossem atrasados.

Na sociedade capitalista, somos manipulados pelo ideal de independência financeira na medida em que ele se torna objeto de busca individual, mas só pode ser realmente encontrada adequando-se ao modelo exigido pelo mercado de consumo. Pessoas livres e donas de si mesmas podem vender-se ao capital pelo melhor preço. O que chamamos de justiça acaba atendendo apenas à resolução de conflitos internos para permitir a continuação do processo de escravidão assalariada.

Para além da socialização dos meios de produção

Socializar os meios de produção apenas distribui igualmente as ferramentas para construir a civilização. Isso impediria o acúmulo desigual entre humanos, mas não o acúmulo humano. E não se sabe sequer se teremos recursos suficientes para o pleno desenvolvimento das forças produtivas capitalistas em todos os lugares do globo. A má notícia é que a civilização dificilmente pode continuar existindo sem algum tipo de expansionismo. A civilização se sustenta no controle sobre outros seres, considerados como “recursos”, e na dependência de avanço tecnológico, que tende somente a elevar a instabilidade e a complexidade social. A má notícia é que os meios de produção civilizados só podem produzir mais civilização, e a civilização é fundamentalmente alienante, o que significa que nossos atuais meios de produção nos condenam à morte, isto é, à inviabilidade da vida humana.

A boa notícia é que nós nunca dependemos da civilização para viver. A boa notícia é que a civilização não é a humanidade, e que somente a civilização está condenada ao fracasso. A humanidade poderá continuar existindo se não afundar junto com a civilização. Decorre daí a importância central de desvencilhar-se da civilização ao invés de acomodar-se mais confortavelmente nela.

A aproximação entre crítica ao capitalismo, ao patriarcado e à civilização

A crítica ao patriarcado oferece um ponto de convergência entre o comunismo e a crítica à civilização, pois revela como as formas de dominação material e simbólica emergem de uma lógica de apropriação muito anterior ao capitalismo. Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884), Engels descreve o patriarcado como a primeira forma de opressão de classe, nascida da subordinação das mulheres e da transformação da linhagem materna em propriedade masculina. A passagem da “família comunal” para a “família monogâmica” marca, para Engels, o início da história da desigualdade, quando a reprodução deixa de ser uma função social coletiva e se torna um meio de transmissão de bens. Essa análise antecipa o que o feminismo marxista desenvolveria mais tarde: a compreensão de que o patriarcado não é uma estrutura cultural autônoma, mas um eixo constitutivo da acumulação e da formação das hierarquias sociais. O trabalho doméstico, a reprodução e a sexualidade foram progressivamente organizados como bases invisíveis do sistema produtivo.

John Zerzan retoma e radicaliza essa leitura, inserindo o patriarcado na gênese da própria civilização. Para ele, a dominação masculina é o modelo arquetípico de toda forma de domesticação. O patriarcado institui a lógica da separação, do controle e da mediação, o domínio do signo sobre a experiência imediata, do tempo linear sobre o tempo cíclico, do sujeito sobre o mundo. Essa leitura ecoa a crítica de Fredy Perlman à civilização como “guerra contra a vida”, em que a figura do patriarca simboliza o rompimento com o fluxo comunal e a transformação da cooperação em obediência. O patriarcado é a forma pela qual a civilização se produz e se mantém. A crítica anticivilização, ao recusar o excepcionalismo humano e o domínio sobre a natureza, implica necessariamente na crítica ao patriarcado.

O feminismo comunista contemporâneo retoma essas conexões ao denunciar que a reprodução da vida continua sendo subordinada à lógica da produção capitalista e patriarcal. Autoras como Silvia Federici e Angela Davis mostram que a emancipação feminina não se limita à igualdade no trabalho ou ao direito ao voto, mas exige a abolição das condições materiais que sustentam o patriarcado: a propriedade privada, a divisão sexual do trabalho e a naturalização da dependência. Nesse ponto o comunismo e o feminismo convergem com a crítica anticivilização ao compreender que o poder patriarcal, o estado e o capital compartilham a mesma ontologia de dominação. Ao articular Engels, Zerzan e Perlman, percebemos que a superação do patriarcado depende da transformação radical das relações entre os seres, uma descolonização da vida que liberta tanto o humano quanto o não humano da lógica da posse e do controle.

Um Marx anticivilização

Jean Tible, em Marx Selvagem (2013), propõe uma leitura que tira o marxismo de sua origem eurocêntrica e civilizacional, e o aproxima das cosmologias que o pensamento moderno classificou como “primitivas”. Ele repensa a crítica ao capitalismo a partir de modos de vida que não são civilizados, pois não se relacionam com a natureza como fonte de recursos nem tratam a humanidade como sujeito universal. Tible propõe um comunismo que não visa à expansão das forças produtivas, mas sim a renaturalização da humanidade. Uma crítica anticapitalista, anticolonial e anticivilizacional.

Podemos de fato pensar a crítica à civilização a partir do interior do próprio materialismo histórico, já que a promessa emancipatória do comunismo não depende da continuidade da civilização. Tible usa o termo “metabolismo rompido” entre seres humanos e natureza, presente nos Manuscritos Econômico-Filosóficos e no Capital. Zerzan e outros autores da crítica à civilização usam termos semelhantes. A alienação não se limita à exploração do trabalho, mas se estende à relação entre o humano e o não humano. A “restauração” desse metabolismo exige não apenas a socialização dos meios de produção, mas a transformação radical da forma de vida civilizada. Podemos incluir aí o abandono das técnicas de domesticação e de controle que sustentam tanto o capitalismo quanto as sociedades socialistas produtivistas.

Tible oferece uma via de reconciliação entre comunismo e crítica à civilização, em que o comunismo deixa de ser um horizonte de progresso e se torna uma forma de retorno ao comum. Não um retorno nostálgico, mas uma reabertura do campo de possibilidades humanas além da civilização. Essa aproximação permite pensar o comunismo como uma alternativa à própria lógica civilizatória, fundada no excepcionalismo humano e na exploração da vida. Um comunismo que luta contra a domesticação, contra a racionalidade instrumental e contra a ideia de que emancipação significa dominar o mundo com mais eficiência. Um comunismo anticivilização.

Referências bibliográficas

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FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução de Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.

GOLDMAN, Emma. Não há comunismo na Rússia. Disponível em: https://bibliotecaanarquista.org/library/emma-goldman-nao-ha-comunismo-na-russia.

KROPOTKIN, Piotr. A conquista do pão. Tradução de Plínio Augusto Coêlho. Rio de Janeiro: Achiamé, 2011.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004.

MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política – Livro I: O processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.

PERLMAN, Fredy. Against His-story, Against Leviathan! Detroit: Black & Red, 1983.

SAHLINS, Marshall. A primeira sociedade da afluência. In: Cultura na prática. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.

TIBLE, Jean. Marx Selvagem. São Paulo: Annablume, 2013.

ZERZAN, John. Running on Emptiness: The Pathology of Civilization. Los Angeles: Feral House, 2002.

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