Reformismo e radicalização

Uma resposta sobre a crítica anarquista à política eleitoral. Escrito como parte de uma discussão com alguns companheiros de luta. Revisão: Luiz De Oliveira.


Recentemente, foi publicada uma avaliação do ato do dia 29 de maio de 2021 que gerou uma discussão sobre anarquismo.

Nessa avaliação, foram criticados dois aspectos da organização do ato: 1. O mau uso do microfone. 2. A reação ao enfrentamento com a polícia.

Houveram dois momentos que isso veio à tona: No primeiro, uma pessoa usou o microfone para criticar o excesso de discurso eleitoreiro e lembrar que a situação política atual não se resolve nas urnas. Ela foi imediatamente interrompida. No segundo, algumas pessoas se recusaram a obedecer a polícia e desocupar a rua. A reação variou entre “pra que provocar?”, “de que lado vocês estão?” e  “isso é uma atitude fascista”. No microfone, alguém ameaçou: “Se vocês não se comportarem, nós vamos nos retirar”.  Finalmente, um “policial antifascista” pegou o microfone, disse que policiais também são trabalhadores e foi aplaudido entusiasticamente.

Como resposta, algumas pessoas questionaram a validade do anarquismo. Me perguntaram quais seriam as propostas concretas, e fizeram algumas associações entre o pensamento anarquista e o fortalecimento da direita. Quem está familiarizado com o meio anarquista conhece bem esse discurso, ele é usado sempre que se aproximam as eleições.

Dizem que esse governo é genocida, fascista e ilegítimo. Ao mesmo tempo, a estratégia de enfrentamento não apresenta nenhuma mudança. Aparentemente, a esquerda partidária pretende realizar ações ainda menos radicais do que as que realizou nos protestos contra os cortes de verbas da educação durante o governo do PT. O desgaste da estrutura política representativa, evidenciada no número crescente de abstenções, deveria provocar uma radicalização das táticas e, no entanto, o que vemos é um retrocesso na radicalização. Como pode o genocídio ser respondido de modo menos radical do que um corte de verbas?

Há uma tensão entre duas perspectivas anticapitalistas: os reformistas e os radicais. Será que a presença de anarquistas é realmente bem-vinda nas manifestações? Será que os “donos do microfone” não preferem que os anarquistas fiquem em casa? Talvez, o que realmente pensem é: “Não queremos vocês aqui, vocês só causam problema”. Por que chamar anarquistas para compor uma “unidade” e depois deixá-los à disposição da polícia como se fossem “infiltrados” e simplesmente, por agirem como anarquistas?

“Precisamos proteger as pessoas”, me parece uma desculpa esfarrapada. Os líderes dos movimentos partidários estão protegidos por um status social que a maioria das pessoas não tem. Qual a chance da polícia atacar quando esses líderes estão na linha de frente? Se estes puxassem  um “recua, polícia, recua…”, com certeza seriam imitados por seus seguidores, que permaneceriam seguros na superioridade numérica e pela presença de personalidades políticas “intocáveis”. Ao invés disso, preferem deixar que uma minoria seja marcada como alvo preferencial da violência policial. Isso coloca todas as pessoas que se encaixam no estereótipo de “anarquista” em maior risco, durante e depois das manifestações.

Um governo genocida não precisa de pretexto para atacar a população. Se a luta dos partidos é contra um governo genocida, como eles dizem, porque agem como se estivessem lutando contra um governo eleito democraticamente, que pode ser substituído pela via democrática? Essa é a contradição entre teoria e prática. Jamais se viu uma luta contra um governo genocida ser decidida numa eleição.

Se estamos enfrentando um governo ilegítimo, isto significa que a estrutura governamental como um todo está profundamente danificada. Não se trata apenas de uma administração mal feita ou de um crime contra a humanidade cometido por um presidente, sua família e seus associados. Mas o discurso fica confuso quando cobram que este governo ilegítimo se comporte como um governo legítimo. Mas a insistência no uso de estratégias políticas convencionais demonstra que os partidos não estão realmente considerando esse governo como ilegítimo. Quem obedece as ordens de um governo genocida se torna cúmplice de genocídio.

A luta contra um governo ilegítimo exigiria a construção de poder popular de baixo pra cima. Se o que esperam é a tomada do poder institucional pela via democrática, necessariamente só o podem fazer a partir de negociações e alianças com representantes e apoiadores do atual governo. O que os partidos acreditam é que precisamos de um presidente melhor. Mas não é como se isso nunca tivesse acontecido. Um partido gestado pelas lutas operárias esteve no poder. Se isso não foi suficiente, é porque enquanto estavam produzindo crescimento econômico, também estavam gestando as condições para o atual governo, graças às alianças necessárias para manter a governabilidade. É compreensível que as pessoas não acreditem que isso mudará num próximo governo do mesmo partido. O governo de conciliação de classes não funciona. O que nos resta é a guerra de classes.

Diante dessa crítica, os partidários se perguntam: “Se não é assim, então como? Qual a sua proposta?”. Embora eu saiba que a frase “toda crítica sem proposta é vazia” não seja um argumento válido, vale a pena falar um pouco sobre outras possibilidades.

Historiadores do anarquismo no Brasil concordam que 

“os anarquistas buscaram reforçar a independência e a autonomia dos movimentos em relação às instituições do capital e do Estado, assim como combater sua burocratização; enfatizaram a necessidade de movimentos combativos, apoiados na ação direta e no protagonismo nas bases; defenderam processos de democracia direta, autogestão e federalismo para as tomadas de decisão; enfrentaram o reformismo e tentaram conciliar as lutas de resistência ou por conquistas imediatas com as posições revolucionárias.” (Felipe Corrêa, Rafael Viana da Silva, Kauan Willian. Anarquismo e Movimentos Sociais no Brasil (1903-2013). Disponível em https://bibliotecaanarquista.org/library/felipe-correa-rafael-viana-da-silva-kauan-willian-anarquismo-e-movimentos-sociais-no-brasil-190).

Com base nisso, cabe pensar na ação direta como alternativa à política eleitoral.

O que é ação direta

“A ação direta representa um certo ideal que, em sua forma mais pura, é provavelmente inatingível. É uma forma de ação na qual meios e fins se tornam, efetivamente, indistinguíveis; uma forma de se engajar ativamente com o mundo para realizar mudanças, em que a forma da ação – ou pelo menos, a organização da ação – é ela própria um modelo para a mudança que se deseja realizar. Em sua forma mais básica, reflete uma visão anarquista muito simples: não se pode criar uma sociedade livre por meio da disciplina militar, uma sociedade democrática dando ordens ou uma sociedade feliz por meio do autossacrifício penoso. Em sua forma mais elaborada, a estrutura do próprio ato torna-se uma espécie de micro-utopia, um modelo concreto para a visão de uma sociedade livre.” (GRAEBER, 2009, p. 210).

Num sentido amplo, toda ação política que não depende de negociação com autoridades pode ser considerada como uma ação direta. Desde tacar um tijolo até criar um espaço cultural na sua casa. Ações diretas são ações não negociadas, que podem ser violentas ou não. Isso soa vago porque nos acostumamos a entender a ação política como ação legitimada por uma organização de massas. Ações diretas são o contrário disso. Essa é a vantagem e a limitação delas. Não é possível exigir que a ação direta se encaixe no modelo da organização política de massas.

“Uma estratégia revolucionária baseada na ação direta só pode ter sucesso se os princípios da ação direta forem institucionalizados. As bolhas temporárias de autonomia devem gradualmente se transformar em comunidades permanentes e livres.” (GRAEBER, 2009, p. 210). As ações diretas são sementes de novas formas políticas, por isso não podem podem ser limitadas pelas políticas institucionais já estabelecidas.

Uri Gordon chama isso de política prefigurativa:

“Assim, política prefigurativa representa uma ampliação da ideia de ação direta, resultando num compromisso em definir e realizar as relações sociais anarquistas dentro das atividades e das estruturas dos coletivos do próprio movimento revolucionário. O esforço em criar e desenvolver um funcionamento horizontal em qualquer configuração de ação coletiva, e em manter uma atenção constante nas dinâmicas interpessoais e no modo no qual elas poderiam refletir padrões sociais de exclusão, são tão importantes quanto planejar e realizar campanhas, projetos e ações. Alegar eficiência ou unidade raramente justifica desconsiderar essas posições.” (GORDON, 2015, p. 54).

As ações diretas não são menos concretas que as ações políticas institucionais. A política de massas também pode ser violenta, mal planejada, mal executada, irrealista e sem um resultado prático. Para outros mitos sobre a ação direta, ver 12 mitos sobre ação direta.

Anarquistas têm uma crítica radical ao reformismo, que é consequência de sua crítica ao capitalismo e ao Estado. Ser anarquista não significa boicotar a política partidária, assim como não significa boicotar o Estado ou o capitalismo. A alternativa ao partidarismo depende de uma mudança na estrutura política e social como um todo. No que consiste essa mudança depende da perspectiva anarquista da qual se parte. Para Alfredo Bonanno, por exemplo,  “o uso da ação direta pelos núcleos de base no nível da produção é impossível na dimensão dos sindicatos-reformistas ou organizações sindicais”. (BONANNO, 1998, p. 8).

O que está em discussão aqui não é a efetividade de parar o trânsito, por exemplo, mas a reação dos partidários ao que eles consideram como baderna. Afirmar que essas pessoas estão apenas “provocando a polícia” é subestimá-las e, ao mesmo tempo, superestimar a polícia. Pior ainda é questionar a posição política dessas pessoas (“de que lado vocês estão”). Se nos comportarmos, os fascistas não vão nos atacar?

Historicamente, o enfrentamento a regimes fascistas exige táticas diferentes. Se alguém defende que nosso caso é diferente, o ônus é de quem afirma. Por que seria diferente?

Um governo ilegítimo não pode ser desfeito pelas vias legais. A mudança de natureza do governo implica necessariamente numa mudança da natureza das estratégias de luta.

E por que fechar uma rua? Porque isso dá poder às pessoas, mesmo que temporário e limitado. Um pequeno gosto de rebelião que serve para instigar a chama anarquista. Isso atrapalha o funcionamento normal da sociedade capitalista? Com certeza. Assim como restaurar o asfalto. A questão é se o transtorno compensa. Fechar uma rua temporariamente nos proporciona uma evidência concreta de que temos poder real, independente de representantes. Isso é ir à raiz do problema: o que faz com que pessoas continuem submissas à estrutura de classes é a perda da consciência de que todo poder provém delas. O que é perder um dia de trabalho em comparação com a oportunidade de romper, pelo menos um pouco, com a ideologia de que dependemos de autoridade para ter poder?

Quando a polícia mata alguém que você ama sem nenhum motivo, é normal sentir raiva e expressar essa raiva. Por que estamos tão pacíficos diante de centenas de milhares de mortos pela negligência do governo? Isso só faz sentido se o governo não está de fato sendo responsabilizado por essas mortes. Que tipo de genocida pode ser pressionado a dar um auxílio emergencial às suas vítimas?

Numa revolta contra um GENOCÍDIO, algum dano à propriedade é esperado. Quem está preocupado em não ser visto pela mídia como criminoso não pode ao mesmo tempo acreditar que está lutando contra um governo genocida. Uma revolta violenta seria a reação esperada diante de um genocídio. A ausência de radicalização indica negação quanto à responsabilidade do governo ou um medo paralisante do que esse governo é capaz de fazer. O problema é que não faz sentido ter medo do governo e ao mesmo tempo acreditar no poder do voto. Se o voto tem poder, então o povo tem poder, e se o povo tem poder, não há o que temer.

Um regime fascista exige ação antifascista

A política reformista faz demandas porque espera algo do governo. Antifascistas não fazem demandas aos fascistas. Não existe negociação entre fascistas e antifascistas. Quando os fascistas governam, não há mais negociação com o governo. A ação antifascista contra um governo fascista é necessariamente uma ação direta. Um regime sem autoridade real, incapaz de driblar a constituição e que pode ser obrigado a respeitar uma decisão democrática não pode ser chamado de fascista. Contra um regime fascista, qualquer outro curso de ação diferente do confronto direto implica apenas em mais mortes. Isso é o diferencia os regimes fascistas de outros regimes autoritários.

Como reivindicar algo de um governo fascista? Soa absurdo exigir que um “desgoverno” governe, aceite um processo de impeachment ou mesmo aceite o resultado das próximas eleições.

Como fascistas historicamente saíram do poder? Se parece bastante improvável e implausível que o mesmo ocorra aqui, talvez seja porque “regime fascista” não seja exatamente o termo correto. Quem espera por “um contundente relatório de CPI que conduza a um  processo impeachment” não pode estar falando de um regime realmente fascista.

Não é uma questão meramente terminológica. É uma questão de análise política. Se não usamos o termo correto, o discurso antifascista será esvaziado de sentido e confundido com aquilo que não é antifascista. A acusação de que um governo é fascista carrega uma determinada carga histórica, teórica e política que não pode ser banalizada. Então se você pretende se considerar antifascista, sugiro conhecer a teoria e a história do movimento antifascista, que hoje está intrinsecamente ligado à história do movimento anarquista.

Anarquistas e antifascistas têm motivos para se preocupar quando discursos são tirados do contexto e usados como ferramenta de campanha eleitoral. Ao comentar sobre a campanha de Bernie Sanders nos EUA, Mark Bray vai numa direção diferente de Graeber e Gordon, e diz o seguinte:

“Outros, no entanto, tentaram argumentar que a campanha de Sanders era uma extensão do Occupy. Isso foi manifestado em um artigo intitulado “Occupy o Partido” do coletivo Não Uma Alternativa que apelou aos ex-ocupantes para tratar a campanha “como qualquer rua ou parque e ocupá-la” (Not An Alternative 2016). Em nome do populismo pragmático, este artigo procurou drenar o termo “ocupar” suas associações com a ação direta, a democracia direta, a “falta de líder”, e política revolucionária para convencer os leitores de que ela pode ser usada como uma abreviação cativante para se engajar no culto da personalidade se desenvolvendo em torno de um socialdemocrata moderado que tenta se intrometer em um partido político capitalista e estratificado. De uma perspectiva anarquista, parques e ruas são um terreno de luta que pode ser ocupado porque políticas de ação direta não hierárquicas podem ser transplantadas para elas. Trabalhar dentro de partidos políticos, especialmente aqueles como o Partido Democrata, exige abandonar essas práticas e incorporar-se à estrutura partidária”. (Mark Bray. Uma crítica anarquista da horizontalidade. Disponível em https://bibliotecaanarquista.org/library/mark-bray-uma-critica-anarquista-da-horizontalidade)

Não existe governo libertário

O anarquismo considera o governo atual como ilegítimo porque TODO GOVERNO é ilegítimo. Um governo mais autoritário apenas escancara a natureza da aliança entre Capital e Estado, ao invés de escondê-la sob uma fachada de justiça social. O problema não está na pessoa que está nos governando, mas no fato de que dependemos de alguém nos governando. Nenhum governo melhora as condições de vida da população de modo concreto, porque o Estado está necessariamente submetido aos interesses da classe dominante.

Representantes dos interesses mais mesquinhos da classe dominante podem no  máximo ser afastados temporariamente do poder, e somente quando outra parte da classe dominante concorda com isso. Se algo impede um governo autoritário de manter o poder, isso significa que ele ainda está preso a mecanismos legais, ou seja, as instituições que compõem o Estado ainda preservam alguma legitimidade. Reformistas agem com base nessa legitimidade.

Qualquer pessoa que lute contra o Estado será, necessariamente, considerada criminosa. A pretensão de lutar apenas dentro da legalidade exige que se legitime o poder do Estado. Se a luta política precisa se manter dentro da legalidade, então existe legitimidade dos órgãos competentes para julgar a luta política. A escolha pela legalidade plena reafirma o monopólio do uso da força.

Um discurso mais coerente com a prática

“Em um exemplo clássico, segmentos do movimento dos Direitos Civis nos EUA nos anos 50 e 60 pediram que o governo federal interviesse contra vários governos estaduais mais reacionários para acabar com a segregação. Nesse processo, o governo federal conseguiu alavancar-se dentro do movimento que usava para isolar e silenciar as organizações negras e os indivíduos que criticavam as soluções legislativas propostas pelo governo federal. Hoje, com essas leis nos livros (…), a segregação legal é coisa do passado distante, mas a segregação de fato (em termos de acesso a alimentos, moradia, educação e assistência médica) é pior do que antes. Ao criar um papel para o governo federal como um dispensador de justiça social, em vez de se concentrar em criar as mudanças desejadas através de ação direta, o movimento pelos direitos civis ajudou o estado a dividi-lo e conquistá-lo, definindo as demandas do movimento e melhorando sua imagem no processo.” (GELDERLOOS, 2010, p. 9).

Se você não quer ser chamado de reformista, não defenda-os toda vez que são criticados. Não tente responder toda crítica ao reformismo com uma crítica ao radicalismo.

O anarquismo foi historicamente atacado tanto por reformistas de esquerda quanto por conservadores de direita. É difícil respeitar um movimento sem conhecer sua história.

O anarquismo faz uma “boa leitura” da sociedade? Isso depende do seu ponto de vista. A ciência não é neutra, e muito menos as ciências humanas. A “cientificidade” da análise social não é um bom critério para validar ou invalidar uma perspectiva política, embora isso seja muito comum. Dizer que o anarquismo não é científico o suficiente é tão equivocado quanto dizer que o marxismo não é anarquista o suficiente.

Malatesta fez um belo esforço teórico para demonstrar por que os anarquistas não se organizam como “partido” no sentido convencional. Seus leitores continuaram avançando a crítica dele.

Weber, Marx e Durkheim são todos fundamentais para a sociologia. Mas isso não quer dizer que sejam boas referências para criticar o anarquismo. Trazer exemplos de leninistas fazendo bom uso da ação direta só corrobora com a crítica de que as teorias e práticas anarquistas são usadas pela esquerda estatista quando convém, mas o movimento continua sendo culpado pelas suas derrotas políticas.

Esta não é uma provocação vazia nem uma crítica abstrata. Não estou negando totalmente a importância do partido como ferramenta organizativa. Se fosse assim eu nem participaria das manifestações. A crítica foi específica, mas a conversa logo se transformou numa crítica abstrata ao anarquismo. Se os líderes partidários continuarem entregando anarquistas para a polícia, os anarquistas não participarão mais. Não tem como ser mais direto que isso. A pessoa pode agir equivocadamente no calor do momento, e não por convicção política. Mas isso não justifica ficar do lado da polícia.

O que eu quero saber é se o que aconteceu no dia 29 vai ser normalizado ou realmente problematizado. Se preferirem ao invés disso problematizar o anarquismo como um todo, aí sim caímos numa discussão abstrata. Se vão tratar pessoas como “infiltrados” quando elas agem como anarquistas é, pois, por não quererem anarquistas nas manifestações.

É preciso decidir se os anarquistas são irrelevantes ou se o lado que escolhem faz diferença. Se são uma ameaça real ou não. Anarquistas acreditam que a política partidária é insustentável. Não querem afundar junto com ela, porque acreditam em outras possibilidades. As condições sociais para a manutenção dessa ferramenta política estão se esgotando pelo próprio desenvolvimento histórico. Precisamos de novas ferramentas. Isso não me impede de agir em conjunto com organizações partidárias, porque apesar de não concordarmos com a viabilidade a longo prazo do projeto político democrático, ele continua sendo importante em determinados contextos.

A crítica à política partidária implica que o problema não se resume à atuação de alguns indivíduos, mas está na própria estrutura da organização de massas. A crítica ao partidarismo é apenas uma das consequências da perspectiva libertária.

Que anarquista iria se preocupar com a falta de representatividade política no plano institucional? Isso seria contraditório. Anarquistas não querem representatividade, querem poder popular, e não acreditam que a política eleitoral seja o melhor caminho para isso (muito menos uma intervenção militar, diga-se de passagem).

As operações de investigação da PF, iniciadas durante as manifestações contra a realização de megaeventos no Brasil, obrigaram os coletivos anarquistas a mudar suas táticas. A maioria optou por ações menos visíveis ou ações de apoio mútuo e difusão de conhecimento. É sempre mais fácil ver lacunas na teoria e na prática de outros movimentos. Porém, nem sempre essa crítica é justa. A ação não pode ser validada somente dentro do critério organizacional de uma única perspectiva. Agir em conjunto é impossível sem respeitar a diversidade de táticas e estratégias.

Votar ou não votar. Eis a questão?

Para alguns, o voto pode ser uma ferramenta para mudar o sistema. Para outros, o voto é uma ferramenta para legitimar o sistema diante da ilusão de participação política. Quem está certo? Eu não pretendo responder isso, mas mostrar quais são os argumentos que sustentam a posição anarquista de que votar num representante não é exercer  poder político, mas sim conceder poder político. A classe dominante tem o poder de influenciar o resultado da eleição. Por isso, vencer uma disputa eleitoral depende de fazer alianças com as pessoas que possua melhores garantias para com os interesses da classe dominante. Se a maioria da população tivesse consciência de classe e não estivesse suscetível à ideologia dominante, o capitalismo já teria perdido. O capitalismo permanece unicamente porque as pessoas não acreditam no seu próprio poder e não percebem que a exploração do trabalho é inerente à estrutura da sociedade capitalista, e não um erro que pode ser corrigido com alguns ajustes ou resultado de simples desvio moral de alguns indivíduos (corrupção). As pessoas acreditam que a classe proprietária dá emprego e salário e por isso merece um status social superior, e que o caminho correto para conseguir melhorar de vida não é derrubar o capitalismo, mas sim TRABALHAR MAIS.

Enquanto as pessoas pensarem assim, o voto é uma falsa opção, porque as pessoas não votarão de acordo com seus próprios interesses, por não verem por trás da imagem que cada candidato projeta. Elas vão sempre escolher um reformista “menos pior”, e nunca algo que realmente represente os interesses políticos da classe trabalhadora, porque isso sequer é uma opção numa eleição.

Não votar significa se negar a participar desse jogo viciado em que somos obrigados a escolher um governante que não nos representa. Fora isso, você pode fazer um voto de protesto num candidato realmente “revolucionário”, que no entanto não tem a menor chance de vencer.

Aceitar o governo do menos pior é ficar passivo diante desse sistema que seleciona opções convenientes para si. As opções ficam limitadas a que tipo de capitalismo você quer, mas é impossível votar contra o capitalismo.

Sempre que se aproximam as eleições, a tensão entre anarquistas e partidários se eleva. Pessoas antes abertas ao diálogo com anarquistas temporariamente perdem essa abertura, porque entram no “modo eleição”. A simples presença de pessoas que não votam passa a incomodar: É como se elas tivessem um ar de superioridade. Esse fenômeno lembra o incômodo que as pessoas com vontade de comer carne demonstram com a simples presença de pessoas veganas num churrasco, ou a presença de alguém que não bebe numa mesa de bar. Nós tendemos a nos sentir culpados com a presença de alguém que escolheu não fazer o que a maioria faz, pois isso bota em questão a certeza de que essa ação tem valor universal. Por isso, os partidários  precisam que o ato de não votar seja equiparado com a ausência de ação política. Por isso, também, tendem a odiar mais os não-votantes do que aqueles que votam no candidato opositor, embora isso não tenha o menor sentido.

A Democracia é uma forma de governo. Anarquia é ausência de governo. Anarquia é sobre autodeterminação, não sobre um poder centralizado organizando a sociedade de massas como um todo, ainda que cada aspecto desse governo seja escolhido diretamente por todas as pessoas. Esse processo de escolha também pode ser influenciado por uma minoria e por interesses particulares daqueles que têm mais poder de fala. Anarquistas clássicos não viram os problemas inerentes às estruturas que estavam propondo, porque ela ainda era muito abstrata. Outros perceberam o problema porque viveram isso na prática, nos experimentos que vieram depois. É assim que a teoria anarquista avança: vendo o que funciona e o que não funciona na prática, ao invés de se prender aos teóricos clássicos.

A vantagem do anarquismo é justamente que ele não é bakuninismo ou kropotkinanismo e assim por diante. Os anarquistas podem negar qualquer um desses autores sem grandes traumas. Podem votar, se quiserem. Se escolherem não votar, é porque não enxergam um bom motivo para isso. Cabe aos defensores do voto argumentar a favor do voto com argumentos melhores, ao invés de simplesmente sugerir que a alternativa é “pior”. Ao reproduzir esse discurso, ironicamente continuam defendendo o “menos pior” dos cursos de ação. Por falta de argumento, acabam recaindo na acusação vazia de que o anarquismo não funciona. Esses são péssimos argumentos, porque não vão à raiz da questão: o que significa votar? O que é possível mudar, por meio do voto? Não se trata de defender uma situação ideal, mas de defender o poder concreto do voto e sua importância para a mudança social no atual contexto. Lembrando que a crítica aqui é sobre a eleição de governantes, não sobre todo e qualquer tipo de decisão tomada por meio do voto.

“Mas, no atual contexto, o que é viável?”

Essa é a pergunta, não é? Precisamos entendê-la. No contexto da sociedade capitalista e da organização estatal, o que é realmente viável em termos da construção de um poder popular? Substancialmente, nada. Nenhuma mudança substancial na estrutura do poder é possível sem se opor ao capitalismo e ao Estado ao mesmo tempo, se o objetivo é uma sociedade anarquista. A prioridade é destruir essa estrutura. Todo resto é paliativo.

“Mas a vontade de preparar a insurreição existia e ela encontrava pouco a pouco o meio de realizá-la; a propaganda começava a tocar mais pessoas e a dar seus frutos; “os tempos amadureciam”, o que em parte era devido à ação direta dos revolucionários e ainda mais à evolução econômica que, aguçando o conflito entre os trabalhadores e os patrões, desenvolvia a consciência deste conflito, do qual os revolucionários tiravam partido.” (Errico Malatesta. A greve geral. Disponível em https://bibliotecaanarquista.org/library/errico-malatesta-a-greve-geral).

Estamos tão acostumados a tratar representantes eleitos como os únicos agentes políticos legítimos, que esperamos que o anarquismo seja implementado mais ou menos como um projeto político convencional, isso é, como um programa de governo. Mas é lógico que a ação política não se limita à organização de massas. Quem parece muito mais disposto a “deixar a política acontecer” são as pessoas que estão priorizando a política eleitoral para elegerem um presidente que “não seja um genocida”.

Embora os representantes ganhem o crédito, não são eles que realizam as políticas públicas. É a população que as realiza. Dizemos que “fulano fez tal coisa no seu mandato”. Mas os representantes apenas assinam papéis. Eles não viabilizam, mas sim limitam a realização de políticas públicas eficientes e que realmente atendam as demandas da população.

O poder estatal é mantido materialmente pelo monopólio do uso da força e ideologicamente legitimado pelo voto. Assim como o patrão não dá emprego nem salário, o Estado não dá coisa nenhuma. Tudo é resultado do nosso próprio esforço. Se focar em colocar uma pessoa diferente no governo é priorizar a coisa errada. A não ser que você esteja mais preocupado com a manutenção da democracia representativa do que com a construção de poder popular.

Não faz nenhum sentido a acusação de que o pensamento anarquista permite a ascensão de movimentos autoritários. O movimento anarquista sempre esteve na linha de frente da luta contra o fascismo e o autoritarismo. Achar que a situação política atual foi criada pela política do voto nulo, e não pelo acúmulo de escolhas erradas feitas pela própria esquerda partidária, é negar a autocrítica da esquerda. É muito mais confortável culpar os anarquistas, mas é completamente absurdo também.

A esquerda brasileira ainda tem governabilidade, isso é, possibilidade de governar sem sofrer golpes militares, judiciários ou administrativos dos seus supostos aliados ou dos seus opositores políticos, que desdenham a democracia? As pessoas que estão no poder hoje podem ser obrigadas a aceitar o resultado de uma eleição, isso é, a ceder à pressão democrática? Este governo tem poder suficiente para promover um GENOCÍDIO sem ninguém poder fazer nada, mas não tem poder suficiente para impedir outro presidente de assumir? As pessoas tem poder para escolher outro governo, mas não para se defender diretamente de um genocídio?

Genocídio como política institucional

Talvez a esquerda partidária que hoje reproduz a acusação de que este é um “governo genocida” não esteja se lembrando do contexto histórico em que essa acusação surgiu. Este discurso é indissociável da história do movimento antifascista no contexto das duas guerras mundiais. Isso é relevante pois, como dissemos antes, o discurso antifascista pode acabar sendo banalizado. Isso prejudica, em especial, o movimento anarquista. Este adotou o antifascismo como teoria e prática faz algumas décadas, de modo que estão simbolicamente associados.

Não há dúvidas que o atual governo é especialmente fascista e que embarca decisivamente na necropolítica. Anarquistas, porém, que já observavam essa tendência muito antes do atual governo, tem todo motivo para protestar quando percebem que esse discurso está sendo usado como plataforma eleitoral e, ao mesmo tempo, acusações preconceituosas contra anarquistas só aumentam. Espero que essa exposição tenha demonstrado que isso é um problema concreto, que ainda precisa ser devidamente discutido.

Referências:

BONANNO, Alfredo Maria. A Critique of Syndicalist Methods. Elephant Eds., 1998.

GELDERLOOS, Peter. The Justice Trap: Law and the Disempowerment of Society. Soc. Anarch, v. 44, p. 1-18, 2010.

GORDON, Uri. Anarquia Viva! Política antiautoritária da prática para a teoria. Porto Alegre: Editora Subta, 2015.

GRAEBER, David. Direct action: An ethnography. AK press, 2009.

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One Response to Reformismo e radicalização

  1. contraciv says:

    Um adendo sobre o movimento dos policiais antifascistas:

    Ser contra o fascismo é diferente de pertencer ao movimento antifascista.

    Na Alemanha comunista, “anti-fascismo” era um termo de uso comum do Estado Comunista, e estava basicamente relacionado à luta contra a Alemanha Ocidental e seus financiadores, especialmente os Estados Unidos. O muro de Berlim era chamado de “Muro de proteção anti-fascista”.

    O movimento antifascista atual, apesar de adotar a estética da “Antifaschistische Aktion” criada pelo partido comunista da Alemanha durante a república Weimar, não seguiu exatamente a mesma ideologia. É um movimento autonomista, sem pretensões governistas, ligado à histórica anarquismo, de modo que o anarquismo e o antifascismo compartilham os mesmos símbolos.

    Esse é o principal problema com o termo “policiais antifascistas”. Apesar de ser contemporâneo e usar uma estética que hoje está relacionada ao movimento anarquista, o movimento de policiais antifascistas não veio de nenhum movimento anarquista. Ele vem de um movimento sindicalista de policiais esquerdistas e/ou liberais progressistas que não concordam com o discurso dominante dentro da polícia, que é o discurso conservador e autoritário. Parece que ao escolher esse nome, os policiais brasileiros não se ligaram muito no significado histórico do conceito de antifascismo, e por isso você não encontra um movimento de “policiais antifascistas” em nenhum outro lugar do mundo.

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