Para aprender a cair no abismo

Uma introdução às ideias de Ailton Krenak e sua relação com a crítica anarquista à civilização. Autor: Mauro Zag.


Introdução

(…) eu posso contar meu tempo não como tudo que já passou, mas como tudo que eu tenha daqui para frente. Estou experimentando com muita frequência essa visão: tudo que eu tenho é daqui para frente. (…) E daqui para frente tem tudo o que pode vir a acontecer[1].

Eu não sou um profeta do apocalipse[2].

(Ailton Krenak)

Ao longo do período colonial, os antepassados dos Krenak resistiram bravamente ao processo colonizador e, por isso, foram alvo de diversas políticas de extermínio. Essas remontam às legendárias “Guerras Aimorés”, já no período inaugural da invasão europeia, passam pelos “diretórios” do Marquês de Pombal, e culminam na dita “Guerra Justa”, decretada contra os então chamados “índios bravos”, por meio das Cartas Régias de João VI, tão logo este pôs os pés no Brasil, nos primeiros anos do século XIX. Tratava-se de um grande conjunto de povos que, caçadores-coletores nômades e/ou jardineiros seminômades, habitavam, desde tempos imemoriais[3], uma região ampla e biodiversa, que se estendia do que hoje são os sertões do sul da Bahia até o litoral capixaba, abrangendo, ainda, as serras e as densas florestas de Minas Gerais. Apelidados pejorativamente de “Botocudos”, foram caçados e tratados como animais tanto pelos sistemas de governo quanto pelos “homens de sciencia” dos anos 1800[4]. Contudo, embora em número assustadoramente reduzido, sobreviveram às múltiplas frentes genocidas e chegaram ao século XX, quando, afinal, foram “apaziguados” e “aldeados”, quase no fim da República Velha, entre 1920 e 1922[5]. A partir de então, de livres e indomáveis, estariam sob jugo do Estado[6]. Nascido próximo ao córrego de Itabirinha, bacia do rio Doce, em 1953, no que então era uma reserva do posto indígena Guido Marlière, Ailton Krenak já se definiu, numa entrevista dada em 1989, como “filho da geração dos Krenak do cativeiro”[7]. Numa conversa mais recente, de 2016, ele se refere aos aldeamentos indígenas como uma “pedra” que, “limitadíssima, dura, estreita”, se configura como única base “sobre a qual uma pessoa dessas [isto é, uma pessoa indígena] podia se apoiar para olhar o mundo”; e complementa: “é um processo de confinamento mesmo”[8]. Sua trajetória de vida, militância e pensamento, no entanto, mostra que Ailton soube, assim como seu povo, se desvencilhar de muitos grilhões e ampliar sua plataforma de visão, ainda que o preço da liberdade alcançada tenha sido a consciência, cada vez mais aguda e ampla, de que já caímos no abismo. Não obstante, Ailton, como todos os Krenak, aprendeu como cair. E para quem o acompanha na consciência dessa queda, da qual parece não haver como escapar, creio ser necessário ouvir suas instruções – ou vestir os “paraquedas coloridos” que ele nos oferece.

Com o intuito de dar eco a suas orientações, cometo, porém, uma pequena atrocidade: reduzo a cinco tópicos – ou, para usar um termo do título de seu livro mais recente, cinco “ideias”[9] – toda a densidade e a abertura que caracterizam a trajetória de Ailton Krenak. Entretanto, prometo que não vou aldear suas ideias livres, não vou domesticar seus ensinamentos selvagens. Até porque, veremos, suas teses, aqui propostas em tópicos, se entrelaçam, se atravessam, não permitem que sejam demarcadas. Posso justificar a “redução” aqui adotada traçando as dimensões a que o presente texto deve se limitar para uma leitura confortável, e também antevendo que me voltarei para Ailton em outros momentos, porque, como do abismo em que estamos, de suas “ideias” não temos escapatória; é necessário tomá-las para depois as retomar. Em nosso tempo de queda, é fundamental, para usar uma expressão sobre a qual escrevi recentemente, levar a sério o que diz Ailton Krenak.

1ª ideia: Entregue-se à solidariedade de todo o universo dentro da diferença

Como disseram Jan Fjelder e Carlos Nader, “[Ailton] Krenak é um homem de mais ou menos 1,60 de altura, mas ele é muito grande”[10]. O protagonismo de Ailton na história do movimento indígena brasileiro é gigantesco. Basta destacar que, entre 1979 e 1980 – ao lado de lideranças como Marcos Terena, Álvaro Tukano, Lino Miranha, Ângelo Cretã, Idjahure Karajá, Nelson Xangrê, entre outros –, ele foi fundador da União das Nações Indígenas, a UNI; um pouco mais tarde, em 1985, criou o Núcleo de Cultura Indígena, e dois anos depois, foi um dos articuladores da Aliança dos Povos da Floresta, que reuniu indígenas, seringueiros e comunidades ribeirinhas. Também vale lembrar que, ainda em fins da década de 1980, Ailton participou ativamente da Assembleia Nacional Constituinte, tendo integrado a Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, e também a Comissão da Ordem Social. Data desse período o ato que o tornaria mundialmente conhecido: em 4 de setembro de 1987, aos 34 anos, trajando terno branco, Ailton fez um discurso pungente na tribuna da Constituinte, no meio do qual pintou o rosto de preto utilizando pasta de jenipapo, seguindo as tradições indígenas – um “signo de luto e de luta”, como indica o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro[11].

Foram muitas as conquistas resultantes da militância de Ailton Krenak em seu diálogo com diversas instituições públicas e privadas, nacionais e internacionais, e não cabe aqui enumerá-las. Contudo, após o período a que podemos chamar de “heroico” – do fim dos anos 1970 ao início da década de 1990 –, o pensamento de Ailton, como assinala Viveiros de Castro, foi marcado por uma

crescente tomada de consciência (…) quanto à natureza fantasiosa e em última instância antipolítica, de uma almejada união fusional em uma só categoria de Povo Indígena da vária gente ameríndia, cuja forma sociopolítica radica precisamente na diversidade interna e na ‘tradição da inimizade’ – na labilidade cromática, constitutiva, das noções indígenas de amizade e de inimizade coletivas, da aliança e da guerra. Não menos notável é a denúncia do projeto, hoje em curso, de uma cidadanização repressiva, eufemizada como ‘inclusão social’, cujo efeito perverso, senão o maldisfarçado objetivo, é o de reduzir a intratável multiplicidade indígena, com sua insistente referência terrana e terrestre, a uma força de trabalho homogênea, obediente e esperançosa, uma pobreza assistencializada (pessimamente, ainda por cima) (…)[12].

Trata-se de um pessimismo, ou um “realismo”, como ainda diria Viveiros de Castro, que surge a partir da “constatação do fracasso dos governos que se sucederam desde 1989”, e do “descenso do movimento indígena desde então”[13]. Já em 1994, Ailton revelava numa conversa:

Mesmo quando nós buscamos fazer intervenção dentro da política institucional do mundo do branco, nós fazemos isso como quem foi à roça buscar batata ou mandioca. Nós sabemos exatamente os limites que temos, até onde podemos ir e o momento em que vamos ser devorados por um outro pensamento que vai significar a extinção do pensamento nativo (…)[14].

 O que se observa na trajetória de Ailton Krenak, em suma, é a marca de uma descrença progressiva nos mecanismos institucionais e legais do Ocidente, sejam estatais, sejam privados, para o tratamento das múltiplas questões colocadas pelos povos indígenas. Essa descrença, inclusive, se volta contra as próprias políticas pan-indianistas implementadas pela UNI, operadas com base na proposta, um tanto ocidental, de “união” entre as diferentes nações ameríndias – algumas tradicionalmente inimigas[15] – para que, juntas e por meio de representantes, pudessem ter suas demandas atendidas pelo Estado brasileiro. Em diálogo com o historiador Marco Sávio durante a explosão de manifestações de 2013, conhecidas como “Jornadas de Junho”, Ailton Krenak, lembrando-se dos tempos da UNI, confessa:

A articulação dessa coisa que chamam de movimento indígena foi como uma revoada de pássaros, sabe? Uma revoada de pássaros que se encontram e depois vão embora[16]. Se você perguntar a um índio, ele dirá que nunca existiu movimento indígena. As pessoas perguntam o que tanta gente diferente que se encontrou naquele momento, índios de diversas etnias, ribeirinhos, seringueiros, podia ter em comum. O que tinha em comum era o medo do progresso! No nosso caso, muito mais do que isso, era medo do branco. Mas não de um branco qualquer. Existe todo um esquema, um acúmulo de capital… O índio achou que não sobreviveria a isso. (…) Mas não houve movimento indígena, o que houve foi o índio que se movimenta. (…)

Quando formamos a União das Nações Indígenas, eu fui o representante. Me chamaram para falar com governadores, prefeitos e outros palhaços. Publicamente, eu pus fim naquilo. Não dava para responder por todos. Não acho que possa haver um único homem para dar todas as respostas por todos aqueles povos. (…) Um movimento indígena unificado iria reduzir muitas etnias e línguas à ocidentalização (…). Isso acabaria por homogeneizar os índios. (…) Acho que é muito difícil para o ocidental admitir que somos diferentes, que deveríamos ser iguais perante a lei, mas que somos diferentes em nossas culturas[17].

A representatividade política e a criação de um “movimento indígena” unificado para a busca de direitos junto às instituições do colonizador trairiam, inclusive, a própria dinâmica dos “índios em movimento”, que estaria no cerne fundacional da UNI. Numa palestra apresentada em 2016 no Sesc Pinheiros, em São Paulo, Ailton, enfatizando as ideias de ver além e de sair da aldeia, de pôr-se em movimento e de buscar alianças, lembra que, “a partir do final da década de 1960 e 1970, as lideranças indígenas que ainda estavam capazes de olhar o entorno perceberam que tinham de sair de dentro das suas terras, de suas aldeias, e começar a bater perna pelo Brasil”, para “buscar aliados, descobrir onde encontrar parcerias e fazer esses primeiros movimentos de circulação pelo país[18]. Mais à frente, Ailton cita alguns nomes dessas primeiras lideranças que abriram as trilhas pelas quais a UNI viria a percorrer: “espremidos feito pasta de dente, alguns desses sujeitos começaram a sair de suas terras. Gente como Mario Juruna. Antes dele, Celestino Xavante (…). O Marçal de Souza, lá no Mato Grosso do Sul”[19], “o Daniel Cabixi, que é quase da mesma geração, talvez alguns anos um pouquinho mais velho que eu e o Álvaro [Tukano]”[20]. Foi a partir das andanças desses pioneiros que, indica Ailton, “se originou essa ideia mais fixa sobre índios em movimento”. A causa dessa “movimentação”, segundo ele, residia no fato de que “a maioria de nós, quando começou a sair de casa, saiu de casa porque estava sendo enxotado, e tinham que ir para algum lugar” – e “ser expulso de casa acendeu alguma luz em alguns sujeitos mais críticos”[21]. Em relação à sua própria tomada de consciência política, que o teria levado à criação da UNI, Ailton complementa em sua palestra que foram essenciais os ensinamentos que ouviu dos xeramõi, dos anciões Guarani da Serra do Mar, em São Paulo, junto aos quais buscou refúgio quando migrou do Vale do Rio Doce com sua família, “porque a barra estava pesada onde a gente vivia”[22]. Segundo Ailton, os xeramõi

balizavam a nossa visão sobre fazer algo que fosse espontâneo, respondendo às nossas necessidades e realidades locais e regionais, e não nos afiliando a nada da política daquela época. E nós não nos afiliamos mesmo. Eu nunca me filiei a nada, de sindicato, de partido, de nada. Nenhuma ideologia dessas carimbadas. Assim como muitos da nossa geração nunca tiveram um vínculo direto com essas estruturas[23].

A distinção entre um ocidentalizado “movimento indígena” e a espontaneidade dos “índios em movimento” se relaciona com outra – que é basilar para compreendermos o que significam as “alianças” buscadas pelos indígenas que saíam de suas terras para “bater perna”[24]. Vejamos como, em entrevista cedida à antropóloga Maria Teresa Sierra em 1994, para publicação, no México, de um volume sobre direitos indígenas na América Latina, Ailton Krenak reflete sobre sua suspeita quanto aos riscos e a própria possibilidade de integração das diferenças na busca da construção de uma “solidariedade política” – que se distinguiria da “solidariedade indígena”:

A solidariedade indígena está fundada em princípios que não são os princípios do confronto; não são os princípios da revolução burguesa, da revolução moderna; são povos tribais. Eu costumo dizer que as sociedades indígenas são sociedades de alianças. Essas alianças se estabelecem pelo casamento, por comungarem o mesmo espaço de caça, de colheita, de pesca; por terem cantos, expressões e ritos que se assemelham. Essa solidariedade está marcada profundamente por uma expectativa em relação à vida e com relação ao entendimento do mundo, mas ela não supõe isso que modernamente chamam de solidariedade política. É diferente, [a solidariedade indígena] é uma solidariedade que está vinculada muito mais a uma origem, a uma memória da origem do povo[25].

(…) a questão da solidariedade entre os povos indígenas deve ser pensada com muito cuidado, porque são sociedades de aliança por excelência, mas não são sociedades que acatam, ou que aceitam a dispensa da sua identidade na formação de uma massa. A política moderna pensa esse negócio de solidariedade de todo mundo junto; as sociedades tribais pensam a solidariedade dentro das diferenças, dentro da identidade de cada uma. Então, pensar a questão da solidariedade indígena na perspectiva latino-americana seria circunstanciar a uma região geográfica uma realidade que é cultural, que é étnica, que é histórica, que é mítica, que é cósmica. Para os povos indígenas não existe a América Latina, para os povos indígenas existe o universo[26].

“Quem nos chama de índio, aliás, é o branco”, continua Ailton, pois “cada grupo ou etnia tem uma identidade muito específica, muito própria. E são muito ciosos dessa identidade, não querem ser confundidos com a tribo vizinha”[27]. Quinze anos mais tarde, em 2009, num colóquio com o jornalista Marco Antônio Tavares Coelho, Ailton volta a esse ponto:

dois séculos de guerra bruta não conseguiram fazer o serviço que um pequeno período de democracia está fazendo – o de integrar de maneira absoluta essa diversidade cultural.

Índios são uma generalização absurda, porque acaba com (…) a possibilidade do menino na aldeia ensinar a seus irmãos, do avô ensinar a seus netos a sua história, ensinar na sua língua seus valores e sua tradição.

Esvaziam tudo e enfiam lá um monte de representação (…). Eles vão esvaziando a identidade desse índio e ele acaba virando uma espécie de figura parecida com sindicalista.

Essa novidade de todo mundo virar cidadão (de forma compulsória) tira também das pessoas a possibilidade de elas continuarem vivendo de alguma maneira a memória de sua tradição, de sua cultura[28].

A própria concepção “jurídica, histórica, formal” de “Terra Indígena”, como afirma Ailton na já citada apresentação de 2016 no Sesc Pinheiros, pressupõe a ideia de um “resguardo para os índios” ante à sua cidadanização compulsória, precária e perigosa. Trata-se, ele expõe, de “reservar um lugar onde esse povo pode esperar o amadurecimento com o contato com as frentes de economia, com as frentes de agricultura, de pecuária, esse avanço das fronteiras internas do país” – como se os indígenas, assim, tivessem de “evoluir, se sobrevivessem, para um contato adequado, protegido, com o resto da sociedade brasileira”[29]. Entrevistado, anos antes, em 24 de setembro de 2013, por Vinícius Carvalho para a Revista Ecológico, Ailton assim tomava a questão:

Só somos índios para os outros. Para nenhuma de nossas famílias nós somos índios. Quando uma pessoa do meu povo quer se identificar, entre nós, ela chama o outro de borum. E se você for traduzir o borum, quer dizer ser humano. Então, nós nos reconhecemos como seres humanos; e, talvez, a crise de civilização que vivemos seja um grande liquidificador que vai permitir que todas estas alcunhas generalistas – os amarelos, os índios, os brancos, os pretos – se dissolvam nesse caldeirão para que aprendamos, de novo, a ser a velha e ótima humanidade. Aceitar todos como irmãos – mesmo que ele não fale sua língua ou tenha hábitos diferentes dos seus – é um recurso de aproximação maravilhoso. O que acho que estes povos têm de beleza para contribuir com o arranjo da humanidade é justamente esta percepção sutil de que somos todos seres humanos. Somos coloridos, o mundo é colorido[30].

A solidariedade indígena permite a abertura para o humano e para universo a partir da diversidade, e não o contrário, como se observa na noção de solidariedade homogeneizante, massificadora, civilizatória do Ocidente. Nesta, toma-se a priori uma definição do que seria “universal” – por exemplo, o “Homem”, o “Índio”, o “Brasileiro”, o “Cidadão” –, atuando-se ante às diferenças, logo, sob uma perspectiva antitética, de conflito e de guerra, cujo produto menos cruel atende pelo nomes de “catequese” ou “evangelização”, “assimilação cultural” ou “aculturação”, e em cujo extremo se encontram os ataques e as invasões genocidas. E assim se naturalizam os conceitos fantasmagóricos tanto de “índio” quanto de “ex-índio”, e também as práticas genocidas e etnocidas. Por outro lado, a solidariedade indígena abraça o diverso, o “colorido”, para aí, na diferença, encontrar a fraternidade humana universal. Como diz Ailton Krenak em 1994, a solidariedade indígena “se estabelece no contato, ela se estabelece na visita, ela se estabelece nos protestos que os grupos tribais de uma ou outra região desse continente fazem e manifestam diante de governos autoritários e corruptos”[31]. Em um depoimento publicado em 1999, Ailton afirma, retomando Darcy Ribeiro, que a maior contribuição das nações indígenas para a sociedade brasileira não seria a terra em sentido físico e econômico – como “recurso natural” –, mas “a capacidade de viver junto sem se matar, reconhecendo a territorialidade um do outro como elemento fundador também da sua identidade, da sua cultura e do seu sentido de humanidade” – ou, em resumo, o “entendimento de que somos povos, que temos esse patrimônio e essa riqueza”[32]. Em seguida, criticando a visão historiográfica eurocentrada – que credita o surgimento da história do que viria a ser o território brasileiro à invasão dos ibéricos na virada do século XV para o XVI –, Ailton Krenak defende:

O encontro com as nossas culturas, ele transcende a essa cronologia do descobrimento das Américas, das circunavegações, é muito mais antigo. Reconhecer isso nos enriquece muito mais e nos dá a oportunidade de ir afinando, apurando o reconhecimento entre essas diferentes culturas e ‘formas de ver e mudar o mundo’ que deram fundação a esta nação brasileira, que não pode ser um acampamento, deve ser uma nação que reconhece a diversidade cultural (…)[33].

Deve-se “reconhecer o outro”, “reconhecer na diversidade e na riqueza da cultura de cada um de nossos povos o verdadeiro recurso que nós temos”[34]. Para isso, faz-se necessário abandonar o modelo ocidental de uma “humanidade” única, civilizada e esclarecida. Na palestra “Ideias para adiar o fim do mundo”, proferida, no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em 12 de março deste ano (2019), Ailton Krenak denuncia, com ironia:

a ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história[35].

A questão também foi tratada em entrevista cedida durante a Bienal de 2016:

se teve um momento em que conseguimos pensar que éramos uma humanidade, rapidamente descobrimos uma camada sobreposta a essa ideia de humanidade, que sugere que nem todos são tão humanos assim. E aí começamos a separar em lotes o planeta, onde há direitos que são para todos, que são humanos, depois há direitos para os mais ou menos humanos, e, finalmente, há lugares em que não cabem nem os direitos humanos, porque aquela gente não vive em estado de humanidade. Mas quem foi que decretou que existe um estado de humanidade? (…) Então, é uma seleção que não é natural, é uma seleção arbitrária das desigualdades humanas, das desigualdades entre os povos, entre todos nós. E, nessa escala de desigualdades, essa gente que ficou com o apelido de índios – seja aqui nas Américas, seja na África ou no norte da Europa –, sofrem a segregação contínua do seu pensamento, da sua visão, das suas ideias sobre o mundo e são constrangidos a ficar nos seus guetos, a professar suas visões de mundo nos seus guetos[36].

A essa concepção unívoca de “humanidade”, oferecemos legitimidade sempre que acatamos decisões, mesmo que ruins, de instituições ocidentais – tais como, elenca Ailton, “universidades e organismos multilaterais” surgidos no século XX –, “porque estão a serviço da humanidade que pensamos ser”[37]. Também a legitimamos quanto abrimos mão da nossa singularidade para nos tornar não pessoas críticas, mas consumidores esvaziados de sentido. Na mencionada palestra apresentada em Lisboa, Ailton indaga:

Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos[38].

Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou lugar daquilo que antes era cidadania. (…) Para que ter cidadania, alteridade, estar no mundo de uma maneira crítica e consciente, se você pode ser um consumidor? Essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra cheia de sentido, numa plataforma para diferentes visões[39].

Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade [branca, ocidental]. Nós não somos as únicas pessoas interessantes no mundo, somos parte do todo. Isso talvez tire um pouco da vaidade dessa humanidade que nós pensamos ser, além de diminuir a falta de reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que fazem essa viagem cósmica com a gente[40].

Em outra palestra apresentada em Lisboa, em 6 de maio de 2017, intitulada “Do sonho e da terra”, Ailton Krenak afirma:

Sentimo-nos como se estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas. Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar os outros, mas para salvar a nós mesmos[41].

Sigamos, agora, para o que diz Ailton sobre o tratamento dispensado a toda a diversidade humana (e não-humana) a partir da concepção única, eurocentrada e devastadora de “humanidade”, imposta pela civilização ocidental. Veremos que, por ação desta, o vasto campo que abriga diferenças singulares foi utilizado não como suporte para a construção de uma nação fraterna e multiétnica, porém como um terreno a ser esquadrinhado, depredado e aplainado, para a montagem de um reles “acampamento”.

2ª ideia: Deixe-se sintonizar, tocar, tatear e chocar com as pessoas e com a natureza

Relacionar-se com todo o universo a partir diversidade requer consenso, e isso não se permite construir por meio de contratos, acordos, sufrágios, leis ou documentos que pressuponham conflitos e disputas de poder. Em uma entrevista recente, cedida a Idjahre Kadiwel, Ana Paula Simonaci e Sergio Cohn em setembro de 2017, Ailton Krenak revê, criticamente, sua crença na Constituição de 1988 à época de sua promulgação:

Eu tinha trinta e poucos anos de idade e queria acreditar que aquilo era um contrato para sempre. Mas no fundo do meu coração, eu sabia que aquilo era um documento circunstancial. Ele valia por algum tempo. E agora está se mostrando que ele está vencido do ponto de vista do consenso. Quando você não tem um consenso, não adianta ter um documento[42].

Consenso, tampouco, se produz dentro de limites geográficos e fronteiras. Acerca das divisões do mundo, pelo Ocidente, em regiões econômicas, assim reflete Ailton:

Separar a Terra em primeiro e terceiro mundo é outra bobagem. Isso tem a ver com gerenciamento imobiliário. (…) Isso não tem a ver com a vida do nosso planeta. (…) Se os nossos parentes do planeta inteiro sacarem isso, entenderem isso, compreenderem a emergência disso… o meu pensamento vai tocar o seu pensamento que vai tocar o dele. Nossos pensamentos se tocam[43].

Antes de tratar sobre os “pensamentos que se tocam”, vale mencionar que, na mesma conversa de setembro de 2017, Ailton Krenak tece uma crítica direta à concepção política de Estado-nação:

Eu tenho observado que a referência da maioria dos povos que foram reunidos nessa configuração de Estado-nação ainda guarda uma ideia sobre esses arranjos que é datada. É uma concepção do século XIX, que teve ainda validade no século XX, mas que com o evento real da globalização do planejamento e do capital transnacional atravessando todas as fronteiras, continuar pensando nessas fronteiras de Estados nacionais é ficar com um modelo vencido na cabeça, achando que você vai restaurar essas relações na base do contrato, na base do acordo. Era melhor admitir que nós estamos vivendo no planeta Terra, que se constitui hoje um campo comum, onde as disputas não têm mais fronteiras. Se no final do século XX a gente já tinha concluído que o capital não tem fronteira, agora a gente tem que entender que a política também não tem fronteira.

(…) A própria estrutura da ideia de um Estado republicano está em questão porque os três poderes da República já desceram a ladeira. O Executivo, o Judiciário, o Legislativo. Eles estão desmoralizados diante da opinião pública, diante do consenso geral. (…) A gente não tem só que repensar um contrato social. A gente tem que repensar o tipo de sociedade que queremos ser[44].

Em referência ao papel do Estado brasileiro com relação aos povos indígenas, reproduzo abaixo mais umas passagens da palestra proferida por Ailton no Sesc Pinheiros em 2016:

o Estado não quer conversar. O Estado quer, de cima para baixo, imperar sobre nós. E a gente que atenda ao comando do Estado.

Nós somos povos (…) de muita diversidade. Temos cosmovisões, percepções do mundo e ideias de autonomia tão diferentes uns dos outros, mas nós todos temos em comum uma compreensão de que nós não aceitamos que o Estado brasileiro decida como uma aldeia nossa se organiza, como uma aldeia nossa decide e delibera. Nem como educamos nossos filhos ou como queremos continuar as nossas práticas, a herança cultural dos nossos antepassados. Quem põe valor na herança dos nossos antepassados, para cada um dos nossos povos, somos nós. Não é um agente do governo, não é uma instância da administração do Estado ou do governo[45].

Mesmo em um mundo dominado por governos e grandes empresas, opressor, dividido, bélico e em queda, Ailton mantém uma postura esperançosa. Se “estamos caminhando para um desastre comum”, ele explica em 2013, “porque não conseguimos nos reconhecer mais um no outro”[46], bastaria que os ocidentais deixassem seus pensamentos “se tocarem”, se “sintonizarem”, se integrarem para que, assim, compreendessem que as fronteiras estatais e econômicas não se justificam, e que a violência política que as criou é antinatural e infértil:

a natureza não vai se alimentar da violência. Nós somos herdeiros de uma tradição harmônica. (…) Todos os povos que adotaram a violência como recurso perderam a noção… A gente precisa é de sintonização, conhecimentos que nos mostrem que quanto mais cuidadosos nós formos ao tocar os lugares vitais no planeta nós vamos estar mais integrados, nós vamos ser o nosso planeta[47].

Essa “sintonização” e integração à Terra, que se opõem à violência, se concretizam por meio do que Ailton chama de “aliança afetiva”, que, baseada na “confiança de uns nos outros”,

se dá no ambiente do reconhecimento mútuo de determinadas identidades, de determinadas comunidades, que têm uma possibilidade ainda de solidariedade mútua, mas muito frágil no que tem de matéria para ser barganhada. (…) do ponto de vista das instituições, elas não têm mais essa permeabilidade. As instituições estão todas enclausuradas, cada uma na sua[48].

Sobre as “alianças afetivas”, Ailton voltaria a se referir numa entrevista cedida ao antropólogo e escritor Pedro Cesarino em agosto de 2016, durante a Bienal de São Paulo:

aliança na verdade é outro termo para troca. Eu andei um pouco nessa experimentação até conseguir avançar para uma ideia de alianças afetivas – em que a troca não supõe só interesses imediatos. Supõe continuar com a possibilidade de trânsito no meio de outras comunidades culturais ou políticas, nas quais você pode oferecer algo seu que tenha valor de troca. E esse valor de troca supõe continuidade de relações. É a construção de uma ideia de que seu vizinho é para sempre[49].

Já “esse mundo que a gente chama de mundo dos brancos, que pode ser o Ocidente”, ao invés, prossegue Ailton,

imprime marcas no mundo, abre rotas, e essas rotas são movidas por um interesse de saquear o roteiro. É um roteiro que vai saqueando o caminho. Ele não semeia o caminho, ele só colhe. Ela saqueia o caminho. (…) as relações estabelecidas nesse caminho, nesse trajeto, não tinham investimento para que durassem. Eram todos casamentos temporários, casamentos de circunstância. Passado aquele primeiro momento, as relações pessoais passam a supor que as pessoas sejam descartáveis. Você descarta certas pessoas e vai buscar outras, e nesse mote vai acessando recursos. As pessoas são só uma passagem para alcançar algum outro lugar, algum outro acesso. Elas não contam em si, não dão tempo, não possibilitam a construção ou a formação de ideias, o estabelecimento de afetos que não busquem um objetivo imediato, que possam prosperar e constituir um ambiente criativo, de invenção, de criação no sentido mais prazeroso, em que os afetos são espontâneos[50].

As instituições ocidentais, impermeáveis à solidariedade e aos afetos, estão mais preocupadas com o “desenvolvimento” imediato – que impõe o saque e o esgotamento de “recursos” e nos empurra para o abismo –, e são inaptas para lidar com o contínuo “envolvimento com o mundo”, peculiar entre os povos indígenas – que permite trocar indefinidamente com parceiros desinteressados –, como Ailton explica no já referido depoimento de 2013:

Se os índios estão fora daquele poder que está na representação política, que está no concerto do que chamamos de República, de democracia, quem tem capacidade de reflexão, de debate, deveria abrir um diálogo sobre outras formas de autogoverno, de autogestão, de organização comunal, outras formas de combinação, outro tipo de desenvolvimento. Será que não está na hora da gente pensar em envolvimento com o mundo que nós compartilhamos? Se a gente buscar envolvimento, talvez volte a dar sentido para os povos originários, as suas formas de organização, seu jeito de pensar o bem estar, seu jeito de pensar o que é necessário para a gente viver[51].

Envolvendo-se, “não se exaure o caminho por onde se passa”, orienta Ailton, “ao contrário, se enriquece o caminho”[52].

A esperança de Ailton Krenak – quanto à “sintonização de consciências”, o “toque de pensamentos” ou o “envolvimento com o mundo” – é tratada em outra entrevista mais antiga, cedida em 10 de maio de 1989, aos antropólogos Beto Ricardo e André Villas-Bôas, ambos do Instituto Socioambiental (ISA). Nela, afirma Ailton:

O povo original da floresta é o povo indígena. As nossas tribos são a gente que sempre viveu na floresta, mesmo o povo que vive em regiões que não é de floresta grande como a da Amazônia, os que são dos cerrados, os que são de regiões de capoeira, são povos da floresta, são povos do mato, e a cultura de nosso povo é uma cultura que tem economia, que tem toda a organização dela em cima do que a natureza oferece, em cima do que a natureza dá aos homens[53].

(…) Nós estamos fazendo uma campanha de conscientização do povo da cidade, porque o dia em que ele tiver o nível de consciência que o povo da floresta tem, a natureza não vai correr o risco que está correndo[54].

Os “povos do mato”, agentes da “tradição harmônica”, seriam os motivos da esperança de Ailton Krenak. Antípodas do processo civilizatório de desagregação entre homem e natureza, as nações indígenas do mundo constituem “os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra”:

são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes – a sub-humanidade. Porque tem uma humanidade, vamos dizer, bacana. E tem uma camada mais bruta, rústica, orgânica, uma sub-humanidade, uma gente que fica agarrada na terra. Parece que eles querem comer terra, mamar na terra, dormir deitados sobre a terra, envoltos na terra. A organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda, tanto que as corporações têm criado cada vez mais mecanismos para separar esses filhotes da terra de sua mãe[55].

Num depoimento cedido em março de 2017, em Lisboa, a Rita Natálio e Pedro Neves Marques, Ailton identifica os povos indígenas como

uma camada (…) que está sendo exterminada da interface de humanos muito-humanos. Os quase-humanos são milhares de pessoas que insistem em ficar fora dessa dança civilizada, da técnica, do controle do planeta. E por dançar uma coreografia estranha são tirados de cena, por epidemias, pobreza, fome, violência dirigida[56].

O Brasil, sendo um dos países que mais abriga esses “quase-humanos”, teria “uma responsabilidade muito grande de educar outros países e outros povos sobre a possibilidade de preservar uma região de floresta, com um povo tradicional que habita ali dentro, desenvolvendo uma tecnologia, uma economia própria e sustentável” – posto que “a maioria dos outros países não conta mais com essas condições, não tem populações tradicionais vivendo na floresta”[57]:

Nós queremos educar também o governo brasileiro, os centros de pesquisa do Brasil, as universidades brasileiras. Esse projeto de pensamento nosso não parte do pensamento de que o Brasil é sabidinho e vai ensinar o mundo a viver, nós partimos do princípio de que tem uma realidade que muitos países que são hoje ricos, sacrificaram sua natureza, sacrificaram seu ambiente para realizar um tipo de desenvolvimento, [que] é o mesmo tipo de desenvolvimento que hoje se tenta impor às regiões de ocupação tradicional de índios (…), [e] ele não é um modelo que serve para nossa população. Nós queremos mostrar para eles, para a opinião pública nacional e internacional, que a insistência em formas de desenvolvimento agressivo vai ser contra a vida das pessoas e contra a natureza[58].

Essa campanha de cunho pedagógico é referida em outra entrevista de 1989, feita por Alípio Freire e Eugênio Bucci, publicada em 1º de julho. Ailton Krenak, falando de si e de sua geração de militantes e pensadores indígenas, mostra que seu intuito era travar uma “conversa” junto “aos novos moradores”, “os novos brasileiros”, para que não habitem o país como “estrangeiros” num “acampamento”:

Nós sentimos que temos uma responsabilidade muito grande com relação aos novos moradores daqui da América. Eles vieram para cá – em alguns casos – fugidos, escorraçados das suas regiões de origem, desprezando essa terra, e agiram aqui – na maioria das vezes – como estrangeiros. Nós queremos conversar com os novos brasileiros para ver se eles conseguem entender os sinais dessa terra, amar esse lugar, viver aqui não como quem vive num acampamento[59].

Na já mencionada entrevista dada em 1994 para uma publicação mexicana, Ailton é mais direto: “nesses 500 anos que os brancos chegaram aqui, eles conseguiram apodrecer o vento, mataram muitos dos rios que hoje são esgotos vivos, são imensas feridas na terra, fedendo, podres”[60]. Cinco anos depois, Ailton, em depoimento, se refere às noções ocidentais de “progresso” e “desenvolvimento” com as seguintes palavras:

Essa capacidade de projetar e de construir uma interferência na natureza, ela é uma maravilhosa novidade que o Ocidente trouxe para cá, mas ela desloca a natureza e quem vive em harmonia com a natureza para um outro lugar, que é fora do Brasil, que é na periferia do Brasil[61].

(…) Parece que nós tínhamos muito mais progresso e muito mais desenvolvimento quando a gente podia beber da água de todos os rios daqui, que podíamos respirar  todos os ares daqui e que, como diz Caetano, alguém que estava lá na praia podia estender a mão e pegar um caju[62].

  Em entrevista publicada em 2008, feita pela historiadora Karen Worcman, Ailton Krenak reivindica “a liberdade de estar na natureza, de interagir, de mexer com as coisas da terra e de ter a impressão do mundo sobre elas”. Como o contato com a “natureza potente, com chuva, com seca”, está “cada vez mais distante”, Ailton manifesta

o desejo de que as crianças do mundo inteiro possam se chocar com a natureza, e não viverem separadas da natureza. Porque eu acho que enquanto a gente puder se chocar com a natureza, nós vamos continuar tendo a memória dos antigos seres humanos, que são nossos ancestrais.

Quando paramos de nos chocar com a natureza, podemos continuar sendo humanos, mas seremos muito diferentes desses antigos seres humanos que a gente aprendeu a amar, a reverenciar pelas coisas boas que eles significaram para nós. (…) Eu gostaria que as crianças todas pudessem ser mais livres. (…) a possibilidade dos meninos terem esse choque com a natureza e aprenderem desse choque com a natureza de verdade, transcender de alguma maneira, está cada vez mais controlada pelo modelo de cultura, de sociedade que nós estamos adotando no mundo inteiro. Voluntariamente ou involuntariamente está todo mundo virando civilizado. Na Terra toda, no planeta todo[63].

Para se libertar das cadeias da civilização, Ailton Krenak propõe uma aprendizagem pelo tato, que, numa inversão do modelo pedagógico ocidental, elege os pés, e não a cabeça, como meio privilegiado de conhecimento. Na mesma entrevista, rememorando sua infância, Ailton afirma:

eu devo ter usado mesmo um calçado desses que prende o pé só a partir de oito, 10 anos de idade. Antes disso eu andava com meu pé totalmente à vontade no chão. Até jovem, idade já de rapazinho, eu sempre tive a maior liberdade com o meu pé. Não queria ficar prendendo ele. Nós, os meninos que cresceram comigo, cresciam com o pé livre. Pé solto. Agora as pessoas vivem, todo mundo, com o pé preso. A gente andava pisando na pedra, pisando no chão. (…) A gente ia pegando isso tudo de sensação. Era nosso pé que ia lendo o chão pra gente. A gente estava aprendendo. Então, nós aprendemos tateando. Tateando o mundo, tateando a terra. (…)

Então, a terra dá um imenso manual de vida para os meninos, ainda mais no comecinho da vida. Esse choque com a terra, com a natureza, é de alguma maneira uma antecipação desses adultos (…). Agora nós estamos vivendo no mundo das certezas. Todo mundo põe tudo no seguro, e fica essa perspectiva totalmente neutra, sem choque com a vida, com a terra. (…) Para mim, a coisa mais importante que tem, depois da natureza, do choque com a natureza, é o choque com o outro, com outro ser humano[64].

É preciso, acredita Ailton, que nos choquemos com o outro e a natureza para, assim, nos desfazermos das certezas mal-garantidas pela ciência e pelo racionalismo ocidentais – “certezas” cujas consequências, tanto sob o ponto de vista ambiental quanto sócio-político, são explicitamente desastrosas. Ailton costuma se referir ao “tempo antigo”, aquele “instante anterior à linha que divide os povos que têm história e os que passariam a ter mito”, como o “tempo em que não havia a angústia da certeza”[65]. Esse “tempo antigo” se esvai quando ocorre a troca do que Ailton chama de “mito”, ou mais propriamente de “cosmovisão” – conceito que abordarei mais detidamente a seguir – por uma metafísica, um conjunto de abstrações a serem perseguidas. Entre elas, a “ideia de civilização”, que, segregadora dos povos que não a aceitam como modelo, impõe a “angústia da certeza”,

de ter certeza de que vão poder controlar aquele lugar onde estão vivendo, aquela paisagem, que vão conseguir através do conhecimento, da ciência, da experimentação, controlar a passagem do tempo, as mudanças dos ciclos de plantio e da colheita, até chegar a esse extremo que nós experimentamos hoje (…). E essa compreensão crescente de que o mito é uma categoria do conhecimento de povos que não têm história, que não têm pólis, que não têm política, que não pensam a complexidade das relações no mundo que nós compartilhamos, é uma grave herança segregacionista (…)[66].

Para vislumbrarmos a amplitude do conceito de “cosmovisão”, sugiro, antes, considerarmos o que Ailton Krenak reflete acerca do conceito de  “lugar”, de “habitação”, que seria o oposto do catastrófico “acampamento” erguido pelo colonialismo branco em escala global.

3ª ideia: Entenda que viajamos na mesma canoa, habitamos uma só aldeia, vivemos num único lugar

Na entrevista cedida em 1994 a Maria Teresa Sierra, dando prosseguimento à exposição da ideia de “solidariedade indígena”, Ailton Krenak trata da “consciência cósmica” que os povos nativos têm em relação à existência uns dos outros, independentemente das fronteiras artificiais impostas pelo modelo branco de geopolítica[67]. Ele afirma: “a gente não divide o mundo em departamentos, mas nós entendemos o mundo como lugar[68]. Adiante, complementa: “o que caracteriza a solidariedade indígena é, sobretudo, o sentimento de que o coração que pensa e sente dentro de um determinado lugar do mundo, ele está ligado, ele é indissolúvel, ele é indissociável de outros corações que estão batendo, e de outro sentimento (…) que está procurando fazer a trajetória aqui neste lugar[69]. A “consciência cósmica” ultrapassa as fronteiras dos Estados e das nações; mais do que geopolítica, estamos diante de uma cosmopolítica. Em depoimento cedido em 1999, invocando Pierre Clastres, Ailton explica:

somos sociedades que naturalmente nos organizamos de uma maneira contra o Estado: não tem nenhuma ideologia nisso, somos contra naturalmente, assim como o vento vai fazendo o caminho dele, assim como a água do rio faz o seu caminho, nós naturalmente fazemos um caminho que não afirma essas instituições como fundamentais para a nossa saúde, educação e felicidade[70].

Em entrevista mais recente, de 2017, Ailton retoma a relação entre habitar um lugar e ter consciência planetária”:

Sou apenas uma pessoa que sei onde é que estou. (…) Eu não fico feliz de constatar essa realidade que eu considero ser global. Eu não consigo mais, meus amigos, fazer nenhum debate pensando em Brasil, América Latina, Hemisfério Sul. Quando eu estou conversando sobre alguma coisa, eu penso como alguém que está em algum lugar do planeta Terra. Eu não consigo pensar num lugar separado do resto do mundo. Tudo o que eu fizer aqui tem consequência no mundo inteiro. Eu tenho consciência disso. (…) eu não consigo pensar em nenhuma escolha minha que não tenha consequência planetária[71].

A reflexão acerca da ideia de lugar, ou mais especificamente da ideia de habitar, se move em amplo espaço no pensamento de Ailton. Ainda que, a princípio, pareça que ele se refere exclusivamente à solidariedade que enlaça os povos nativos que vivem ao redor do mundo, destaco que, por se tratar de uma “consciência planetária ou cósmica”, ela se estende, nos mesmos laços solidários, daquele que habita um lugar em direção a tudo o que vive – tudo o que tem o “coração batendo” –, em todo o universo. Talvez fosse mais apropriado dizer, aliás, que os laços não se estendem, mas atravessam tudo o que existe, já que unem a imensa diversidade do universo num mesmo lugar. Somos todos habitantes do cosmos: humanos, animais, plantas… pedras, montanhas, rios, nuvens, estrelas, etc. É preciso ter em mente, nesse ponto, as noções de povo e de pessoa que Ailton Krenak herda dos seus ancestrais, que já abordei em outro texto e de que voltarei a tratar. Por ora, note-se que, na grande maioria das cosmologias ameríndias, tudo o que existe são pessoas, ainda que sob diferentes corpos (ou “trajes”). A noção de “ecologia” ou de “ambientalismo” subscrita aqui teria mais a ver com o que no Ocidente se convencionou setorizar como “humanidades” ou “ciências humanas”, “filosofia” ou “antropologia”, “direito” ou “diplomacia”, do que com as diversas áreas da “biologia” ou das “ciências naturais”. E é uma “ecologia radical”, “profunda”, pois se propõe a implodir a fronteira, especulativa e antropocêntrica, entre “natureza” e “humanidade”:

Devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas, incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de tudo: 70% de água e um monte de outros materiais que nos compõem. E nós criamos essa abstração de unidade, o homem como medida das coisas, e saímos por aí atropelando tudo, num convencimento geral até que todos aceitem que existe uma humanidade com a qual se identificam, agindo no mundo à disposição, pegando o que a gente quiser[72].

Embora sempre tenha estado subsumida nas reivindicações dos indígenas por proteção de seus territórios e costumes tradicionais, cabe sublinhar que a questão ambiental passou a ter, já em fins da década de 1980, papel de destaque nas diretrizes da UNI. Lembremos que, com ampla cobertura da mídia, inclusive internacional, Ailton Krenak, Raoni Metuktire e Paulinho Paiacã promoveram, em fevereiro de 1989, um importante encontro sobre ecologia em Altamira, Pará[73]. Numa conversa, também de 1989, com Jan Fjelder e Carlos Nader para a revista Caos, é possível vislumbrar como se constrói o viés ecológico do pensamento de Ailton Krenak. Sentado num tronco sob uma árvore, em frente ao imóvel onde viria a ser sediado o Núcleo de Cultura Indígena, no bairro do Caxingui, em São Paulo[74], Ailton propõe uma crítica ao antropocentrismo, no qual se baseia o pensamento ocidental:

A ideia de que o homem é o mantenedor da Terra, da vida aqui do planeta, é uma pretensão descabida. (…) Eu imagino uma situação em que não houvesse nenhum humano aqui nesse planeta. Milhares de outras espécies não iam nem perceber. Se em algum tempo um tatu chegasse para um caititu e falasse assim: ô caititu, sumiram os humanos faz tempo, né? É capaz que o caititu respondesse: quem?[75]

Mais tarde, em uma palestra apresentada na USP em 2017, Ailton falará do “ensimesmamento, a absurda concentração antropocêntrica, esse pensamento que orientou e que sustentou o processo de colonização das Américas”[76]. A pretensão de superioridade e sua decorrente solidão, a partir das quais o homem antropocêntrico se apartou do mundo, e que não fazem sentido fora do âmbito branco-colonial, teriam relação direta com a ideologia desenvolvimentista. Afirma Ailton em 1989: “eu acho que quando os homens botam torres, prédios e essas máquinas barulhentas por todo lado, ele não está fazendo nada mais do que berrar para dizer que ele está aqui”[77]. E o progresso material e científico-tecnológico do Ocidente nada teria a ver com as promessas civilizatórias de sapiência, felicidade e bem estar:

Pode ser um bando de assaltantes e delinquentes que se mutilam e desenvolvem uma experiência tecnológica, científica e econômica – um desenvolvimento fantástico –, mas eles não estão realizando nada no sentido de uma civilização. Eles não estão construindo uma sabedoria, um acervo de conhecimentos, de cultura. Os três pilares da aventura ocidental, desenvolvimento, tecnologia, progresso, não têm nada a ver com qualidade de vida, com a nossa felicidade, estabilidade e equilíbrio. A nossa Mãe Terra não tem nada a ver com essas bobagens[78].

Fazer um automóvel, míssil, aviões, prédios, isso não tem nada a ver com o nosso horizonte[79].

“A ideia de prosperar”, diz Ailton em 2017, “foi capturada pela ideia de progresso e de expansão”[80]. Em oposição aos conceitos branco-ocidentais de “desenvolvimento”, “técnica”, “tecnologia” e “progresso”, na ecologia de Ailton Krenak se interpõe uma apologia àquela prosperidade caracterizada pela simplicidade e pela frugalidade, que costumam ser confundidas, sob a perspectiva moderna, com “primitividade” ou mesmo “animalidade”. Em entrevista de 1994, ele explica:

Eu creio que quando o criador nos fez e nos orientou um jeito de viver, ele nos deu maneiras simples de viver porque ele sabia que vivendo de maneira simples dificilmente nós chegaríamos a destruir o lugar que vivêssemos. Dificilmente, iríamos agredir a criação de deus, que é o lugar sagrado da terra, dos rios, das montanhas, do vento[81].

No pensamento de Ailton Krenak, viver de maneira harmoniosa com a natureza – “viver somente pelo que a terra pode proporcionar, sem exauri-la”[82] – tem, no entanto, uma potência mais radical do que pode sugerir a adoção de um mero estilo de vida “frugal”, ou “primitivo” no ponto de vista ocidental. Trata-se de reivindicar um modo de viver na diferença e no contato, o que se contrapõe àquele modelo unívoco e abstrato de “humanidade” forjado ao longo da história do Ocidente – ponto sobre o qual já me referi. Na palestra “Ideias para adiar o fim do mundo”, Ailton denuncia que

fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso – enquanto seu lobo não vem –, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ela é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que consigo pensar é natureza[83].

A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo[84].

Eis aí o abismo em que caímos: o artifício homogeneizante dos brancos que aparta natureza e humanidade. Ailton afirma: “não existe separação entre humanos e aquilo que a idade moderna chama de natureza. Nós somos natureza”[85]. “Essa humanidade complexa e dualista, que gosta de dividir o mundo entre bem e mal, bom e ruim, possível e impossível” seria, para Ailton, um engodo[86]. Voltarei a esse ponto mais adiante.

Para finalizar esta seção, gostaria de destacar que Ailton Krenak costuma recorrer a dois símiles – a canoa e a aldeia – para explicar o quanto o antropocentrismo desenvolvimentista ignora que a Terra seja um só lugar. Dessa ignorância decorre a cegueira quanto ao fato, cada vez mais incontestável, de que, espoliando a Terra de seus bens naturais, o Ocidente está impedindo a sua própria possibilidade de vida:

as pessoas não conseguem ver isso, não conseguem apreender esse sentido. Elas ficam se espalhando, depredando tudo. Um dia todas as pessoas vão ter que perceber que tudo isso aqui é um lugar só. (…) É como se estivéssemos todos aqui viajando numa canoa, e de repente alguém começa a tirar uns pedaços dela para fazer fogo. (…) Eu acendo o fogo. Você também pega um pedaço, quebra um pedacinho, faz um foguinho, cozinha. Aí eu cago aqui, vomito ali, vou jogando meus detritos aqui, meus restos, meu lixo. Então chega um momento que a gente depreda de tal maneira a nossa canoa que se torna irreversível – nós dançamos – entramos todos em risco. Não só a gente humana… Mas nós estamos colocando em risco a vida do planeta[87].

Quando um povo, uma cultura entra em desequilíbrio, essas coisas vão acontecendo assim como em uma cadeia de acontecimentos. Cada coisa vai desencadeando acontecimentos cada vez mais desajustados. É muito importante que os homens consigam resgatar por outros caminhos a visão de que nós vivemos numa só aldeia[88].

“O comum é a Terra. A Terra é comum, o planeta é comum”, afirma Ailton em entrevista durante a Bienal de 2016[89]. Para que possamos resgatar a visão de que a Terra é um único lugar e, mais ainda, de que a Terra é sagrada, buscando inverter o desequilíbrio catastrófico desencadeado em todo o globo pelo Ocidente antropocêntrico e desenvolvimentista, é necessário, antes, entendê-la como um ente vivo. Passemos, agora, para o que Ailton nos diz sobre essa orientação.

4ª ideia: Compreenda que a Terra é viva e sagrada, e permita que ela descanse

“Parece que o mote da civilização é domar a natureza, como se a natureza fosse um potro selvagem”, analisa Ailton em setembro de 2017; “além de perigosa”, a natureza, nessa concepção, “está na iminência de nos engolir, então a gente precisa criar um sistema de segurança complexo, vasto, para controlar essas tendências da natureza”[90]. Para reverter essa suspeita e esse desejo de domesticação e controle da natureza, faz-se necessário resgatar aquela “concepção sagrada de existência”, na qual se baseia a visão indígena de habitar um lugar. Na já referida entrevista de 1994, Ailton Krenak explica que a singularidade desse “um lugar” se define sob a perspectiva da diferença e, a partir dele, é possível se relacionar com todo o universo – encarando-o, não como algo a ser dominado, mas como um ente sagrado:

Alguns grupos étnicos têm uma viva memória – e transmitem isso oralmente – da sua origem, da sua criação, em regiões do mundo, mas nunca se colocando na América do Sul, ou na América do Norte, ou na Ásia, ou na China. Colocam-se num determinado lugar que se relaciona com o universo, é daquele lugar que estão para o universo. É uma concepção muito sagrada da existência, é uma concepção profundamente espiritual da existência. Não se limita a uma geopolítica ideológica, moderna, estratégica, mas ela se estabelece a partir de um pensamento, de uma concepção profundamente religiosa da existência do próprio indivíduo e de todas as coisas[91].

Estender o sagrado sobre todas as coisas implica em conceber a própria natureza, incluindo a si mesmo, de modo “profundamente religioso” – o que acaba por implodir os limites do conceito ocidental de “religião”. Na citada conversa de agosto de 2017, Ailton Krenak é categórico ao tratar da singularidade dos povos indígenas quanto ao sagrado:

Esses coletivos tinham uma engenharia complexa de relacionamento que era sinalizada não só pela natureza, mas por outros eventos, que são indicados por outras entidades, das suas práticas, do que poderia ser entendido como a sua subjetividade, mas que para o Ocidente é religião. E imprimiram para nós esses termos de religião. Índio não tem religião. Quem trouxe essa história de religião para cá foram os jesuítas, os missionários. Quando eles viram nossos ritos, nossas práticas, chamaram isso de religião. Talvez até por entender que aqueles ritos e aquelas práticas eram mais parecidos com o que eles entendiam como religião[92].

Além de não se conformar com a ideia branca de “religião”, o sagrado indígena põe em xeque as dicotomias ocidentais entre “natureza” e “cultura”, “eu” e “outro”, “sujeito” e “objeto” (entendido principalmente como “recurso”). A respeito disso, Ailton comenta na entrevista de setembro de 2013:

Muita gente tem problema com a palavra ‘sagrado’ e acha que aplicar esse termo à natureza é um exagero, como se fosse uma tentativa equivocada de estender à natureza conceitos que são só da cultura. É difícil, muita gente tem vergonha do sagrado ou demonstrar alguma sensibilidade que não tenha a ver com o próprio umbigo. Se reproduzir e se bancar com o máximo de consumo, qualquer idiota pode fazer, mas não é qualquer idiota que consegue transcender à fissura de si mesmo e ter a percepção de que somos mais do que animais que se reproduzem e dominam territórios. Somos capazes de ideias, percepções e sentimentos que restabelecem para nós mesmos o sentido de sagrado. E sagrado pode ser tudo aquilo em que botamos os olhos, a depender dos olhos com que enxergamos o mundo. Se vemos uma montanha como toneladas de minério a serem transformadas em carros e outras bugigangas, então ela não pode ser sagrada. Se olharmos uma floresta e não conseguimos vê-la com algum significado transcendente, então ela vira só um estoque de recursos naturais. (…) alguém olha um rio e só pensa em quanta energia pode ser retirada dali. São verdadeiros vampiros que olham a natureza com as presas de fora[93].

Na palestra “Do sonho e da Terra”, apresentada em Lisboa em 2017, Ailton volta a relacionar a dessacralização e despersonalização da natureza com a sua transformação catastrófica em “recursos”, conforme operadas na economia antropocêntrica ocidental:

Quando nós falamos que o nosso rio é sagrado, as pessoas dizem: ‘isso é algum folclore deles’; quando dizemos que a montanha está dizendo que vai chover e que esse dia vai ser um dia próspero, um dia bom, eles dizem: ‘não, uma montanha não fala nada’.

Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos, não só aos que em diferente graduação são chamados de índios, indígenas ou povos indígenas, mas a todos[94].

Desvencilhando-se do antropocentrismo, do individualismo e da mercantilização, saindo de uma “negação da vida para um compromisso com a vida”[95], é possível transformar nossa visão e, assim, conhecer o “sentido de sagrado” em tudo o que percebemos. A natureza, nesta concepção, torna-se não somente sujeito, mas fonte de sabedoria – contemplamos, boquiabertos, sua potência educadora. Ailton Krenak transmite, por exemplo, a “lição da água”, que nos ensina sobre autoaceitação e humildade: “respire e mergulhe o mais fundo que puder”, e não nade contra a corrente, pois, “quem quer nadar contra a corrente é o velho homem”, “e mergulhar fundo significa aceitar os nossos defeitos, as nossas incapacidades. Enquanto não fizermos isso, aceitaremos que somos capazes de sermos maiores que nós mesmos”[96]. “Se você conseguir ser transparente com todos esses lados da sua vida”, Ailton conclui acerca de um “novo homem”, “é bem possível que vá desvendar uma coisa divina na sua frente. Porque o divino é transparente”[97]. Abandonando a “corrida maluca onde ninguém tem lugar para chegar, mas todo mundo está correndo”[98], conhecendo-nos mais a fundo, conscientizando-nos dos nossos limites, deixando-nos levar pela corrente, atingimos a transparência do sagrado.

Nessa transparência, diz Ailton Krenak em uma entrevista a Sergio Cohn de dezembro de 2013, uma montanha “tem um humor, ela fala; eu desperto pela manhã e vejo o semblante da montanha e sei se ela está feliz, irritada, bem, descansada, repousando. A montanha fala comigo, porque eu me reconheço nesse lugar[99]. Na mencionada palestra apresentada em Lisboa em março deste ano (2019), Ailton lembra que

no Equador, na Colômbia, em algumas regiões dos Andes, você encontra lugares onde as montanhas formam casais. Tem mãe, pai, filho, tem uma família de montanhas que troca afeto, faz trocas. E as pessoas que vivem nesses vales fazem festas para essas montanhas, dão comida, dão presentes, ganham presentes das montanhas[100].

Em oposição a essas cosmovisões indígenas, a tradição ocidental despersonaliza a natureza:

se a montanha não fala comigo, eu posso pegá-la e jogá-la em cima de um trem e mandá-la para um depósito de minério qualquer. Porque você despersonaliza a paisagem, tira o sentido, esvazia o significado desta cosmovisão (…). Se você não tem um imaginário, se o seu coletivo não compartilha um espaço que é recriado o tempo todo pela alma, pelo espírito, pela cultura, pelo ambiente da visão, a visão da cultura, você está visando uma coisa totalmente miserável, que não tem sentido algum. Você foi jogado em qualquer lugar[101].

Ser jogado em qualquer lugar significa cair num ciclo vicioso, ou esmorecer num labirinto sem saída construído pelas mesmas instituições que nos expulsaram do nosso lugar, porque,

enquanto a humanidade está se distanciando do seu lugar, um monte de corporações espertalhonas vai tomando conta da Terra. Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que devoram florestas, montanhas e rios. Eles inventam kits superinteressantes para nos manter nesse local, alienados de tudo, e se possível tomando muito remédio. Porque, afinal, é preciso fazer alguma coisa com o que sobre do lixo que produzem, e eles vão fazer remédio e um monte de parafernálias para nos entreter[102].

Ante a esse contexto, “se você quer reclamar uma voz de humanidade, de conserto da humanidade”, sugere Ailton, “você tem que ser capaz de criar uma plataforma que caiba todo mundo. De onde você fica em pé sobre si mesmo e dialoga com um mundo de seres que são de verdade[103]. Trata-se do “pensamento mágico”, “essa mágica de restabelecer o dom dos humanos, devolver para a humanidade essa potência de suspender o céu, de fazer a terra se mover, as montanhas falarem”, e “isso é resgatar o sentido cósmico da vida[104]. Na já mencionada conversa com Pedro Cesarino durante a Bienal de São Paulo de 2016, Ailton Krenak o define como “um pensamento potente, que se comunica em diferentes direções com transmundos, que transita e que tem o poder de criar reações em cadeia nos ambientes nos quais esses pensamentos são emitidos, nos quais eles são exprimidos”[105]. Por meio desse “pensamento mágico”, é possível ampliar as “alianças” para além do “plano das relações sociopolíticas”:

Quando eu vou a um riacho, a uma fonte, naquela nascente, eu estabeleço uma relação com ela, converso com ela, eu me lavo nela, bebo aquela água e crio uma comunicação com aquela entidade água que, para mim, é uma dádiva maravilhosa, que me conecta com outras possibilidade de relação com as pedras, com as montanhas, com as florestas. (…) As relações não são percebidas como potência que ocorre só entre pessoas, no sentido comum em que nós entendemos as pessoas, as relações humanas, as relações sociais. Elas são alianças com muitas outras potências que estão dadas, que são possíveis. O raio, a chuva, o vento, o sol, a brisa, as paisagens. Aliança é troca com todas as possibilidades, sem nenhuma limitação[106].

(…) No plano desse pensamento [mágico], no lugar desse pensamento, admitimos que ele continue criando janelas de comunicação entre esses mundos, nesse lugar em que as negociações acontecem o tempo todo. Seria talvez como alguma norma de reconhecimento. Um reconhecimento. É um sentido de gratidão, de pertencimento, de ser aquela família, de ser daquele mundo. Se você pode pedir alguma coisa para a água, é porque você tem relações com o mundo da água. Se você pode estabelecer trocas, se você pode se comunicar com a água e estabelecer troca com a água, significa que você pode pedir e dar coisas a ela. Tem um trânsito[107].

Logo a seguir, perguntado quanto à diferença entre a sua atividade e o trabalho de um xamã em uma aldeia, Ailton responde: “não há uma diferença fundamental”[108].

Advinda do “pensamento mágico”, que permite o “reconhecimento”, o “trânsito” e as “alianças” em todo o cosmos, Ailton sublinha, na entrevista de dezembro de 2013,  que a “cosmovisão” significa “viver dentro da coisa” – “não é só verbalizar”, ele pontua, “mas viver dentro dela” –, o que “abre a possibilidade para nós, humanos, de recriarmos o mundo”[109]. Assim Ailton explica o que significa viver dentro do que conhecemos como Terra, na parte final de sua palestra de 2016, no Sesc Pinheiros: “quando nós falamos da terra, nós não falamos de um sítio, de uma fazenda ou de um latifúndio, nós falamos do planeta, como um organismo vivo[110]. E na palestra apresentada na USP em 2017, Ailton diz:

Se há um lugar onde a terra descansa, isto deve sugerir também que a terra pode ficar cansada, já que é pensada como um organismo vivo. O que não reflete a mesmice do pensamento racional e científico. (…) a ciência desde alguns séculos atrás decidiu que esse organismo vivo podia ser esquadrinhado, recortado, eventualmente triturado e enviado para diferentes cantos do mundo, como recurso. Assim como você pode ir a uma roça e colher o trigo ou colher o milho, você pode ir a uma paisagem e colher uma montanha. Você atrofia uma paisagem como se ela fosse alguma coisa que se pode repor a cada safra, a cada estação[111].

E assim, em Lisboa, ele fala sobre aquele que conhecemos como rio Doce:

O rio Doce, que nós, os Krenak, chamamos de Watu, nosso avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo de que alguém possa se apropriar; é uma parte da nossa construção como coletivo que habita um lugar específico (…)[112].

Reconhecendo que a terra é viva e conceituando “cosmovisão” como “viver dentro”, Ailton abre uma perspectiva para a recriação do mundo oposta às visões totalizantes e totalitárias do Ocidente. Na conversa com Pedro Cesarino, Ailton Krenak relaciona a “experiência de dilatação do tempo”, sobre a qual voltarei a falar, com o estado de “abertura” que se define, então, como “cosmovisão”:

Quando você tem uma experiência de dilatação do tempo, começa a pensar em períodos muito mais abertos. É quando o meu pensamento consegue tocar uma ideia que vai além da percepção de um sítio, de um território, de determinado lugar na geografia, e começo a pensar nesse ambiente que nós compartilhamos, que é a Terra, que é um planeta. (…) Isso, para mim, é o que eu poderia experimentar como uma ideia de cosmovisão. Não é uma visão total, ela é uma visão aberta[113].

Adiante, Ailton sublinha que a “cosmovisão” abraça a “falta de certeza”, “libera a pessoa de construir uma projeção para o mundo”, e a conecta àquele “tempo sem a certeza da angústia”, quando “a humanidade, no sentido mais amplo, experimentou essa incerteza”[114] – e permitia que a Terra vivesse e descansasse.

O Ocidente, na ponta oposta, seria marcado por uma “transição do tempo do mito – tempo em que é possível tudo, em que é possível que os mundos se intercambiem – para um tempo chapado, com uma história linear”[115], com suas pretensas “certezas” e “projeções”:

essa ruptura que aconteceu entre o pensamento dos brancos e esse pensamento mágico levou ao afastamento da natureza, ao distanciamento dessa ideia de caçar a beleza para uma outra construção, digamos assim, da ideia de beleza, na qual ela passa a ser alguma coisa que você projeta, não que você captura. Que você irradia como uma ilusão de que existe em caráter permanente. Alimentando a ilusão de que você tem duração[116].

Daí a incapacidade de muitos pretensos “ambientalistas” – que mais se parecem com economistas, latifundiários ou empresários – quanto à compreensão do “pensamento mágico” e da “cosmovisão” nos quais se baseia o pensamento indígena, o que leva Ailton a atacá-los diretamente numa entrevista em 2013:

Como alguém podia se dizer ambientalista e não conseguir entender nada do que os índios estavam falando? E isso acontecia porque uma boa parte da agenda dos ambientalistas é compatível com a agenda dos caras que querem dominar e controlar espaços territoriais. Os serviços ambientais, crédito de carbono, por exemplo. Essas agendas conflitam com o jeito que os índios se relacionam com a terra, porque os índios acham que a terra é mãe deles. Esses caras todos [isto é, os ambientalistas] acham que ela é uma mãe, mas de aluguel. Os ambientalistas querem alugar a terra para serviços ambientais, mas se você pergunta o que são serviços ambientais, descobre que pode ser qualquer coisa. (…) se os índios acham que a terra é uma entidade viva, todos os outros grupos, sejam ambientalistas ou fazendeiros, acham que a terra é um bem material, que pode ser alterado e melhorado. Tem gente que acha que pode melhorar a terra! E o pensamento originário nativo é que a terra é um ente vivo, que tem humor, uma dinâmica própria, um senso próprio. Você pode arrumar uma maneira de se relacionar com esse ente vivo, pode ser a maneira mais benéfica e harmoniosa, mas não se pode dinamizar a terra e torná-la outra coisa. Existe essa diferença essencial (…) e é uma bobagem acreditar que índios e ambientalistas pensam a mesma coisa[117].

Parte essencial da agenda ambientalista, o chamado “desenvolvimento sustentável” é duramente criticado por Ailton, que o chama de “mito da sustentabilidade, inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza”[118]. Na palestra apresentada neste ano (2019) em Lisboa, Ailton indaga: “recurso natural para quem? Desenvolvimento sustentável para quê? O que é preciso sustentar?”[119]. É preciso superar essa visão civilizada, branca, colonial de “ecologia”. Na já mencionada entrevista cedida, também em Lisboa, em 2017, Ailton explica:

Quando, por vezes, me falam em imaginar outro mundo possível, é no sentido de reordenamento das relações e dos espaços, de novos entendimentos sobre como podemos nos relacionar com aquilo que se admite ser natureza, como se a gente não fosse natureza. Na verdade, estão invocando novas formas de os velhos manjados humanos coexistirem com aquela metáfora da natureza que eles mesmos criaram para consumo próprio. Todos os outros humanos que não somos nós estão fora, a gente pode comê-los, socá-los, fraturá-los, despachá-los para outro lugar do espaço[120].

Como diagnosticou em sua palestra “Pensando com a cabeça na terra”, realizada na VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia da Universidade de São Paulo, em 18 de maio de 2017, “o tempo reclama novas epistemologias, visões para um mundo em vertigem”[121]. “Se a Terra é um organismo vivo, precisa ser respeitado”, alerta Ailton no fim da apresentação, e “nós não temos que cuidar da Terra, nós temos que respeitar esse organismo vivo que é a Terra”, pois “somos células desse organismo vivo”[122].

Todavia, o que temos agora é uma verdadeira catástrofe, de dimensão global – e geológica. Há alguns anos, Ailton Krenak vem se utilizando do famoso termo cunhado pelo químico Paul Crutzen, “Antropoceno”, para se referir ao nosso mundo em abismo. É o que se observa nessas passagens de duas entrevistas cedidas em 2017:

estamos hoje vivendo o desastre do nosso tempo, ao qual algumas seletas pessoas chamam Antropoceno. A grande maioria está chamando de caos social, desgoverno geral, perda de qualidade no cotidiano, nas relações, e estamos todos jogados nesse abismo[123].

(…) estamos vivendo uma era no planeta que é identificada como Antropoceno. (…) O Antropoceno é isso, está dizendo que estamos fazendo um rastro profundo. (…) um rio que você envenena pode demorar cem anos para sozinho voltar a ter resiliência. Se restaurar. Algumas partes do oceano que viraram ilhas de plástico, tartarugas e baleias que apareceram sufocadas pelo lixo, arquipélagos inteiros destruídos pela nossa falta de cuidado de se comportar aqui, tudo isso é marca grave. É o Antropoceno[124].

Na palestra “Do sonho e da terra”, Ailton Krenak evidencia que o antropo- de “Antropoceno” não se refere a toda a humanidade – ao contrário, trata-se de uma marca que se refere àquela porção de homens (brancos) que segregaram do mundo os outros humanos, as outras possibilidades de viver, de habitar, e de se relacionar com o universo encarado habitualmente como não humano:

A conclusão ou compreensão de que estamos vivendo uma era que pode ser identificada como Antropoceno deveria soar como um alarme nas nossas cabeças. Porque, se nós imprimimos no planeta Terra uma marca tão pesada que até caracteriza uma era, que pode permanecer mesmo depois de já não estarmos mais aqui, pois estamos exaurindo as fontes da vida que nos possibilitaram prosperar e sentir que estávamos em casa, sentir até, em alguns períodos, que tínhamos uma casa comum que podia ser cuidada por todos, é por estarmos mais uma vez diante do dilema (…): excluímos da vida, localmente, as formas de organização que não estão integradas ao mundo da mercadoria, pondo em risco todas as outras formas de viver – pelo menos as que fomos animados a pensar como possíveis, em que havia corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo direito à vida dos seres, e não só essa abstração que nos permitimos constituir como uma humanidade, que exclui todas as outras e todos os outros seres. Essa humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também nosso avô, que a montanha explorada em algum lugar da África ou da América do Sul e transformada em mercadoria em algum outro lugar. é também o avô, a avó, a mãe, o irmão de alguma constelação de seres que querem continuar compartilhando a vida nesta casa comum que chamamos Terra[125].

Além de se filiar ao antropocentrismo e ao etnocentrismo ocidentais, o “Antropoceno” também ascende ao patriarcalismo religioso, como Ailton indica na entrevista dada em Lisboa:

Todas as histórias antigas chamam a Terra de Mãe, Pacha Mama, Gaia. Uma deusa perfeita e infindável, fluxo de graça, beleza e fartura. (…) em todas as culturas mais antigas, a referência é de uma provedora maternal. Não tem nada a ver com a imagem masculina ou do pai. Todas as vezes que a imagem do pai rompe nessa paisagem é sempre para depredar, detonar e dominar[126].

Eis os anthropoi que radicam o “Antropoceno”: os homens que forjaram (e forjam) a antropocêntrica civilização (ou “humanidade”) ocidental – devidamente etnocêntrica, patriarcal, imperialista, predatória e tecnicista. Na palestra apresentada na USP em 2017, Ailton relaciona o rolo compressor civilizatório aos projetos arquitetônicos e urbanísticos levados a cabo pelos colonizadores:

esse pensamento branco para ocupar a paisagem das Américas, ele imprimiu nessa paisagem a visão de um platitude, a visão de um lugar plano, onde o saque de toda riqueza, de toda fartura da natureza, se constitui no projeto civilizatório, no projeto de conquista, no projeto de consolidação de um tipo de sociedade[127].

A questão também é mencionada nesse trecho de uma conversa de agosto de 2017:

Assim como as implantações e os assentamentos foram se sobrepondo à paisagem, esses equívocos também foram se constituindo em nossa convivência, em nossos relacionamentos, em uma série de tapumes sobre visões de mundo, homogeneizando uma ideia de que somos ‘os brasileiros’[128].

Trata-se de um processo de homogeneização e planificação da paisagem e das pessoas que, por meio do apagamento das consideradas “imperfeições”, ou da construção de “tapumes” aplanados e especulares, reflete a face que o homem branco quer ver, de si próprio, em todo o universo. É o que Ailton mostra na entrevista cedida em Lisboa, no mesmo ano:

Existe muita coisa que se aproxima mais daquilo que pretendemos ver do que se podia constatar se juntássemos as duas imagens: a que você pensa e a que você tem. Se já houve outras configurações da Terra, inclusive sem a gente aqui, por que é que nos apegamos tanto a esse retrato com a gente aqui? O Antropoceno tem um sentido incisivo sobre a nossa existência, a nossa experiência comum, a ideia do que é humano. O nosso apego a uma ideia fixa de paisagem da Terra e de humanidade é a marca mais profunda do Antropoceno[129].

Essa configuração mental é mais do que uma ideologia, é uma construção do imaginário coletivo – várias gerações se sucedendo, camadas de desejos, projeções, visões, períodos inteiros de ciclos de vida dos nossos ancestrais que herdamos e fomos burilando, retocando, até chegar à imagem com a qual nos sentimos identificados. É como se tivéssemos feito um photoshop na memória coletiva planetária (…). É como parar numa memória confortável, agradável, de nós próprios (…)[130].

A mesma relação entre as marcas profundas do Antropoceno e o domínio global do narcisismo tecnicista do Ocidente, no qual se incluem os projetos urbanísticos, é traçada nessa passagem de uma entrevista cedida em agosto de 2017:

Se consideramos que nós estamos vivendo numa era marcada pelos desastres humanos no planeta, seria também uma maneira muito didática de reconhecermos que nas tecnologias, nas escolhas e naquilo que está impresso na ciência da saúde, na ciência do habitar – do habitat –, na ciência da segurança. Esses diferentes campos do conhecimento, e entre eles está a arquitetura e o urbanismo, têm uma matriz comum, que é uma matriz profundamente informada por um pensamento de dominação da Terra em amplo sentido. A ideia de que a natureza é um recurso para ser disponível para os humanos incidirem sobre esse lugar criando espelhos de si mesmos. Se o estado da Terra hoje pode nos causar alguma impressão triste, a gente deveria reconhecer nele a nossa imagem. É o espelho do que nós fizemos com a Terra[131].

O problema, no entanto, é que o “Antropoceno” não leva ao abismo somente os anthropoi, isto é, os brancos e seu especular “mundo da mercadoria”, mas também, indiferentemente, as “outras humanidades”, os “outros mundos possíveis”:

o que está em risco, na verdade, não é só o mundo da mercadoria, que vai entrar assim numa espécie de erosão, ou de implosão de sua própria dinâmica. Mas é levar junto com ele os outros mundos, aqueles mundos possíveis. Isso seria aquilo que alguns teóricos chamam de guerra dos mundos. Tem um debate sobre a guerra dos mundos e a possibilidade de constituir outras relações apoiadas na cooperação, na solidariedade, nos afetos[132].

Já sabemos de que lado estão, nessa “guerra dos mundos”, as verdadeiras práticas de cooperação, solidariedade e afeto. E mesmo que elas não possam mais nos salvar do abismo onde todos já caímos, elas podem amenizar nossa queda. Vimos que nosso abismo foi aberto, com sulcos profundos, “geológicos”, num planeta despersonalizado, dessacralizado, objetificado, reduzido a “mercadorias”, e polido a ponto de refletir o rosto (branco) dos homens que, no afã de superá-lo e o dominar, modificaram, escavaram e aplainaram suas diferenças de paisagem e de visões de mundo, pondo em coma seu dinamismo vital. A tradição ocidental, ascendendo até os gregos, tanto gosta de metáforas geométricas que podemos assim dizer: nosso abismo se estende entre os limites ditados por arestas que, isoladas e postas em contradição, em paralelo, se estendem horizontalmente. Caímos, mas não para baixo; caímos “para frente”, seguindo as rotas abertas, às cegas e com muita devastação, pelo mortífero progresso. Caímos não para o âmago da terra – nosso abismo não consegue alcançar a profundidade e a fartura do telúrico –, mas para um horizonte plano, envenenado e miserável, dominado por espelhos e rótulos, técnicas e construções destruidoras. Um horizonte (supostamente) assegurado e domesticado por indivíduos que, encapsulados em si mesmos, desconhecem qualquer vínculo que não aponte para “recursos” imediatos – e que só sabem projetar, sendo incapazes de sonhar. Porque, vale perguntar, com o que conseguem sonhar os anthropoi, os escavadores de abismos, os agentes do “Antropoceno”, a não ser com os “projetos” nos quais gostariam, narcisicamente, de que eles próprios se refletissem? Ou, ao invés, talvez faça mais sentido indagar: com o que insistem em sonhar, ainda, aqueles que, embora não sejam responsáveis pelas separações que forjaram o abismo, também caem nele, porém sabem como cair? Com o que sonham os “outros homens”, aqueles rebaixados, pela civilização, à categoria de “sub-humanidade”? Abordo na próxima seção o que Ailton Krenak tem a nos ensinar sobre o estatuto que o sonho tem entre os povos indígenas, e de como a informação onírica pode ajudar em nossa queda.

5ª ideia: Desfaça a fronteira entre sonho e realidade, abandone-se ao prazer coletivo de estar vivo

Da mesma forma que sabem ouvir as orientações do que comumente o Ocidente classifica como “mundo natural”, implodindo os limites que contrastariam “natureza” e “cultura”, “matéria” e “mente”, os povos indígenas também encaram o “mundo onírico” como uma potência pedagógica, desfazendo as fronteiras entre “sonho” e “vigília”. Na já citada palestra proferida em 2017 em Lisboa, Ailton Krenak nos lembra que existe

um lugar, uma prática que é percebida em diferentes culturas, em diferentes povos, de reconhecer essa instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia[133].

Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais se pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades[134].

Trata-se, enfim, da

instituição do sonho não como uma experiência onírica, mas como uma disciplina relacionada à formação, à cosmovisão, à tradição de diferentes povos que têm no sonho um caminho de aprendizado, de autoconhecimento sobre a vida, e a aplicação desse conhecimento na sua interação com o mundo e com as pessoas[135].

Essa “pedagogia do sonho” tem profunda relação com a noção de “cosmovisão”, sendo fundamental para a dinâmica de transmissão das diferentes tradições e seus saberes. Em entrevista de 2009, defendendo a escola bilíngue para as comunidades indígenas, Ailton afirma:

A importância de ser bilíngue e de ter liberdade para pensar é continuar uma narrativa, seja recebida no sonho, nos ritos, nisso que eles chamam de religião. Índio não tem religião. O mais autêntico que a gente pode identificar num núcleo de uma prática dessas famílias, desses povo antigo, é a continuação da tradição. Uma tradição que remonta aos mitos da criação do mundo[136].

  A profundidade a que atinge o sonho entre os indígenas, remontando a tradições e princípios cosmogônicos, antagoniza com o sonho enquanto projeção dos desejos típicos do Ocidente antropocêntrico, individualista e materialista. No depoimento dado em Lisboa em maio de 2017, Ailton esclarece:

Não o sonho comumente referenciado de quando se está cochilando ou que a gente banaliza ‘estou sonhando com meu próximo emprego, com o próximo carro’, mas que é uma experiência transcendente na qual o casulo do humano implode, se abrindo para outras visões da vida não limitada. Talvez seja outra palavra para o que costumamos chamar natureza. Não é nomeada porque só conseguimos nomear o que experimentamos. O sonho como experiência de pessoas iniciadas numa tradição para sonhar. Assim como quem vai a uma escola aprender uma prática, um conteúdo, uma meditação, uma dança, pode ser iniciado nessa instituição para seguir, avançar num lugar de sonho. Alguns xamãs ou mágicos habitam esses lugares ou têm passagem por eles. São lugares com conexão com o mundo que partilhamos; não é um mundo paralelo, mas que tem uma potência diferente[137].

O sonho iguala-se à natureza por conferir àqueles que o compreendem – os que são “iniciados” na “tradição para sonhar” – a faculdade de se “abrir” para “visões da vida não limitada”. Sabendo-se como sonhar, são possíveis a conexão e a passagem por “outros mundos”, que não são paralelos ou distantes em relação àquele onde ordinariamente habitamos – são apenas “diferentes”. Na já referida entrevista a Pedro Cesarino na Bienal de 2016, Ailton Krenak estabelece uma relação entre o sonho e a experiência que chama de “dilatação do tempo”, vivenciada por meio de práticas e rituais cosmológicas tradicionais:

Cantar e dançar para suspender o céu, que é uma experiência comum a muitos povos no planeta inteiro, é dilatar o tempo. Quando você canta e dança e suspende o céu, você está dilatando o tempo[138].

Dilatar esse tempo ordinário das nossas relações e possibilitar a criação de vazios para as visões, para os sentimentos das pessoas, para as elaborações que um coletivo pode ter sobre aquilo que é o sonho. Aquilo que é sonho[139].

“Dilatar o tempo” significa, portanto, “criar vazios” nos quais é permitido obter “visões”, “afetos” e “sonhos”. Mas não se trata, aqui, de um “vazio” como “ausência”, como explica em sua palestra em Lisboa:

Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande em relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição da vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação de adiar o fim do mundo é exatamente poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim[140].

As “ausências de sentido” nos tornam “zumbis”, meros repetidores da cartilha civilizatória, ao passo que o “vazio”, por meio do qual é possível se alcançar a dimensão do sonho, nos leva à experiência que, “dilatando o tempo”, nos permite experimentar o “prazer de estar vivo”, “que podemos chamar de inocência, no sentido de ser simplesmente bom, sem nenhum objetivo. Gozar sem nenhum objetivo[141]. Enquanto a “ausência de sentido” consome nossa subjetividade com prospecções, projetos, o “vazio” do sonho amplia a singularidade das nossas “visões”, nossa capacidade criativa, nossa “poética sobre a existência”, nosso prazer de existir e nossa capacidade de sermos diversos, únicos e, por isso, solidários, capazes de compartilhar novas histórias, habitar o mundo e nos aliarmos:

Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência. Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos[142].

Em tempos de “Antropoceno”, sonhar novos mundos e contar novas histórias tornam-se compromissos éticos não apenas com aqueles que vivem, hoje, no mundo comum que temos, porém também em relação às gerações futuras. Em sua palestra apresentada em Portugal, Ailton pergunta

já perguntou para as gerações futuras se o mundo que você está deixando é o que elas querem? A maioria de nós não vai estar aqui quando a encomenda chegar. (…) Se cada um de nós pensa um mundo, serão trilhões de mundos, e as entregas vão ser feitas em vários locais. Que mundo e que serviço de delivery você está pedindo?[143]

A preocupação com as gerações futuras não encontra posição na lista de desejos de desenvolvimento e progresso (infinitos) enumerada pelo Ocidente, com toda a sua inabilidade de ordem materialista, imediatista e individualista. A crítica ao individualismo ocidental, a propósito, se encontra em largas linhas no pensamento de Ailton Krenak, e é com ela que encerrarei esta seção. A “transformação em indivíduos”, imposta compulsoriamente pelos colonizadores, deparou-se com a resistência de uma concepção nativa de “sujeito coletivo”, de acordo com esta passagem da entrevista cedida em agosto de 2017:

essa invenção do indivíduo é um outro presente que nós recebemos do Ocidente. Aqui não tinha indivíduos. (…) eu gostaria de encontrar sujeitos coletivos, mas eu só encontro muito indivíduos por onde eu ando. A ideia de aculturação dos sujeitos coletivos e sua transformação em indivíduos é uma das máquinas mais poderosas de destruição que a cultura do Ocidente trouxe para esses povos que sempre perceberam a constituição da pessoa como um evento coletivo[144].

A concepção de “sujeito coletivo” é tão acentuada entre os povos indígenas que nem a tentativa de “aculturação dos sujeitos coletivos” impelida pelo Ocidente conseguiu dirimi-la:

Mesmo se esse povo já tiver sofrido um desastre tão grande que as suas marcas de clã e de parte tiverem sido diluídas, ainda existe uma unidade identitária que insiste em cuidar que a formação da pessoa seja um processo de cuidado. A formação da pessoa nasce num evento de cuidado. Então não tem indivíduo[145].

A palavra-chave aqui é “cuidado”, material que, na construção de um indivíduo branco, não parece ser empregado. Para um ocidental, o que se almeja é ser incomparável, ser “mais do que os outros”, para assim vencê-los, dominá-los:

O elogio do indivíduo é a máxima do Ocidente. Ocidente quer um cara que seja virtuoso, campeão, incrível, incomparável. Não tem outro igual a ele. Esse sujeito é a pessoa que vence no Ocidente. Não se faz o elogio ao sujeito coletivo, que compartilha, que quer ser solidário, que quer estabelecer relações plurais com todos os outros possíveis e se reconhecer nessas relações como parte. Existe no Ocidente uma ideia dominante de imprimir um pensamento, uma racionalidade que corta o fluxo de compartilhamento entre as pessoas[146].

A formação de uma “pessoa coletiva” – “células que conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo”[147] – ao contrário, requer todo o “cuidado” que se subscreve nas atitudes, que atravessam gerações, de compartilhar, solidarizar-se com “todos os outros possíveis”, estabelecer alianças efetivas e afetivas, e conviver, de maneira simples e prazerosa, habitando seu próprio lugar e, ao mesmo tempo, se comunicando com todo o universo, criando novas narrativas.

Conclusão

Podemos reiterar, como se quiséssemos rematar uma conclusão, que Ailton Krenak, ao longo das veredas de sua trajetória, tomou consciência do abismo em que caímos – e de que em relação a ele é impossível tergiversar. Essa consciência trágica da queda, todavia, não o impediu que continuasse seu percurso de lutas, e compartilhasse conosco as suas “ideias”. Pois, para estar no abismo, é preciso saber como cair, e Ailton soube buscar na força e na resistência de sua ancestralidade as orientações para lidar com a queda. Civilizar-se é cair, e os indígenas rapidamente compreenderam a “roubada” que lhes era imposta:

os povos do Caribe, da América Central, dos Andes e do resto da América do Sul tinham convicção do equívoco que era a civilização. Eles não se renderam porque o programa proposto era um erro: ‘a gente não quer essa roubada’. E os caras: ‘não, toma essa roubada. Toma a Bíblia, toma a cruz, toma o colégio, toma a universidade, toma a estrada, toma a ferrovia, toma a mineradora, toma a porrada’. Ao que os povos responderam: ‘o que é isso? Que programa esquisito! Não tem outro, não?’[148].

Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar com o seu mundo? Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes? Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos. A civilização chamava aquela gente de bárbaros e imprimiu uma guerra sem fim contra eles, com o objetivo de transformá-los em civilizados que poderiam integrar o clube da humanidade[149].

As mesmas “estratégias” e “manobras” – as mesmas “ideias” – utilizadas pelos indígenas que resistiram ao processo civilizatório podem, hoje, em pleno abismo global que Ailton chama de “Antropoceno”, ser empregadas pelos não indígenas? Trata-se de uma “preocupação” que Ailton Krenak continua manifestando:

Em 2018, quando estávamos na iminência de ser assaltados por uma situação nova no Brasil, me perguntaram: ‘como os índios vão fazer diante disso tudo?’. Eu falei: ‘tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa’. A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais[150].

“Expandir a subjetividade”: eis a estratégia usada pelos indígenas. Devemos empregá-la urgentemente, dado que, explica Ailton, o perigo de extinção ameaça a todos, e o mecanismo institucional de preservação de determinadas áreas como reservas de vida não é eficaz:

todos precisam despertar, porque, se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou de extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar nossa demanda. (…) Essa tragédia que agora atinge a todos é adiada em alguns lugares, em algumas situações regionais nas quais a política – o poder político, a escolha política – compõe espaços de segurança temporária em que as comunidades, mesmo quando já esvaziadas do verdadeiro sentido do compartilhamento de espaços, ainda são, digamos, protegidas por um aparato que depende cada vez mais da exaustão das florestas, dos rios, das montanhas, nos colocando num dilema em que parece que a única possibilidade para que as comunidades humanas continuem a existir é à custa da exaustão de todas as outras partes da vida[151].

A “expansão da subjetividade” encontra um forte adversário no Ocidente naquela que Ailton chama de “técnica”. No depoimento na Bienal de 2016, ele comenta:

essa técnica, essa eleição da técnica como um deus do pensamento do branco, foi tão radical que está imprimindo neste lugar que nós compartilhamos, a Terra, uma marca tão profunda que pode inviabilizar a nossa experiência de continuar vivendo aqui, pelo menos da forma que os antigos humanos a conheceram… Essa coisa de a Terra nos acolher, embalar os nossos sonhos, suprir as nossas necessidades de alimentação, de ter ar para respirar, de ter paisagens que comovem, entendeu? Vamos passar a ser uma única paisagem. Ora, se virar única, não é paisagem. A natureza da paisagem é a pluralidade, a diversidade, é a sucessão. As paisagens se sucedem, ou então não são paisagens. Quando nós acabamos com todas as paisagens da Terra, nós entramos em coma[152].

O tecnicismo é incompatível com a vida frugal e afetiva para com os outros e a natureza. Intolerante à diversidade do cosmos e à passagem do tempo – exatamente as potências que revelam seu caráter ilusório – a técnica deseja homogeneizar e congelar as diferentes paisagens do planeta. Eleita como “o deus do pensamento branco”, a técnica é a mãe do abismo que separa, no Ocidente, o homem de todo o restante da natureza:

há trinta, quarenta anos tinha percebido essa ruptura, essa coisa que a turma do Boaventura Santos chama de ‘abismo’, essa coisa abissal que é a separação do pensamento no Ocidente. Esse pensamento pegou uma escola e foi fundo nela, essa escola da negação da possibilidade da água, de uma montanha ou de uma pedra estabelecer qualquer tipo de comunicação com o humano, a ponto de criar uma distinção entre humano e não humano. Uma distinção tão radical que sugere que humanos somos nós, que podemos imprimir a nossa marca sobre tudo o que nós achamos que não é humano, os oceanos e todos os seus trilhões de vidas, as paisagens todas da Terra, que nós pensamos poder derrubar, cortar, podar, plainar.

Da cisão entre homem e natureza, surgiram a exploração da natureza, mas também dela derivam outras cisões, aquela que divide a humanidade entre ricos e pobres, Ocidente e Oriente (principalmente, o mundo islâmico), Capitalismo e “Comunismo” etc. O desdobramento de confrontos a partir da separação entre “humano” e “não humano” é tamanho que deveria, inclusive, nos fazer habituar com o abismo, como afirma Ailton em sua entrevista em Lisboa:

O desconforto que a ciência moderna, as tecnologias, as movimentações que resultaram naquilo que chamamos de ‘revoluções de massa’, tudo isso não ficou localizado numa região, mas cindiu o planeta (…). Não tem fim do mundo mais iminente do que quando você tem um mundo do lado de lá do muro e um do lado de cá, ambos tentando adivinhar o que o outro está fazendo. Isso é um abismo, isso é uma queda. Então a pergunta a fazer seria: ‘por que tanto medo assim de uma queda se a gente não fez nada nas outras eras senão cair?[153].

Se já nos encontramos em queda há tanto tempo, o que nos resta é expandir nossa subjetividade, “nossa capacidade crítica e criativa”, e construir “paraquedas coloridos”:

Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo? A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então por que estamos gritando com a queda? Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar com paraquedas coloridos[154].

Aceitemos a queda, e deixemos que nossa mente sofra uma ruptura, descondicionando-nos:

Talvez estejamos muito condicionados a uma ideia de ser humanos e a um tipo de existência. Se a gente desestabilizar esse padrão, talvez a nossa mente sofra uma espécie de ruptura, como se caíssemos num abismo. Quem disse que a gente não pode cair? Quem disse que a gente já não caiu?[155]

Não há escapatória para o abismo – resta-nos inventar paraquedas, e que eles sejam “coloridos, divertidos, inclusive prazerosos”:

Já caímos em diferentes escalas e em diferentes lugares do mundo. Mas temos muito medo do que vai acontecer quando a gente cair. Sentimos insegurança, uma paranoia da queda porque as outras possibilidades que se abrem exigem implodir essa casa que herdamos, que confortavelmente carregamos em grande estilo, mas passamos o tempo inteiro morrendo de medo. Então, talvez o que a gente tenha de fazer é descobrir um paraquedas. Não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos. Já que aquilo de que realmente gostamos é gozar, viver no prazer aqui na Terra. Então, que a gente pare de despistar essa nossa vocação e, em vez de ficar inventando outras parábolas, que a gente se renda a essa principal e não se deixe iludir com o aparato da técnica. Na verdade, a ciência inteira vive subjugada por essa coisa que é a técnica[156].

Com esgotamento do mundo da técnica e da ciência, o “paraquedas” é a única parábola possível. Mas “de que lugar se projetam os paraquedas?”, pergunta Ailton, e responde: “do lugar onde são possíveis as visões e o sonho. Um outro lugar que a gente pode habitar além dessa terra dura: o lugar do sonho”[157].

Bibliografia:

AILTON KRENAK. “Pensando com a cabeça na terra”. São Paulo: Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia da Universidade de São Paulo, 2017. Disponível em:

https://ocs.ige.unicamp.br/ojs/react/article/view/2641/2385.

AILTON KRENAK. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Índios no Brasil: História, Direitos e Cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012. 2ª reimpressão.

COHN, Sergio (org.). Encontros | Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.

PARAISO, Maria Hilda Baqueiro. Krenak. Verbete para o site Povos Indígenas do Brasil. Instituto socioambiental, 2007. Última modificação em 20 de agosto de 2018. Última visita realizada em 20 de julho de 2019. Disponível em:

https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Krenak

WERÁ, Kaká (org.). Ailton Krenak. Coleção Tembetá. Rio de Janeiro: Azougue, 2017.


[1] In: CONH, 2015, pp. 258-259.

[2] In: COHN: 2015, pp. 166.

[3] Em 1870, pesquisadores do Museu Nacional, com base em estudos de antropometria um tanto questionáveis, propuseram a hipótese de que os “Botocudos” seriam descendentes do chamado “Povo de Lagoa Santa”. Encontrados, entre 1843 e 1844, nas cavernas de Lagoa Santa, Minas Gerais, pelo célebre arqueólogo e naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund, os fósseis desse povo são datados de até 12 mil anos atrás. Trata-se de um dos mais antigos registros de ocupação humana de todo o continente americano. Atualmente, ainda que vá de encontro a opositores, a hipótese quanto à ancestralidade dos “Botocudos” remontar ao “Povo de Lagoa Santa” voltou a ser considerada, desde que, na segunda metade da década de 1990, o geneticista Sérgio Danilo Pena encontrou semelhanças nos DNA mitocondriais das ossadas encontradas por Lund e dos crânios dos “Botocudos” analisados no século XIX.

[4] Pretendo, em breve, escrever sobre o considerável número de naturalistas e cientistas do século XIX que se interessaram pela “primitividade” – ou mesmo “animalidade” – então atribuída aos “Botocudos”. Como resume Manuela Carneiro da Cunha: “nesse século de grandes explorações, o Botocudo não é o único índio que interessa à ciência, mas é sem dúvida o seu paradigma. O que os Tupi-guarani são para a nacionalidade, os Botocudos são para a ciência” (CARNEIRO DA CUNHA, 2012, p. 63).

[5] O que se deu, principalmente, graças à intervenção do marechal Cândido Rondon, e por meio de um decreto assinado pelo governo de Minas Gerais, após um processo de demarcação territorial que se arrastou por cerca de dois anos. Foi com base no território delimitado neste antigo decreto que a atual Terra Indígena Krenak – situada à margem esquerda do rio Doce, entre as cidades mineiras de Conselheiro Pena e Resplendor – foi oficialmente demarcada em 1997, com a restituição, por decisão do Supremo Tribunal Federal, de apenas quatro mil hectares de seu amplo território ancestral.

[6] Dos anos 1920 para cá, a história dos Krenak foi marcada por perseguição e invisibilização cultural, a ponto de terem sido proibidos de falar o próprio idioma, ou mesmo serem dados como “extintos” por ninguém mais, ninguém menos que Darcy Ribeiro, em seu clássico livro Índios e Civilização. Somem-se a isso: as migrações forçadas; o loteamento e roubo de seu território por fazendeiros, madeireiros, mineradoras e companhias do setor ferroviário; a opressão, a criminalização e a tortura praticadas durante o governo militar, que instalou, no seio do seu território, o chamado “Reformatório Krenak”; e, mais recentemente, a morte do Watu, que conhecemos como rio Doce, por conta do maior crime ambiental do Brasil, ocorrido na cidade de Mariana, Minas Gerais: o rompimento da barragem de rejeitos Fundão, da mineradora Samarco, controlada pela Vale e pela BHP Billiton. Para um apanhado da história do povo Krenak, contada pelos próprios, indico o belíssimo documentário Krenak, sobreviventes do Vale, dirigido por Andrea Marranquiel, lançado no começo deste ano (2019).

[7] In: COHN, 2015, p. 80.

[8] In: WERÁ, 2017, pp. 59-60. “Olhando desse lugar”, continua Ailton, “você pode ficar prostrado, se deprimir, se suicidar, virar alcoólatra, pirar ou se agarrar a uma resistência ditada pelas histórias, pelas narrativas, (…) tentar abrir alguma brecha nessa muralha de ignorância, de negação” (In: WERÁ, 2017, p. 60).

[9] Trata-se de uma compilação de três textos de Ailton Krenak – a transcrição de duas palestras e a versão adaptada de uma entrevista –, intitulada Ideias para adiar o fim do mundo, recentemente publicada (escrevo em julho de 2019, mesmo mês em que o livro foi lançado).

[10] In: COHN, 2015, p. 48.

[11] In: COHN, 2015, p. 17.

[12] In: COHN, 2015, pp. 14-15.

[13] In: COHN, 2015, p. 18.

[14] In: COHN, 2015, p. 154.

[15] Ailton Krenak confessa na citada entrevista de 1994: “Sem atentar para os aspectos históricos de cada etnia (…) é correr o risco da simplificação. (…) Pensar solidariedade dos povos indígenas, mesmo no contexto só do Brasil, é extremamente delicado. Eu tenho acompanhado essa luta pela construção de um movimento indígena no Brasil onde povos de tribos diferentes possam estar juntos e compartilhar e se esforçar por uma proposta. Mas nós temos identificado que dentro da ideologia, da tradição, da cultura, da religião de cada tribo há obstáculos terríveis a que se estabeleça esse pan-indianismo, essa coisa de povos tribais estarem juntos numa luta para fora” (In: COHN, 2015, pp. 150-151.

[16] Em palestra dada no Sesc Pinheiros em 2016, Ailton Krenak recorre a outra analogia com o mundo animal para se referir ao caráter disperso do movimento indígena: “os índios têm que passar longe dessa representação política formal. Talvez seja por isso que índios em movimento continuam experimentando uma dispersão feito casa de marimbondos”. (In: WERÁ, 2017, p. 50).

[17] In: COHN, 2015, pp. 220-221. Grifos meus. Mais adiante, na mesma entrevista, indagado acerca da possibilidade representação dos indígenas por um partido político, Ailton diz que isso “iria obrigar a plasmar todos nós numa só coisa única. Se virássemos uma coisa só, não vamos a lugar algum. Vamos acabar com a riqueza cultural, a diversidade cultural será perdida só para formar uma frente política” (In: COHN, 2015, p. 227).

[18] In: WERÁ, 2017, p. 41. Grifos meus.

[19] In: WERÁ, 2017, p. 42.

[20] In: WERÁ, 2017, p. 43.

[21] In: WERÁ, 2017, p. 43. Grifos meus. Adiante na palestra, Ailton diz que se tratava de um “movimento reflexo” (In: WERÁ, 2017, p. 47).

[22] In: WERÁ, 2017, p. 45.

[23] In: WERÁ, 2017, pp. 45-46.

[24] A mesma expressão volta a ser usada na mesma palestra por mais duas vezes (cf. WERÁ, 2017, pp. 43 e 47).

[25] In: COHN, 2015, p. 152.

[26] In: COHN, 2015, p. 152. Grifo meu.

[27] In: COHN, 2015, p. 151.

[28] In: COHN, 2015, p. 212.

[29] In: WERÁ, 2017, pp. 39-40.

[30] In: COHN, 2015, pp. 230-231.

[31] In: COHN, 2015, p. 153. Grifos meus.

[32] In: COHN, 2015, p. 162.

[33] In: COHN, 2015, p. 163.

[34] In: COHN, 2015, p. 164.

[35] AILTON KRENAK, 2019, p. 11.

[36] In: WERÁ, 2017, pp. 68-69.

[37] Ver AILTON KRENAK, 2019, pp. 12-13.

[38] AILTON KRENAK, 2019, p. 14.

[39] AILTON KRENAK, 2019, pp. 24-25.

[40] AILTON KRENAK, 2109, pp. 30-31.

[41] AILTON KRENAK, 2019, p. 44.

[42] In: WERÁ, 2017, p. 13. Grifo meu., Adiante, Ailton complementa: “se as constituições são assim tão efêmeras nós temos que pensar que tipo de sociedade nós queremos”.

[43] In: COHN, 2015, p. 42. Grifos meus.

[44] In: WERÁ, 2017, pp. 15-16 e 18-19. Na mesma entrevista, Ailton Krenak afirma: “o arranjo agora é global. Tanto que nós temos um documento que se chama Declaração Internacional dos Direitos dos Povos Indígenas. Dos povos originários. Ele vale para o mundo inteiro. Não vale só para o Brasil, ou para a Colômbia, ou para os Estados Unidos. (…) Então eu penso que os povos originários, esses povos indígenas, eles já estão sabendo que o fórum para esse debate não é mais regional. Ele é internacional. Ele diz respeito às agências globais” (In: WERÁ, 2017, p. 17). Na palestra “Ideias para adiar o fim do mundo”, proferida neste ano (2019), Ailton pergunta: “Quando a gente vai entender que os Estados nacionais já se desmancharam, que a velha ideia dessas agências já estava falida na origem?” (AILTON KRENAK, 2019, pp. 13-14).

[45] In: WERÁ, 2017, pp. 48-49.

[46] In: COHN, 2015, p. 231.

[47] In: COHN, 2015, p. 48. Grifos meus. A (sobretudo traumática) experiência a que se convencionou chamar de “contato” exigiria, conforme Ailton explica em depoimento de 1999, “um esforço de cultura, que é um esforço de ampliação e de iluminação de ambientes da nossa cultura comum que ainda ocultam a importância que o outro tem, que ainda ocultam a importância dos antigos moradores daqui, os donos naturais do território. A maneira que essa gente viveu aqui foi deslocada no tempo e também no espaço para ceder lugar a essa ideia de civilização e a essa ideia do Brasil como um projeto” (In: COHN: 2015, p. 164).

[48] In: WERÁ, 2017, p. 20. Em uma entrevista anterior, publicada em dezembro de 2013 na revista Nau, Ailton Krenak traça um paralelo entre seu conceito de “aliança afetiva” e o de “rede”, quando se refere aos aliados internacionais mobilizados pelo movimento indígena nacional: “Isso é rede, cara. E não tinha contrato, não tinha protocolo. Era uma relação de confiança, que eu chamei de alianças afetivas”. In: COHN, 2015, p. 251.

[49] In: WERÁ, 2017, p. 61.

[50] In: WERÁ, 2017, 0. 62.

[51] In: WERÁ, 2017, pp. 23-24. Grifos meus.

[52] In: WERÁ, 2017, p. 127.

[53] In: COHN, 2015, p. 52.

[54] In: COHN, 2015, p. 69.

[55] AILTON KRENAK, 2019, pp. 21-22.

[56] AILTON KRENAK, 2019, p. 70.

[57] In: COHN, 2015, p. 73.

[58] In: COHN, 2015, pp. 75-76.

[59] In: COHN, 2015, p. 82.

[60] In: COHN, 2015, p. 156.

[61] In: COHN, 2015, pp. 164 e 165.

[62] In: COHN, 2015, p. 167.

[63] In: COHN, 2015, pp. 190-191. Grifos meus.

[64] In: COHN, 2015, pp. 192 -193. Grifos meus.

[65] In: WERÁ, 2017, p. 71.

[66] In: WERÁ, 2017, pp. 71-72.

[67] Diz Ailton Krenak: “Nós sabemos da existência dos nossos parentes que vivem na Malásia, nós sabemos da existência dos nossos parentes que vivem nas pequeninas ilhas do Pacífico Sul. Nós nos comunicamos. Ou nos comunicamos através de cartas, ou nos comunicamos através de fala, ou nos comunicamos através do espírito” (In: COHN, 2015, pp. 153-154).

[68] In: COHN, 2015, p. 153. Grifo meu.

[69] In: COHN, 2015, p. 155. Grifos meus.

[70] In: COHN: 2015, pp. 166-167. Em uma entrevista publicada em 2008, relembrando a época em que a região onde nasceu ainda não havia sido plenamente colonizada, Ailton afirma: “como era um lugar onde o Estado não tinha presença, as pessoas tinham muito mais autonomia, eram muito mais inventivas, aprontavam pra caramba” (In: COHN, 2015, p. 178).

[71] In: WERÁ, 2017, p. 33. Grifos meus.

[72] AILTON KRENAK, 2019, p. 69.

[73] In: COHN, 2015, pp. 44-45. Entrevistado no evento por uma jornalista britânica, que o indagou se ele acreditava que os países ricos estariam dispostos a abrir mão de seus níveis de bem estar para proteger as florestas, Ailton assim responde, prenunciando os encontros internacionais em torno da pauta ambiental, inaugurados com a Eco-92: “eu acredito que aqueles países ricos, aqueles seis ou sete países ricos nos próximos anos, vamos dizer daqui a 1992, eles vão fazer uma reunião de cúpula onde eles vão estar encurralados pela urgência… Pela urgência planetária de proteger o mundo, proteger a vida. Eles não vão fazer isso porque eles tiveram uma recaída e viraram pessoas generosas e amantes da natureza. Eles vão fazer isso, simplesmente, porque vai ser posto à disposição deles dados que provam que o nosso planeta está entrando em colapso. E eles não são doidos. (…) Eles querem continuar sendo os países mais ricos do mundo e para continuar sendo (…), precisa ter mundo! (…) Eu vou perguntar para os gerentes, os governadores, os ministros, os vereadores, o governo dos Estados Unidos, Inglaterra, Japão – todos os grandes gerentes… Eu vou perguntar para eles o que eles pretendem fazer com a nossa Terra. Eles estão mexendo com as pessoas, com a Terra, com a vida, como se fossem as empresas deles. Nós não temos nada a ver com a loucura deles. Mas eles não são intocáveis… Vamos entrar nos sonhos deles. Junto com a Terra e o universo, nós vamos apontar a loucura. Nós não podemos ficar quietos… Vamos fazer uma rede de pajelança, de magia, vamos fazer uma confusão no cérebro deles” (In: COHN, 2015, pp. 45 e 47).

[74] In: COHN, 2015, p. 39.

[75] In: COHN, 2015, p. 42.

[76] In: WERÁ, 2017, p. 86.

[77] In: COHN, 2015, p. 49.

[78] In: COHN, 2015, p. 42.

[79] In: COHN, 2015, p. 48.

[80] In: WERÁ, 2017, p. 125.

[81] In: COHN, 2015, p. 156.

[82] In: WERÁ, 2017, p. 126.

[83] AILTON KRENAK, 2019, pp. 16-17.

[84] AILTON KRENAK, 2019, pp. 22-23.

[85] In: WERÁ, 2017, p. 31

[86] In: WERÁ, 2017, p. 31

[87] In: COHN, 2015, p. 40.

[88] In: COHN, 2015, p. 44.

[89] In: WERÁ, 2017, p. 70.

[90] In: WERÁ, 2017, p. 122.

[91] In: COHN, 2015, pp. 152-153.

[92] In: WERÁ, 2017, p. 120.

[93] In: COHN, 2015, pp. 231-232.

[94] AILTON KRENAK, 2019, pp. 49-50.

[95] AILTON KRENAK, 2019, p. 50.

[96] In: COHN, 2015, p. 232.

[97] In: COHN, 2015, p. 233.

[98] In: COHN, 2015, p. 240. Grifos meus.

[99] In: COHN, 2015, p. 256. Grifo meu. Na palestra “Ideias para adiar o fim do mundo”, Ailton Krenak fala da seguinte maneira acerca da serra que fica na margem direita do rio Doce, na aldeia Krenak: “aprendi que aquela serra tem nome, Takukrak, e personalidade. De manhã cedo, de lá do terreiro da aldeia, as pessoas olham para ela e sabem se o dia vai ser bom ou se é melhor ficar quieto. Quando ela está com uma cara do tipo ‘não estou para conversar hoje’, as pessoas ficam atentas. Quando ela amanhece esplêndida, bonita, com nuvens claras sobrevoando sua cabeça, toda enfeitada, o pessoal fala: ‘pode fazer festa, dançar, pescar, pode fazer o que quiser” (AILTON KRENAK, 2019, p. 18).

[100] AILTON KRENAK, 2019, pp. 18-19.

[101] In: COHN, 2015, pp. 256-257. Grifos meus.

[102] AILTON KRENAK, 2019, pp. 19-20. Grifo meu. As referidas corporações seriam geridas pelos “donos da grana do planeta”, que “ganham mais a cada minuto, espalhando shoppings pelo mundo. Espalham quase que o mesmo modelo de progresso que somos incentivados a entender como bem-estar no mundo todo” (AILTON KRENAK, 2019, pp. 20-21).

[103] in: COHN, 2015, p. 257. Grifo meu.

[104] In: COHN, 2015, p. 258. Grifo meu.

[105] In: WERÁ, 2017, p. 74.

[106] In: WERÁ, 2017, p. 64.

[107] In: WERÁ, 2017, p. 77.

[108] In: WERÁ, 2017, p. 65.

[109] In: CONH, 2015, p. 258. Grifos meus.

[110] In: WERÁ, 2017, pp. 51-52. Grifo meu.

[111] AILTON KRENAK, 2017, pp. 3-4. Cf: WERÁ, 2017, p. 87. Grifo meu.

[112] AILTON KRENAK, 2019, p. 40. Grifo meu. Adiante, Ailton lamenta que “o Watu, esse rio que sustentou a nossa vida às margens do rio Doce, entre Minas Gerais e o Espírito Santo, numa extensão de seiscentos quilômetros, está todo coberto por um material tóxico que desceu de uma barragem de contenção de resíduos, o que nos deixou órfãos e acompanhando um rio em coma (…), nos colocando na real condição de um mundo que acabou” (AILTON KRENAK, 2019, pp. 41-42).

[113] In: WERÁ, 2017, p. 63.

[114] In: WERÁ, 2017, p. 81.

[115] In: WERÁ, 2017, p. 75.

[116] In: WERÁ, 2017, p. 81.

[117] In: COHN, 2015, p. 225. Grifos meus.

[118] AILTON KRENAK, 2019, p. 16.

[119] AILTON KRENAK, 2019, p. 22.

[120] AILTON KRENAK, 2019, p. 67.

[121] AILTON KRENAK, 2017. Cf: WERÁ, 2017, p. 83.

[122] In: WERÁ, 2017, p. 93.

[123] AILTON KRENAK, 2019, p. 72. Grifo meu.

[124] In: WERÁ, 2017, p. 32.

[125] AILTON KRENAK, 2019, pp. 46-48.

[126] AILTON KRENAK, 2019, p. 61.

[127] In: WERÁ, 2017, pp. 86.87.

[128] In: WERÁ, 2017, p. 120.

[129] AILTON KRENAK, 2019, p. 58.

[130] AILTON KRENAK, 2019, pp. 58-59.

[131] In: WERÁ, 2017, pp. 102-103.

[132] In: WERÁ, 2017, p. 25. O termo “mundo da mercadoria” é de Davi Kopenawa.

[133] AILTON KRENAK, 2019, pp. 51-52. Grifos meus.

[134] AILTON KRENAK, 2019, p. 52. Grifos meus.

[135] AILTON KRENAK, 2019, pp. 52-53. Grifos meus.

[136] In: COHN, 2015, p. 213.

[137] AILTON KRENAK, 2019, pp. 65-66.

[138] In: WERÁ, 2017, p. 67.

[139] In: WERÁ, 2017, p. 62.

[140] AILTON KRENAK, 2019, pp. 26-27.

[141] AILTON KRENAK, 2019, p. 65.

[142] AILTON KRENAK, 2019, pp. 32-33.

[143] AILTON KRENAK, 2019, p. 68.

[144] In: WERÁ, 2017, p. 130.

[145] In: WERÁ, 2017, p. 131.

[146] In: WERÁ, 2017, p. 132.

[147] AILTON KRENAK, 2019, p. 28.

[148] AILTON KRENAK, 2019, pp. 29-30.

[149] AILTON KRENAK, 2019, p. 28.

[150] AILTON KRENAK, 2019, p. 31.

[151] AILTON KRENAK, 2019, pp. 45-46.

[152] In: WERÁ, 2017, p. 67. Em entrevista de agosto de 2017, Ailton diz: “independentemente de ser da saúde, do urbanismo ou da segurança, ou de qualquer outra área de produção (ou reprodução) do modelo ocidental de ocupar o mundo, esse elogio da técnica que a cultura dos brancos faz é a mesma técnica que sustentou as marcas profundas que chamamos hoje de Antropoceno” (In: WERÁ, 2017, p. 106).

[153] AILTON KRENAK, 2019, pp. 61-62. Grifos meus.

[154] AILTON KRENAK, 2019, p. 30.

[155] AILTON KRENAK, 2019, p. 57.

[156] AILTON KRENAK, 2019, pp. 62-63.

[157] AILTON KRENAK, 2019, p. 65.

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