Sobre a violência na civilização

A civilização é contra a violência? A violência é contra a civilização? Afinal, o que é violência?


Na última segunda-feira, dia 27 de setembro de 2021, o prefeito de Aparecida de Goiânia, Gustavo Mendanha, atacou cerca de trinta famílias que ocupam uma área do setor Independência Mansões, numa tentativa de despejo covarde e violenta, usando a Guarda Civil e a Polícia Militar. Segundo o relato, “as pessoas que estavam trabalhando perderam tudo. Eles passaram por cima das camas, panelas e comida. Não deixaram a gente tirar nada”. Para a Secretaria Municipal de Segurança Pública, a ação ocorreu de forma “pacífica”.

Situações como essa são comuns e nos lembram que a civilização permanece baseada na violência, embora essa violência seja esquecida, como se não fosse cotidiana. A maioria das pessoas ali foram despejadas durante a pandemia por não pagarem o aluguel. Na lógica da administração metropolitana, o problema do desordenamento urbano pode ser resolvido simplesmente removendo pessoas. Administradores esperam que as secretarias de habitação e assistência social legitimem essa violência, simplesmente cadastrando pessoas em programas habitacionais para que elas esperem pacientemente pelo sorteio de uma moradia popular, ignorando o contexto emergencial.

Quando pensamos em violência, imaginamos um predador comendo um pequeno animal indefeso na floresta, algo que sempre fez parte da vida. Mas no sentido sociológico, a violência deve ser vista de modo mais complexo. Predadores não criam sistemas de violência contra suas presas. A predação não é uma violência sistêmica, mas parte de uma relação ecológica que possibilita a vida.

A violência sistêmica que existe em nossa sociedade vem de uma estrutura social hierárquica, isto é, dividida em camadas superiores e inferiores. O que permite essa divisão é o acúmulo e concentração de poder e bens. A violência sistêmica é uma violência capitalista, estatal, patriarcal e civilizada.

Um dos autores mais usados por aqueles que pretendem nos tranquilizar quanto a essa violência é o psicólogo canadense Steven Pinker. Em seu livro “Os anjos bons da nossa natureza: Por que a violência diminuiu”, publicado em 2017 no Brasil, ele explica como a violência em sociedades humanas diminui na medida em que a civilização avança. Em 2018, o periódico Historical Reflections publicou um volume criticando a obra de Pinker. A conclusão é que se trata de uma tese problemática ou falha, sem uma metodologia histórica apropriada, com fontes duvidosas, seletividade de dados, interpretação enviesada e vários espantalhos. A tese de Pinker reflete a visão eurocêntrica da superioridade moral dos colonizadores sobre os povos colonizados, caracterizada pela concepção de que a história humana segue um caminho progressivo rumo a estágios superiores.

A perspectiva decolonial, por outro lado, não pode julgar as culturas de povos colonizados usando os valores da cultura civilizada. A civilização NÃO diminuiu a violência, ela apenas criou bolhas de segurança para privilegiados. O pacifismo civilizado reforça sistemas de controle que legitimam e ocultam a violência de cima para baixo, enquanto pune pesadamente a “violência” de baixo para cima. Violência é uma relação que parte de um violador e atinge uma vítima. A autodefesa se opõe à violência. O violado não se torna violador pelo simples ato de reagir a uma violência. O problema passa a ser como reconhecer quando algo deixa de ser apenas reação e passa a ser uma ação violenta e injusta. Liberais sugerem que se trata de saber quem iniciou a violência, mas isso é insuficiente. Ao invés da tese liberal, sugerimos que o critério que define uma ação violenta é: toda ação que reforça um sistema de controle social numa sociedade hierárquica.

Para Hobbes, o homem é o lobo do homem, e esse lobo precisa ser contido pelo Estado. A violência tem sido associada à natureza selvagem, enquanto a não-violência se associa à racionalidade e superioridade moral. Na realidade, a predação, tanto em espécies não-humanas quanto em diversas sociedades humanas, é sobre matar para se alimentar, e não sobre controle político ou social. Deveria, portanto, ser considerada como violência?

Violência é sobre violar os limites de uma relação saudável entre dois indivíduos ou grupos em nome de um ACÚMULO de poder. Não é somente sobre sofrimento físico. A civilização é baseada em violência justamente porque é baseada em acúmulo de poder, seja ele político ou econômico. Mesmo uma sociedade que não matasse ou fizesse sofrer nenhuma pessoa ou animal ainda seria violenta se ela ainda dependesse de um sistema de controle social para forçar as pessoas a se adaptar a esse modelo ideal. O aumento constante da eficiência das forças produtivas é o resultado de um valor civilizado, e não algo que acontece por si só em qualquer sociedade humana. O progresso civilizado é medido pelo aumento de poder. É o crescimento de uma parte considerada superior em detrimento de todo resto.

A violência civilizada é colonial e sistêmica, e a civilização é absolutamente dependente dela para existir. Ela é a raiz de toda forma de violência que nós combatemos. Nenhuma reforma no modo de vida civilizado pode eliminar a violência sistêmica, apenas mudá-la de natureza ou canalizá-la para outros alvos. Essa violência vem da civilização em si. Só o fim da civilização pode atacar a violência pela raiz. Por último, talvez seja importante distinguir a violência da agressão. Todos os seres vivos podem agir de modo agressivo. A violência, porém, tem pouco a ver com a agressividade, assim como a cultura do estupro pouco tem a ver com o ato sexual, no sentido de que uma coisa não determina a outra.

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