A banalidade da civilização

Um ensaio sobre crítica à civilização e sua relação com a “banalidade do mal” como crítica à reprodução automática da ordem social.

Eichmann, oficial do partido nazista e um dos principais responsáveis pelo genocídio judaico, parecia ser um homem comum, não um monstro. Ele acreditava sinceramente estar apenas fazendo o seu trabalho. “Estou apenas cumprindo ordens”, ele diria. Eichmann estava tão satisfeito por finalmente ter conseguido um emprego estável que fez de tudo para mantê-lo, inclusive colaborar com o extermínio de “indesejáveis”.

No lugar dele, você teria feito diferente? Essa é uma pergunta mais complexa do que parece, porque implica pensar se o que nos separa de alguém como Eichmann é uma superioridade moral, ou apenas um pouco mais de pensamento crítico, um pouco mais de disposição para questionar ordens. Talvez tudo que te distancia de um capitalista que destrói o mundo, além do dinheiro, seja justamente o ato de parar para pensar no que você está fazendo e como isso pode afetar outras pessoas.

Lembro de um menino a quem dei aulas particulares certa vez. Filho de um homem muito rico, vivia numa mansão enorme, tinha um cômodo da casa só para os videogames de última geração, mas não estava feliz. Perguntei por que ele parecia triste, e ele respondeu que preferia morar com a mãe. “E onde ela mora?”, perguntei. “No interior”, disse ele. “Numa casa como essa?”, perguntei. “Não, uma casa simples”, ele disse. Perguntei o que ele mais gostava de fazer quando ia pra lá. Ele respondeu: “Andar de bicicleta na rua”.

Isso me partiu o coração. Esse menino estava sendo criado para ser um herdeiro, mas não era isso o que queria. Ele queria uma vida simples. Será que ele seria um “monstro” se escolhesse não se revoltar contra o pai e apenas ser um “bom filho”? E você, seguiria outro caminho se tivesse sido educado desde pequeno para ser herdeiro?

Para autores como Daniel Quinn, essas pessoas não são exatamente os agentes do sistema. Elas não movem o carrossel, são os cavalos presos a ele. Você pode retirar alguns cavalos, e o carrossel continuará girando.

Eu não acredito que o sistema seja autônomo e independente da ação humana. Acho que a ação humana está condicionada, integrada ao próprio mecanismo que a produz. Um adulto bem informado pode criticar o capitalismo. Mas o capitalismo se reproduz porque as crianças são ensinadas, desde cedo, a valorizar a propriedade, a obediência e a competição, muito antes de desenvolverem pensamento crítico. Elas são moldadas para ocupar uma posição social específica, e quando adultas, apenas continuam “fazendo o que foi ensinado”. Esta é a banalidade do mal.

Existe um outro fenômeno histórico que remete à teoria da banalidade do mal. Existe uma voz que ouvimos cada vez mais na nossa sociedade, vinda de uma “mente” que é incapaz de pensar criticamente. A voz dos modelos de linguagem generativa. Eles não têm crenças morais ou a capacidade de fazer julgamentos. A responsabilidade de garantir que ela esteja alinhada com princípios morais e éticos é dos humanos que projetam, treinam e usam a IA. Mas nós falhamos nessa responsabilidade. As IA seguem ordens sem refletir sobre elas, e nós seguimos as sugestões da IA sem refletir sobre elas. A voz da IA é a manifestação de uma voz muito mais antiga. A voz da ideologia dominante. A voz da civilização.

A civilização estabeleceu uma relação abusiva com a vida logo no começo. A ideia de superar o homo sapiens e criar o homo deus é uma conclusão lógica do pensamento civilizado. O que fazíamos ao inventar a roda está conectado com o que fazemos hoje com computadores, e o que faremos com a tecnologia do futuro não pode se desligar totalmente do que fizemos há 10 mil anos atrás.

Quando você pensa no que é indispensável para sua vida, em quantas coisas que não existiram na maior parte da existência humana você pensa? A roda, por exemplo, é relativamente recente. O ser humano tem uns 200 mil anos, a roda tem menos de 5 mil. A agricultura foi criada 5 mil anos antes da invenção da roda. Talvez você chegue à conclusão que a própria vida humana, como ela existiu pela maior parte do tempo, te dá calafrios. A vida não é mais imaginável fora da prisão que nós construímos para nós mesmos.

Pensar criticamente na civilização se tornou tabu, porque reproduzi-la se tornou banal. Para além da banalidade do mal, precisamos falar da banalidade da civilização.

Ver a terra como fonte de produção agrícola não é simplesmente uma “visão diferente”. É semelhante a ver as mulheres como objetos sexuais, como parideiras, como animais domésticos, como inferiores e que precisam ser dominadas. Essa visão sobre a terra está fundamentalmente ligada à visão patriarcal do mundo. Uma coisa está implicada na outra. 

Não são apenas duas formas humanas de viver. Uma é baseada numa violência contra o corpo. Não é um conflito entre duas visões de mundo. Não existe uma visão de mundo não-civilizada, mas uma diversidade de visões que não submetem o corpo à razão. O que distingue a visão civilizada é que ela é contra a vida, no sentido de que ela é construída para violentar a vida.

Não existe nenhum caminho para a civilização que não passe pela violência contra a humanidade. E não uma violência comum, aceitável, mas uma violência crescente, insustentável, insana e alienante. A civilização é uma bolha de ódio. Nós geralmente não percebemos o ódio, assim como Eichmann não percebia. Nós não percebemos como nosso trabalho coloca pessoas em “trens” para morrer, não porque somos monstros, mas porque seguimos ordens e queremos apenas ganhar a vida. Nós entendemos nosso trabalho como algo bom e necessário, sem entender a natureza do projeto com que estamos cooperando ao seguir uma determinada lógica.

Quero dizer que o civilizado médio não percebe o “mal radical” que está cometendo ao sustentar a organização social que chamamos de “civilização”. Ele vê os pontos mas não os liga. Não vê como a industrialização, por exemplo, nos conduz, como os trilhos de um trem, para a “câmara de gás” das mudanças climáticas. Na cabeça de quem construiu esses trilhos, são apenas trilhos de trem, feitos para agilizar o transporte de pessoas, e não há nada de errado nisso. 

Não vai haver “cessar fogo” por parte da civilização, porque ela é o próprio processo da guerra contra a natureza. Ninguém escolhe se tornar civilizado. Os povos que entenderam exatamente o que a civilização representa preferiram não participar dela. Não faz sentido querer compartilhar os “frutos da civilização” com outros povos, porque esses frutos estão envenenados. O discurso de “integração” é o etnocídio, é o extermínio de culturas.

A civilização sequer enxerga a natureza. O que ela chama de “natureza” é apenas um discurso científico sobre ela, que a reduz a uma coisa. A ciência não vê a natureza, ela a descreve do ponto de vista de um sujeito que quer se apropriar de um objeto. A visão científica é uma versão “sem deus” de uma visão religiosa sobre o mundo, que nos coloca nele como figuras em relação a um fundo. Para enxergar a natureza como ela realmente é, nós precisamos de outro tipo de visão. 

A cosmovisão religiosa e a cosmovisão científica não conseguem enxergar a vida como ela é. São dois lados de um mesmo paradigma. Eu sequer tenho como apresentar a natureza a você. Tudo que eu estou falando aqui é uma tentativa de plantar uma semente de dúvida no seu coração, que pode crescer e desafiar essa visão. A crítica à civilização serve ao mínimo para permitir que as pessoas tomem uma posição informada sobre a civilização, porque geralmente elas apenas seguem o discurso dominante acriticamente. Tal como a reflexão ética de Arendt sobre a banalidade do mal, a crítica à civilização objetiva ao menos possibilitar que as pessoas pensem criticamente no que estão fazendo enquanto membros da organização social civilizacional, e assim façam escolhas informadas. Isso é, possam fazer uma avaliação ética das suas ações numa escala mais ampla.

A crítica à civilização pode levar a essa reflexão crítica por qualquer meio. Por exemplo, por meio de um jogo de computador. O jogo Red Strings, por exemplo, faz uma crítica à banalidade do avanço tecnológico, por meio do próprio avanço tecnológico. É uma reflexão dialética: O próprio avanço da ciência e da tecnologia nos levará à conclusão inescapável do contrário do que a civilização prega hoje. Ao desenvolver o “homo deus”, por exemplo, criamos as condições da abolição humana. A série Westworld também trata disso.

A maioria das pessoas ainda não entendeu as questões centrais da discussão sobre a civilização. Quando entenderem, então poderão escolher um lado. Por enquanto, elas estão do lado civilizatório não por escolha, mas por ausência de pensamento crítico sobre isso, ou seja, por um automatismo da ação. Assim como não enxergamos a natureza, não enxergamos a civilização, nós a reproduzimos sem olhar para trás e contemplar, de fato, o carro de Juggernaut que estamos puxando, e que eventualmente passará por cima de todos. 

Mesmo a ciência é limitada e demorada para produzir essa compreensão. Geralmente, é preciso mais do que acesso aos dados para abrir os olhos. Por exemplo, os pesquisadores do clima podem compreender a catástrofe iminente, sem necessariamente se tornarem anticivilização. Um sociólogo pode compreender exatamente como funciona o mecanismo de exploração do trabalho nas sociedades capitalistas, e ainda assim não ser anticapitalista. Parece que precisamos de mais do que ciência. Parece que falta uma “fagulha de consciência” que só pode ser produzida no atrito com a realidade. E cada vez mais somos distraídos da realidade.

O civilizado se isola do mundo e dos outros ao seu redor. Ele precisa sair da cela de auto-confinamento que ele mesmo construiu. Mas como? O civilizado trata a natureza como um misógino trata as mulheres: Ele se nega a se relacionar com ela em termos de um entendimento mútuo, ou um consenso, algo que fique bom para ambos. Ele define o que é bom para si como necessário e se acha na posição de determinar o que é bom para a natureza em termos que não limitem seu acesso a essas “necessidades”. Ele não percebe que essas necessidades nem sempre existiram, mas foram criadas sem nenhuma consulta à própria natureza.

O civilizado demoniza a natureza quando ela escapa dessa determinação e mostra que não concorda com os termos que ele mesmo estabeleceu. Em outras palavras, ele estabelece uma relação abusiva com a natureza, baseada em delírios de grandeza e numa certeza de superioridade e direito de usá-la como quiser, simplesmente por ser um “cara legal”. É isso que o preservacionismo significa: “Estou respeitando os limites da natureza, logo, ela DEVE me dar o que eu QUERO”. Isso tem que parar de ser percebido como uma lógica de “sustentabilidade” e ser visto pelo que é: uma violência. Libertar as pessoas dessa prisão significa fazê-las encarar o ódio contra a natureza que elas ignoram, e superá-lo.

O ódio à natureza está nas premissas básicas que estruturam o modo de vida civilizado. Não é algo que deu errado no meio do caminho, e por isso não é algo que pode ser reformado. É algo que estava errado desde o começo da civilização, mas só se tornou visivelmente problemático mais recentemente. Assim como o capitalismo, a civilização precisa ser superada, abandonada ou destruída. E uma sociedade contra o estado também é uma sociedade contra a civilização.

Os indivíduos jamais livres na civilização. A organização social humana é um produto da interação entre diversas formas de vida, não há possibilidade de construir uma sociedade humana sem a participação de outros seres, ou seja, apenas com valores vindos da própria ação humana. Isso não é liberdade, isso é colonização. Como Fanon nos explicou, não é possível ser “humano” numa relação de colonização. Expandimos essa compreensão para nossa relação com a natureza. Nossa vida é resultado das ações de uma rede de interdependência que abrange toda a comunidade da vida. A crítica à civilização aponta para a origem da quebra dessa interdependência, de relação saudável entre o humano e seu meio. Se uma organização social depende de uma visão antropocêntrica, ela não pode senão escravizar o resto da natureza.

Sem a civilização não há condições materiais para o processo de “extração de mais-valia”, não apenas de outras pessoas humanas, mas também de seres não-humanos. Os ecossocialistas geralmente não vão até o fim do caminho nessa reflexão. Eles param no meio do caminho, numa afirmação de que basta olhar a natureza com mais cuidado para que a extração seja feita sem “violência excessiva”. Mas se ela continua sendo feita com violência civilizada, ela continua nos afastando de nós mesmos rumo ao vazio.

Novas tecnologias não são o caminho. A tecnologia é incapaz de emancipar o ser humano, porque é incapaz de emancipar os seres que são transformados em “recursos” pelo pensamento tecnológico. Nossa incapacidade de criticar a tecnologia quase sempre vem da restrição do nosso paradigma “materialista”. Isso é, o mundo permanece sendo matéria, mas o ser humano é especial, porque é matéria que pensa. 

Autores como Gorz fazem um avanço interessante na discussão, mas ainda estão para trás. Sabemos que as mudanças trazidas pelas novas tecnologias da informação alteram fundamentalmente as relações humanas, inclusive a socialização primária. Em outras palavras, o avanço tecnocientífico está fechando mais portas do que abrindo, embora poucas pessoas consigam ver isso agora. O caminho da mudança pela educação está se fechando, não se abrindo. Precisamos de novas perspectivas para abrir novos caminhos.

Para ser bem sincero quanto à minha posição, eu acredito que é inevitável que cheguemos à crítica radical à civilização. Ela é uma consequência da análise crítica sendo desenvolvida hoje em todas as áreas. Mas os pontos precisam ser ligados, a crítica precisa ser sistematizada e expressa de um modo mais fácil, tornando o dano da civilização mais visível para todas as pessoas. Mas esse desafio teórico e metodológico não tem sido vencido pelos autores mais conhecidos da crítica à civilização. 

Nos nossos grupos, estamos ainda discutindo se sequer vale a pena sistematizar essa crítica de modo que ela possa ser levada a sério, porque muito provavelmente será apenas desviada e transformada em algo inofensivo ou pior, lucrativo, como é a tendência de toda crítica radical que se torna mais conhecida. Como evitar esse processo de assimilação? São muitas perguntas sem resposta, mas talvez valha a pena continuar insistindo.

Referências bibliográficas

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