Gilgámesh e os primórdios da ideologia civilizatória

Uma análise da epopeia de Gilgámesh, uma das histórias mais antigas do mundo, e do que ela tem a nos dizer sobre as origens da civilização. Autor: Mauro Zag.


Um princípio central de ‘Gilgamesh’ é que, quando os humanos se negam a identificar-se diretamente e a ter acesso à natureza animal selvagem, (…) conflitos sociais conturbados e crises ecológicas serão os resultados.

(Patrick Barron[1])

Quando você pensa no Iraque, a primeira coisa que lhe vem à mente são florestas de cedro, tão espessas que a luz do sol nunca alcança o solo? Era assim que o Iraque era antes do início dessa cultura [civilizada]. Um dos primeiros mitos escritos dessa cultura foi Gilgamesh desmatando as colinas e vales do que hoje é o Iraque, para construir grandes cidades”.

(Derrick Jensen[2])

1. Uma pequena contextualização para um mito gigantesco

Ficou conhecido como “Epopeia de Gilgámesh” o poema mesopotâmico – uma das mais antigas narrativas que nos chegou por escrito – cujo título original, em língua acádia, é Sha naqba īmuru, “Ele que o abismo viu[3]. Da forma como o conhecemos hoje, o texto foi estabelecido em doze tabuinhas com inscrições cuneiformes no século VII a.c., quando, sabe-se, foi reunida na cidade de Nínive uma enorme quantidade de documentos em suportes de argila cozida, constituindo-se a famosa “biblioteca de Assurbanípal”. A composição do poema, entretanto, é mais antiga, podendo se situar em até quinhentos anos antes disso. A autoria da “Epopeia de Gilgámesh” é atribuída a um āšipu (ou mašmaššu, “exorcista”), título que se dava ao membro de uma longínqua linhagem de sábios que, na antiga Mesopotâmia, eram especialistas em preceitos e rituais de ordem divinatória, apotropaica e medicinal – conhecimentos que, em conjunto, se chamavam āšiputu. O nome do āšipu em questão é Sin-léqi-unnínni[4]; calcula-se que teria vivido entre os séculos XIII e XII a.c., e que dera o “formato clássico” ao épico por volta de 1300 a.c.[5]. As raízes do texto, contudo, podem atingir estratos ainda mais profundos do tempo: mostram os estudiosos que Sin-léqi-unnínni teria concatenado diversas narrativas heróicas ancestrais, que já circulavam na região há cerca de um milênio, pelo menos desde o século XXII a.c.. Trata-se do ciclo mítico que se desenvolveu em torno das façanhas de Gilgámesh, monarca semideus de Úruk, uma das primeiras cidades da Suméria (e do mundo) – o quinto rei lendário que, por volta do século XXVII a.c., teria governado a cidade-estado após um catastrófico dilúvio[6].

Em datas aproximadas, acredita-se que a escrita tenha começado a se desenvolver entre os sumérios, sem antecedentes conhecidos em qualquer parte do planeta, em torno do século XXXIII a.c., e o mais antigo fragmento textual referente ao ciclo mítico de Gilgámesh é datado já de 2100 a.c. – logo, de cerca de pouco mais de um milênio depois do início da adoção da grafia cuneiforme pelos precursores escribas locais. Encontram-se, ainda, outras versões escritas mais recentes do mesmo ciclo mítico, porém igualmente anteriores àquela que Sin-léqi-unnínni estabeleceu em 1300 a.c.: versões que foram compostas tanto em dialeto acádio antigo, nos séculos XVIII e XVII a.c., quanto em acádio médio, nos séculos XVII e XIII a.c. Por outro lado, há narrativas das aventuras do lendário rei de Úruk cujas composições avançam até o século II a.c. – sendo escritas, portanto, ao longo de mais de dez séculos, ininterruptamente, após a versão de Sin-léqi-unnínni. Pode-se concluir que, na Antiguidade, numa faixa histórico-geográfica que se expande das originárias cidades da Suméria até o império parta, a saga de Gilgámesh, veiculada em pelo menos quatro importantes idiomas – sumério, acádio, hitita e hurrita –, teve uma gigantesca história poética – e ideológica –, que pode somar mais de vinte séculos![7] Considerando a notável longevidade e a consequente importância dessa figura lendária durante os milênios de consolidação e expansão do projeto civilizatório – criado exatamente na região a que, desde James Henry Breasted, chamamos de “Crescente Fértil” –, meu objetivo com o presente texto é, sob uma perspectiva da crítica à civilização[8], e tendo como corpus a recém-publicada versão em português para o milenar épico de Sin-léqi-unnínni[9], analisar a construção do personagem de Gilgámesh por meio do contraponto com seu antípoda-companheiro, Enkídu[10]. Nessa análise, sugiro que o contraste desenvolvido entre esses dois heróis épicos pôde ter funcionado como um dos primeiros esquemas mítico-poéticos para a apologia do que chamo ideologia civilizatória, em seu processo de divulgação/imposição e/ou o estabelecimento/normatização junto aos povos –, para prejuízo do que passou a ser considerado, em oposição, como “selvagem”, “animal” / “animalesco”, ou “natural”. O filósofo e ativista John Zerzan acredita tratar-se de um “mito-chave” (key myth), que nos dá acesso à “fundação de uma consciência cívica que é difundida na literatura dominante da Mesopotâmia”[11]. E como observa o poeta e tradutor Patrick Barron, “o exame de um texto tão importante como ‘Gilgámesh’ (…) é fundamental para desvendar as raízes do dilema, central e problemático, da separação entre a humanidade e a natureza animal e selvagem”[12].

As semelhanças com o colonialismo moderno não são meras coincidências. O renomado arqueólogo Andrew Sherratt dizia que “os esclarecimentos que se ganham ao comparar episódios muito separados no tempo são recíprocos”[13]. Mais recentemente, Paul Kriwaczek, jornalista e estudioso das civilizações médio-orientais, foi mais específico: “um dos componentes mágicos da história da antiga Mesopotâmia é que ela lança luz sobre a origem de inúmeras coisas que caracterizam nosso mundo”[14]. John Zerzan vai ainda mais direto ao ponto: “com a civilização, como as coisas são é como as coisas sempre foram[15]. Porque – sim, sabemos; da pior maneira, sabemos – a História costuma, mesmo, se repetir[16].

2. Um pequeno panorama sobre a grande Mesopotâmia

Comparável à da paixão de Jesus Cristo, que já conta com quase vinte e um séculos de trajetória em parte de onde outrora se estendeu o império romano, a longevidade da saga de Gilgámesh não nos causaria tanta surpresa se levássemos em conta a antiguidade e a perenidade histórica da própria região onde ela surgiu e se desenvolveu: aquela a que se convencionou chamar, desde os antigos gregos, de “Mesopotâmia”, “entre rios” (no caso, o Eufrates e o Tigre). Para visualizarmos quão arcaica e contínua é essa história, proponho um exercício. Consideremos, primeiro, o marco inaugural – o aparecimento da escrita – tradicionalmente estabelecido para o escopo do campo investigativo voltado para o estudo do passado – a História. (Esqueçamos, por ora, que a ideologia que quer confundir história com “uso da escrita” nega o estatuto de históricos para os – no  mínimo – 190 mil anos de experiência do homo sapiens no planeta. Engulamos a seco a baliza etnocêntrica da história tornada História, a partir da qual se impõem os indigestos conceitos de “povos pré-históricos”, aqueles cujo estudo foi deixado à arqueologia, e de “povos sem história”, os “outros humanos”investigados pela antropologia, quase sempre como se estivessem tão “fora do tempo” quanto aqueles que já desapareceram. Façamos vista grossa para o espelho que a civilização projeta para si, querendo confundir com seu curto itinerário as longas, longuíssimas rotas, cujas travessias nos tornaram, e ainda nos tornam, humanos – não custa reiterar: nossos quase, ou talvez mais de duzentos mil anos de história como humanidade.) Se assim convencionamos, a “História da Humanidade” – que, na verdade, é sinônimo da história da escrita e da civilização – soma, quando muito, pouco mais de cinco mil anos de (sobre)vida. E foi durante mais da metade desse período – eis o ponto aonde quero chegar – que brilhou a Mesopotâmia, berço da grafia cuneiforme, o primeiro sistema de escrita do mundo, desenvolvido em cerca de 3400 a.c.[17]. Considerando como marco final dessa trajetória sua tomada pelo império aquemênida em 539 a.c., quando a região perde sua independência político-cultural, a Mesopotâmia, como a entendemos, tem uma história mais longa do que aquela que separa o Ocidente contemporâneo de figuras semilendárias como Homero ou Hesíodo.

         De onde vem a perenidade que nos permite reconhecer na Mesopotâmia uma história de quase três milênios? Mantenho a comparação com os chamados “Gregos Antigos”, a quem o Ocidente tanto gosta de recorrer como “ancestrais”. Como lemos sua História? Tradicionalmente, costuma-se reconhecer uma “pré-história helênica” a partir das invasões indoeuropeias que deram origem às monarquias micênicas, em meados do segundo milênio antes da era cristã. Com o desenvolvimento de seu complicado sistema de escrita, denominado Linear B, os micênicos dariam início a uma História, embora ainda “proto-Grega”, pois é interrompida, de forma abrupta, com as invasões dos chamados dórios, seus “primos rudes” vindos do norte, durante o século XII a.C.. Após a “interrupção” advinda com uma ágrafa “idade média grega”, inaugurada com o declínio das cidades palacianas de Micenas e marcada por uma “ruralização” da economia e da política, temos, a partir do século VIII a.c., o ressurgimento da História, agora de fato “Helênica”, com a criação do alfabeto a partir do silabário fenício, e o surgimento e consolidação de uma nova organização política: a cidade-estado, a pólis. Cobrindo um período que, com auge na considerada “Era Clássica” (de 500 a 338 a.C.), vai dos poemas homéricos à anexação do território grego pelos romanos, a História da “Antiga Grécia” termina, para muitos, em 146 a.c., embora a existência de uma importante “literatura grega” produzida sob o domínio de Roma possa estender sua cronologia até o tradicional marco final de toda a “História Antiga”, isto é, a “queda do império romano no Ocidente”, em 476 d.c.. De qualquer forma, trata-se de um esquema historiográfico que, em seus primeiros termos, mal disfarça uma similaridade estrutural se comparado àquele que se aplica para toda a “História do Ocidente”[18].

O que me interessa, porém, para além do esquematismo dessa cronologia da “Grécia Antiga”, é que nela se subscreve uma ideia de continuidade histórica baseada na “filiação” a uma “ancestralidade comum” – presumindo-se o pertencimento a uma “família linguística” que teria, a partir do “tronco indoeuropeu”, dado “origem” aos diversos “dialetos” do “Grego Antigo”. Em outras palavras, a “História dos Antigos Gregos” tem continuidade enquanto é possível reconhecer um mesmo universo étnico-linguístico, e uma mesma “visão de mundo” – dita “helênica” –, ao longo do tempo e apesar das diversidades e adversidades. E esse reconhecimento se dá, principalmente, por meio de similaridades indicadoras de um “idioma comum”, encontradas em registros linguísticos que cobrem um feixe que se alonga desde o uso do silabário micênico, entre os séculos XV e XII a.c., até a literatura “pós-clássica” ou “Helenística”, produzida ainda no conturbado século II a.c.. Tomando os “Antigos Gregos” como contraponto, gostaria de refletir acerca de outra característica específica da História proposta para as antigas civilizações da Mesopotâmia – um traço que apenas aparentemente não se conjugaria com a longevidade e a continuidade cultural nela observados. É que, desde seus fundamentos, na região se encontraram não apenas “primos” de uma “única família”, mas populações as mais diversas, pertencentes a diferentes “troncos étnico-linguísticos” – semíticos, dravídicos, indoeuropeus, entre outros.

Dessa forma, para se traçar uma cronologia para a Antiga Mesopotâmia, faz-se necessário dividir sua história de acordo com as civilizações que a dominaram em determinados períodos, e levando em conta os inúmeros outros povos que, de modo raramente pacífico, travaram contato com elas. Eis um breve panorama[19]:

I) Com o surgimento da idade do bronze na região, estabelece-se o inaugural Período de Úruk entre os anos 3300 e 2900 a.c.. Tem início o domínio dos sumérios, os inventores da escrita cuneiforme, do sistema de numeração e das primeiras cidades, bem como do paradigma social, político, religioso, artístico e cultural que será imposto, aos poucos, em toda a Mesopotâmia. Ocorre aquilo que o recém-falecido antropólogo Robert McCormick Adams chamou de “urbanismo hiperdesenvolvido” (hyper-developed urbanism)[20]; Úruk, em seu auge (cerca de 2900 a.c.), chegou a abrigar entre cinco e seis mil moradores – concentrando a maior parte da população de todo o sul mesopotâmico[21] –, e a se estender por uma área de até 6 km². Com isso, ocupa o posto de maior cidade de sua época[22]. Sublinhe-se que, até hoje, não foi encontrada uma classificação para a língua suméria, que permanece isolada dos demais troncos linguísticos conhecidos.

II) Em seguida, tem-se o Período Protodinástico, cobrindo cerca de meio milênio, entre 2900 a.c. e 2400 a.c.. É quando se observam a adoção e a expansão da cultura letrada e civilizada dos sumérios entre os acádios e outros povos de origem semita. O legado escrito sumério-acadiano acabará por se impor ao longo da História, mas será por meio da “assimilação” de diversas culturas, principalmente de falantes de idiomas e dialetos semíticos afro-asiáticos. Nesse período, o poder, ainda que com alguma centralização na cidade de Níppur, alternou-se entre várias dinastias sumérias.

III) Entre 2340 e 2160 a.c., centralizado na cidade de Acádia, constitui-se aquele que, fundado por Sargão, pode ser o primeiro império da história, reunindo falantes do sumério e do acádio sob um único governo. Trata-se do Período Acádio, quando se verifica, após uma fase de bilinguismo, que a língua acádia, gradualmente, suplanta o idioma sumério. Os escribas acádios, no entanto, ainda que com inovações, permanecem fiéis ao núcleo ideológico e cultural basilar da civilização cristalizada em Úruk. É nessa época que são conquistados os elamitas, de origem possivelmente dravídica, e são contatados os enigmáticos nômades montanheses conhecidos como gutis.

IV) Convenciona-se um pequeno ínterim de sessenta anos, bastante tumultuado, chamado Período Gutiano (2160 – 2100 a.c.), para delimitar o efêmero domínio da região pelos gutis, “os bárbaros vindos das montanhas”. Trata-se de um povo de origem desconhecida que, até então, habitava os montes Zagros, e que pôs fim ao império acádio. Uma antiga listagem de monarcas afirma que, com a invasão dos gutis, “a realeza foi levada para as hostes de Gutium, que não tinha rei”[23]. A tradição escrita não tardou em animalizá-los; num poema conhecido como “Maldição da Acádia”, são descritos como “um povo desenfreado, dotado de inteligência humana, mas com instintos de cão e aparência de macaco”[24].

V) Durante os cem anos entre 2100 e 2000 a.c., estabelece-se o Período Neossumério, quando surgem os primeiros textos do ciclo mítico de Gilgámesh, numa espécie de “renascimento” da antiga cultura suméria. Teve como centro político-cultural a cidade de Ur, governada por sua terceira dinastia.

VI) O Período Babilônico Antigo ou Amorita, que cobre os séculos entre 2000 e 1700 a.c., instaura-se após a invasão de Ur pelos amoritas de idioma semítico, e da destruição da cidade pelos elamitas. A região mesopotâmia se divide em duas unidades, uma ao norte, sob governo dos “antigos babilônios” (outro nome para os amoritas), outra ao sul, sob domínio dos elamitas. Cabe mencionar que, por volta de 1800 a.c., foi redigido, na porção norte, o famoso “Código de Hamurabi”, uma estratégia legal criada para simular um tratamento equânime dirigido aos oprimidos, evitando guerras e rebeliões – e “prefigurando a retórica política moderna e os males que ela tenta ocultar ou, de alguma forma, legitimar”, nas palavras de John Zerzan[25].

VII) Durante meio milênio, entre 1600 e 1100 a.c., estabelece-se o Período Babilônico ou Assírio Médio, quando os cassitas, de idioma isolado, tomam a Babilônia em 1594 a.c., cidade que, mais tarde, em 1234 a.c., será invadida pelos assírios, de língua semítica. Esses, porém, terão o poder tomado pelos elamitas no início da idade do ferro na região, em 1156 a.c. A Babilônia será novamente destruída pelos assírios em 1087 a.c., mas somente após a morte de Nabucodonosor (1127 – 1105 a.c.), considerado o mais poderoso rei babilônico, e libertador do povo caldeu, também de origem semita. É durante esse período, por volta de 1300 a.c., que o āšipu Sin-léqi-unnínni compõe, em idioma acádio, o poema conhecido como “Epopeia de Gilgámesh”.

VIII) Por fim, temos o Período Neobabilônico ou Neoassírio entre 1000 e 500 a.c., que compreende os últimos séculos de história independente da Mesopotâmia – dado que, a partir de 538 a.c., seu território é anexado ao império persa aquemênida, de língua indoeuropeia[26]. É o período em que se tornam famosos os reis assírios Senaqueribe (704 – 681 a.c.), Assurbanípal (669 -627 a.c.) – o criador da “biblioteca de Nínive” –, Nabopolassar (655 -605 a.c.), Nebuquadnezar II e Nebuquadnezar III – este conhecido como aquele que, em 539 a.c., destruiu a cidade de Jerusalém.

Caberia acrescentar a essa “Torre de Babel”, também, os falantes de línguas hurrito-urartianas, hititas indoeuropeus, judeus e arameus semitas, etc.. “Ecumênico” (ecumenical) era um adjetivo dado pelo historiador William H. McNeill ao sistema surgido nas diversamente povoadas terras do Crescente Fértil[27].

Não há, constata-se, uma unidade étnico-linguística na antiga Mesopotâmia como há (ou como se quer que haja) na antiga Grécia. Como explica o pensador e escritor Daniel Quinn, a “fronteira que se expandia para todos os lados partindo do Crescente Fértil não era uma fronteira nacional – era cultural”[28]. Não é sobre uma “ancestralidade comum”, ou mesmo sobre uma concepção de “povo” ou “nação”, que repousa a durabilidade perene de sua História. (Interessante é que, até hoje, os povos nativos insistem que os civilizados desconhecem a noção de ancestralidade.) Como conclui Paul Kriwaczek,

a civilização que nasceu, floresceu e morreu na terra entre os rios não foi uma conquista de nenhum povo particular, mas o resultado da união e da permanência, ao longo do tempo, de uma combinação singular de ideias, estilos, crenças e comportamentos. A história da Mesopotâmia é a de uma tradição cultural contínua e singular, ainda que seus portadores e propagadores humanos tenham sido diferentes, em épocas diferentes[29].

A esta “combinação singular de ideias, estilos, crenças e comportamentos”, que caracteriza a “tradição contínua e singular” dos povos mesopotâmicos, chamo, aqui, de ideologia civilizatória – que é, antes de tudo, um projeto de poder, não precisando estar vinculada a nenhuma tradição idiomática e cultural em específico. Continua Kriwaczek:

a antiga Mesopotâmia funcionou como uma espécie de laboratório experimental da civilização, testando, amiúde até destruí-las, muitas formas de religião, desde as personificações primitivas de forças naturais até o sacerdócio completo nos templos, e mesmo os primeiros movimentos do monoteísmo; uma ampla variedade de sistemas econômicos e de produção, desde (sua própria versão de) planejamento estatal e direção centralizada até (seu próprio estilo de) privatização neoliberal; e ainda um sortimento de sistemas de governo, desde a democracia primitiva e a monarquia consultiva até a tirania implacável e expansionista. Quase cada um desses aspectos pode encontrar paralelos em traços similares observados em nossa história mais recente. Às vezes, é como se toda a história antiga tivesse servido de exercício simulado, de ensaio geral para a civilização que veio depois (…)[30].

Apesar de todo esse caráter experimental, é necessário frisar que a Mesopotâmia, como demonstra o mesmo estudioso, “conservou uma única civilização, usando do princípio ao fim um sistema singular de escrita, o cuneiforme, e tendo uma única tradição literária, artística, iconográfica, matemática, científica e religiosa, em contínua evolução”[31]. As “experimentações” mesopotâmicas, podemos deduzir, funcionavam até que se cristalizassem maneiras mais eficazes para implementação e continuidade da ideologia civilizatória, sem nunca chegar a pôr ela própria em xeque. Para se manter incontestável, esse arcabouço ideológico se “naturalizou”, impondo-se como a “melhor” e “mais elevada” maneira de viver, a única que permitiria a plena realização das pessoas como “seres humanos”. Veremos, nas próximas linhas, o quão arcaica é a confusão (deliberada) que se faz entre “humano” e “civilizado”, e quão enfática é essa identificação em uma das mais antigas mitologias de que temos registro escrito. Pois, diante das resistências que encontrou, a civilização procurou neutralizá-las, buscando justificativas na religião institucional que, unha-e-carne, a acompanhava; justificativas tanto para os árduos trabalhos do controle da natureza e da construção civil, quanto para o autoritarismo, a opressão e a hierarquização social, fenômenos intrínsecos ao processo de urbanização – Daniel Quinn afirma que civilização “significa hierarquia, requer hierarquia”[32]. O resultado de tamanho empreendimento pode ser resumido com essas palavras de Paul Kriwaczek, com as quais finalizo esta seção:

No curso de seus [mais de] dois milênios e meio, a tradição baseada na escrita cuneiforme inventou ou descobriu quase tudo que associamos à vida civilizada. Partindo de um mundo de aldeias neolíticas, de comunidades de agricultura de subsistência predominantemente autossuficientes e independentes, e terminando num mundo não só de cidades, de impérios e tecnologia e direito e sabedoria literária, porém ainda mais: com o que se chamou um sistema mundial, uma rede interligada de nações, comunicando-se e comercializando e lutando umas com as outras[33], essa tradição se espalhou por grande parte do globo. Foi essa a conquista dos escritores da escrita cuneiforme.

(…) Chamou-se a isso Revolução Urbana, embora a invenção de cidades tenha sido, na verdade, sua parte menos importante. Com a cidade vieram o Estado centralizado, a hierarquia das classes sociais, a divisão do trabalho, a religião organizada, a construção de monumentos, a engenharia civil, a escrita, (…)[34].

3. Uma pequena argumentação com dois personagens grandiosos, parte 1: A sabedoria civilizada de Gilgámesh e a selvageria de Enkídu

Inscrições datadas dos séculos XXVI e XXV a.c. atestam que o lendário rei Gilgámesh já era considerado, nessa remota época, uma divindade a quem eram feitas oferendas, e a quem os monarcas de Ur chamavam de “irmão” e tratavam como um “deus pessoal”. Desde esse mesmo período, o herói também era invocado como rei ou, ao menos, juiz do “mundo subterrâneo” – Érsetu, “a morada dos mortos” –, função a que esteve associado até o primeiro milênio a.c.[35]. Celebrado nos versos de Sin-léqi-unnínni por reconstruir Úruk[36], tendo inclusive erguido suas famosas muralhas[37], Gilgámesh é retratado, na epopeia, como “alto” (na verdade, gigantesco[38]); “perfeito”, terrível”[39]; “formoso”[40]; “poderoso, magnífico, sapiente”[41]; e inigualável[42]. Filho do semilendário rei sumério Lugalbanda com a deusa Nínsun – relacionada à pecuária e, portanto, referida no poema como “sublime vaca”[43] –, Gilgámesh é “dois terços deus, um terço humano”[44]. E é “sábio em tudo”[45], pois “tudo aprendeu”, conheceu “de todo o saber (nēmeqi)”[46]. A palavra acádia “nēmeqi”, de acordo com o professor Jacyntho Lins Brandão, significa “sabedoria”, “sagacidade”, “habilidade”, mas também – destaque-se –, “conhecimento civilizado[47]. Arrisco a propor, aqui, um paralelo entre o “nēmeqi”acadiano e o vocábulo sumério “”, que denominava uma estância cujo responsável era a grande divindade Ea (ou Enki), “o deus que trazia civilização à humanidade”, e que “dava aos soberanos inteligência e conhecimento”[48]. De acordo com o assiriologista Samuel Noah Kramer, “” remetia ao “sortimento fundamental, inalterável e abrangente de poderes e deveres, normas e padrões, regras e regulamentos ligados à vida civilizada” – os “decretos divinos que são a base dos padrões culturais da civilização suméria”[49]. Sobre o mesmo conceito, assim fala Paul Kriwaczek:

Em termos mais sucintos, poderíamos defini-lo como o conjunto de princípios básicos da civilização: ele mostra que os antigos mesopotâmios estavam tão encabuladamente cônscios da diferença entre a civilização e todas as outras maneiras de viver e da superioridade dela –, que a expressavam com um conceito cognitivo inteiramente novo, para o qual não temos equivalente em nossa maneira de pensar. (…) O abrangia aptidões e qualidades humanas, como sabedoria, discernimento, poder de decisão, força e animosidade. Delineava emoções fortes, como o medo, a discórdia, o cansaço e a inquietação. E havia artes e ofícios, como os do escriba, do músico, do forjador de metais, do ferreiro, do curtumeiro, do construtor e do cesteiro, bem como numerosas funções sacerdotais diferentes, variedades de eunucos e instrumentos musicais[50].

Uma forma literalmente concreta de mostrar (e propagandear) o “conhecimento civilizado”, a que se remetem os vocábulos “” e “nēmeqi”, se dava por meio da elevação de suntuosas obras arquitetônicas, que funcionavam como marcos civilizatórios – e de poder. Logo no verso 10 da primeira tabuinha, imediatamente antes de creditar a Gilgámesh a construção das muralhas de Úruk e do Templo de Eanna[51], Sin-léki-unnínni descreve o rei erigindo uma estela (narû), como era costume entre os monarcas da época, para a divulgação de seus feitos para o público[52]. Da mesma maneira que o rei-herói “viu” (īmuru) o “abismo” (naqba), somos convidados pelo poema, como se estivéssemos, de fato, diante da estela e das construções, a “ver”, “reparar” e “tocar” a “base”, os “parapeitos” e a “escadaria” da “residência de Ishtar” (isto é, o santuário de Eanna), e também o “fundamento” e os “tijolos” crus dos “alicerces” das muralhas[53]. Como define Jacyntho Lins Brandão, “a glória de Gilgámesh é a glória de Úruk e vice-versa”[54]. Mais adiante no poema, outros feitos civilizatórios do monarca são louvados, como a abertura de estradas nas montanhas, o cavamento de poços, as viagens marítimas, a reinstalação de templos e a instituição de ritos[55]. É importante enfatizar quanto a esse último item: em Uruk, como explica Kriwaczek, “a mesma abordagem experimental aplicada ao mundo material também foi orientada para arquitetar o modo como os habitantes da cidade deveriam conviver. A cidade era como uma máquina, e seus cidadãos, como peças móveis que a faziam funcionar”[56]. Instituir ritos revela-se como uma eficiente arquitetura de homogeneização, controle e maquinização da diversidade e complexidade que caracterizam os fenômenos sociais. É fazer valer o “”, interferindo no comportamento, nas emoções e nas atividades cotidianas dos cidadãos.

De toda forma, não obstante sua glória civilizadora e sua “sabedoria total”, Gilgámesh, no poema, é alvo de um ardil tramado pelos deuses. Conta-nos Sin-léqi-unnínni que o deus celestial Ánu teria ouvido as súplicas dos súditos de Úruk, revoltados com os excessos levados a cabo pelo rei herói[57] – que, com um físico incansável, vencia todos os jogos e batalhas, e arrogava para si o direito de passar a primeira noite após o casamento com as noivas, antes dos respectivos maridos (prática que os medievalistas chamam de ius primae noctis, “direito da primeira noite”)[58]. Nas palavras de Jerrold Cooper, especialista em línguas semíticas, “a defloração de uma noiva virgem torna-se uma afirmação do autêntico domínio patriarcal, que faz com que a virgindade seja, antes de tudo, valorizada” – e Gilgámesh, com sua atitude, queria deixar evidente para o povo que

a autoridade do rei, no ápice da estrutura de poder masculina e patriarcal, pode impor-se à autoridade patriarcal de qualquer outro homem, em termos de hierarquia (…); o droit de seigneur de Gilgámesh tem pouco a ver com os prazeres de deflorar virgens e muito mais com assegurar que seus maridos saibam quem é o maior patriarca de todos [59].

De volta ao ardil divino: sob orientação de Ánu, a deusa-mãe Arúru, responsável pela criação da raça humana, forja, a partir do barro, um companheiro para distrair Gilgámesh, esculpindo um homem[60] que se colocaria à altura do herói quanto à força física. Será por meio de uma luta espetacular que se confirmará a igualdade entre eles, a partir da qual será selada a almejada amizade[61]. Por outro lado, trata-se de uma criatura que personifica, como explica Jacyntho Lins Brandão, o “homem primitivo, que vive desnudo junto dos animais, com eles comendo relva e bebendo água na cacimba”[62]. Seu nome é Enkídu, palavra que, em língua suméria, denota “senhor do lugar agradável”[63]. É o “homem primevo”[64], “primitivo”[65], “mancebo feroz do meio da estepe”[66]; “seu berço são os montes”[67]. Ele é chamado de “filho do silêncio” (ilitti qulti)[68] – sem linguagem?, sem pensamento?[69] –, não conhecendo “gente nem pátria”[70], portando “pelos sem corte por todo o corpo”, e andando nu, “pelado em pelo”[71]. Retrata o poema:

Com as gazelas ele come grama

Com o rebanho na cacimba se aperta,

Com os animais a água lhe alegra o coração”[72].

         Como pontua o professor Gregory Mobley, “a tradição do homem selvagem (…) tem em Enkídu, o selvagem estranho à cultura urbana, seu protótipo”[73]. No personagem, acrescenta Jacyntho Lins Brandão, encontram-se “os sete traços próprios da figura literária do ‘homem selvagem’”, a saber:

  1. “o ser monstruoso que tem relações com a cultura urbana e nela interfere” – é o que veremos na sabotagem que Enkídu fará para desarticular as armadilhas de um caçador;
  2. “o bárbaro rural”– é um “mancebo das estepes”, cujo “berço” são “as montanhas”;
  3. “o remanescente da humanidade primeva” – é o “homem primevo”, lullâ amēla, ou lullû, com sentido de “protótipo”, de “inacabado”[74];
  4. “o domador de monstros” – veremos que ele vencerá batalhas contra seres fantásticos, ao lado de Gilgámesh;
  5. “o xamã” – ele interpretará, à maneira de um āšipu, os sonhos que Gilgámesh tem, mostrando-se conhecedor das artes da oniromancia;
  6. “o duplo” – ele está ombro a ombro com Gilgámesh, com quem atua como antípoda e, ao mesmo tempo, companheiro;
  7. “o deuteragonista” – afinal, ele é “coadjuvante selvagem” em relação ao civilizado Gilgámesh[75].

Brandão adiciona, ainda, o retrato animalesco de Enkídu, pintado, no lugar agreste onde habita, perambulando com e como os bichos, desnudo e com o corpo peludo, aparentando grande vigor físico[76] – retrato que chega a sugerir, conforme observou Mobley, a possibilidade de que esse “homem primevo” (lullâ amēla / lullû) se locomovesse como um quadrúpede, “a julgar por sua habilidade em acompanhar os animais de quatro patas da estepe”[77]. Nunca é demais destacar que a animalização do não civilizado acompanha a tradição literária da urbanidade desde seus primórdios. No início da oitava tabuinha, assim Gilgámesh se refere a Enkídu:

Enkídu, tu cuja mãe foi uma gazela,

E um asno selvagem teu pai —- a ti,

A quem os onagros com seu leite criaram-te – a ti,

E o rebanho da estepe ensinou toda a pastagem[78]

Ao avistar, num açude, um caçador, um “homem de armadilhas”[79], descreve Sin-léqi-unnínni que Enkídu se comporta como um animal de presa: fica “aterrorizado, em silêncio, atento”, e se esconde junto com seus companheiros, os bichos[80]. O caçador, ao vê-lo, fica igualmente assustado[81], não apenas porque se dá conta da “rija força”[82] de Enkídu, mas também porque constata que o selvagem havia desfeito as armadilhas dispostas para capturar os animais[83] – e, nesse ponto, é no mínimo interessante que a animalidade a ele atribuída não o tenha incapacitado para a operação de desarmá-las. Em seu famoso livro Ecocrítica, o professor Greg Garrard destaca que, à semelhança dos “mais antigos documentos da civilização eurasiana ocidental”, a “Epopeia de Gilgámesh” retrata “o mundo natural como uma ameaça”[84]. Aconselhado pelo pai, o caçador procura Gilgámesh – eis a matemática da hierarquia patriarcal da cidade: o jovem < o pai < o rei. O monarca, então, mobiliza uma “prostituta sagrada” (šamhatu), de nome um tanto metonímico e paradigmático, Shámhat (Šamhat, variante de šamhatu), para que seduza Enkídu com seu sexo e o atraia para a cidade[85]. Será no espaço urbano, e seguindo as orientações que receberá da meretriz exemplar, que ele aprenderá a “comer pão e beber cerveja, marcas da vida civilizada”, como explica Brandão[86]. Observaremos, a partir daqui, o que Patrick Barron chama de “manipulação e destruição do elemento selvagem”[87].

Mas, antes disso, vale enfatizar que a passagem de Enkídu do “estado de natureza” para o “mundo humano” se dá pelas vias do sexo. Segundo John A. Bailey, essa concepção é um “reflexo do alto valor atribuído à sexualidade na Mesopotâmia, onde uma religião da fertilidade afirmava que a terra e a sexualidade eram esferas de poder dos deuses”[88]. Paul Kriwaczek declara que “os antigos mesopotâmios acreditavam (…) que o sexo e a vida urbana caminhavam juntos”[89]; e John Zerzan sugere que os monumentos urbanos – bem como os rituais de sacrifício animal e humano que se celebravam em muitos deles – dão suporte à hipótese de que, com o advento da domesticação das plantas e dos animais, da agricultura e da divisão de classes profissionais – e cabe acrescentar: da cisão em categorias com base no gênero[90] –, o ser humano perde “o senso de pertencimento a uma comunidade terrestre de seres vivos”[91]. O prognóstico da iniciação sexual do selvagem é dado, no poema, pelo “sábio” rei Gilgámesh, que diz ao caçador: “estranhá-lo-á seu rebanho, ao que cresceu com ele”[92] – como se, a partir da visão do ato venéreo, os animais viessem a desconhecer Enkídu como um igual e o abandonassem. E é o que, de fato, se passa:

Sete dias e sete noites Enkídu esteve ereto e inseminou Shámhat.

Depois de farto de seus encantos,

Sua face voltou para seu rebanho.

Viram-no, a Enkídu, e se puseram a correr,

Os bichos da estepe fugiram de sua figura:

Contaminara Enkídu a pureza de seu corpo.

Inertes tinha os joelhos, enquanto os bichos avançavam.

Diminuído estava Enkídu, não como antes corria.

Mas agora tinha ele entendimento, amplidão de saber.

Voltou a sentar-se aos pés da meretriz[93].

Temos aqui, certamente, uma variante de um complexo mítico muito comum no Oriente Médio e na Eurásia – presente, aliás, na tradição judaico-cristã: a experiência sexual como meio tanto de diminuição de um “vigor animal”, quanto de perda de uma “pureza natural”[94]. É uma queda, uma tomada de consciência de um conhecimento abismal, o que marca a passagem para o estado de “amplidão do saber” – em uma palavra, uma vida definida como “humana”, a única realmente “humana” de acordo com a ideologia civilizatória.

Como analogia para a aquisição do conhecimento civilizatório ilustrada no poema, insisto na imagem da queda[95] não em razão de sua similaridade com o conhecido dogma bíblico, mas com base linguístico-filológica, tomando como apoio o próprio idioma acádio. Jacyntho Lins Brandão explica que, na frase Sha naqba īmuru, “Ele que o abismo viu”– que aparece no verso inicial do épico de Sin-léqi-unnínni e, logo, acabou lhe servindo de título – , a palavra naqba / naqbu, traduzida como “abismo”, tem, na verdade, dois significados: reporta-se ao “abismo subterrâneo de águas que alimenta as fontes”, mas também a “uma totalidade[96]. O professor Raymond C. Van Leeuwen lembra que o vocábulo “refere-se não só ao abismo das águas que Gilgámesh sonda, mas também à sabedoria que ele adquire por meio de sua investigação”[97]. “Ele que tudo viu”– ele que viu em profundidade – é o mesmo que dizer “Ele que o abismo viu”. Adquirir aquele “conhecimento civilizado” ( ou nēmeqi), do qual já falei, parece ser o mesmo que obter uma visão de “totalidade” (naqbu) que, na verdade, é “abismo” (naqbu), é queda. Não será porque se trata de vislumbrar uma totalidade cindida? Afinal, que outra “totalidade” as lentes da civilização permitem enxergar?

Diz o tradutor Joaquín San Martín: “Enkídu [depois do coito] já não é um lullû, ‘quase-homem, semi-homem’, projeto inacabado de humanidade, mas um homem feito e acabado, tanto física quanto mentalmente”[98]. Quando era selvagem, “quase animal”, era um “protótipo da humanidade”, o “homem primevo” (lullû). Há um dado antropológico na cópula de Enkídu – mas se trata de um dado que nos remete, também, a uma política de dominação, ou pelo menos a uma estratégia de suspeita em relação às dinâmicas e potências do corpo, da sexualidade, da mulher e, enfim, do que se isolou como “natureza”, por mais “sagradas” que pudessem ser consideradas à época. Quanto a isso, transcrevo abaixo, em tradução livre, um trecho do ensaio anônimo publicado na segunda edição do baedan – a queer journal of heresy[99], intitulado “Against the gendered nightmare: fragments on domestication” (literalmente, “Contra o pesadelo de gênero: fragmentos sobre a domesticação”):

A história de Enkídu e Shámhat é uma história de domesticação trazida do cerne da mitologia da primeira civilização. Ela mostra a domesticação de Enkídu por meio da imposição de papéis sexuais, do uso de roupas, do consumo de álcool e de sua separação dos animais selvagens. Shámhat é uma prostituta sagrada dos templos sumérios, uma praticante espiritual da profissão mais antiga. Ela serve à deusa Ishtar no ritual de hieròs gamós, o casamento sagrado entre o rei e a deusa da cidade. Ishtar é a deusa da natureza, sim, mas da natureza dentro da cidade. Hieròs gamós, a prostituição sagrada, é uma submissão ritualística da natureza ao poder do rei; é trazer a natureza para dentro dos muros da cidade. Dessa forma, a deusa da natureza também era a deusa das artes da civilização. Essas artes incluíam práticas de governo e religião, guerra e paz, artesanato, profissão, alimentação, bebida, roupas, adornos corporais, arte, música, sexo e prostituição. Sua arte é aplicável a todos os aspectos da vida civilizada. A deusa governa a natureza dentro da cidade, então sua ars vivendi são as regras da civilização, da domesticação. E foi assim, por intermédio dessas regras, que Shámhat, sacerdotisa de Ishtar, transformou Enkídu em homem. Depois que é arrancado de seu mundo, Enkídu se torna um destruidor viril e sanguinário da natureza. A imposição de gênero desencadeia um continuum de separação que aparta infinitamente a cidade da floresta, a humanidade do resto da vida selvagem, e divide os seres humanos em gêneros[100].

A relação sexual descrita no poema acádio, com sua duração fantástica, pode ter um quê do controle típico de uma performance ritual. Sabe-se da carga simbólica, no próprio poema, em torno do período de “sete dias e sete noites”: trata-se da mesma duração dos ritos fúnebres celebrados após a morte de Enkídu[101]. Além disso, o sexo é direcionado unicamente para o prazer masculino, pois encontra seu fim quando Enkídu, já um “Homem”, se dá por satisfeito, “farto” dos “encantos” da prostituta – que ali estava, aliás, a mando do rei. Talvez estejamos diante de versos que nos evidenciam uma cosmovisão (ou melhor: uma cosmopolítica) basilar para o empreendimento patriarcal e urbano: apenas com o sexo contido sob os parâmetros do rito e da divisão de gêneros é possibilitado a Enkídu o ingresso no mundo “humano”, isto é, “dos Homens”. É importantíssimo destacar que, logo no início do poema, antes do encontro sedutor com Shámhat, ele é descrito como tendo “cabelos arrumados como de mulher”[102]. Sugere-se, dessa forma, uma mítica de androginia que, cosmogônica, figura um estado de totalidade que nada tem a ver com aquela totalidade cindida do olhar civilizado, pois é anterior à queda e à chamada “divisão dos sexos”. Trata-se do que Mircea Eliade, em um artigo bem conhecido, denominou “androginia primordial”, estado que traduziria a união entre aquilo que, com o abismo do conhecimento a que nos empurra o binarismo civilizatório, se dividirá como “pares contrários” ou, quando muito, “complementares”. (Mítica que também pode ser encontrada, por exemplo, no tratamento bíblico dado ao primeiro Adão, aquele que vagava sozinho pelo Éden, ainda carregando em seu corpo a costela “feminina” da qual viria a ser criada Eva[103].) A fim de que se cumpra o objetivo para o qual Enkídu foi concebido pelos deuses – ser um companheiro efetivo e igual em relação à Gilgámesh, para que o rei herói tenha alguém à sua estatura para canalizar sua insaciável energia[104] –, ele precisa ser o contrário do “andrógino” e daquele furtivo animal de caça: ele deve se tornar “viril”, um qurādum, um “guerreiro” (“qurādum” deriva do verbo “qarādu”, “ser belicoso”), e é esse o epíteto que receberá já no verso que anuncia sua criação[105].

Mas, além disso, Enkídu deve ser civilizado, e apenas o primeiro passo nessa direção já foi dado por meio do rito sexual. O próximo será o cumprimento das instruções dadas por Shámhat – é importante reiterar: uma mulher reduzida, nesse ponto, a mera representante do rei-patriarca. Como denuncia o já citado texto anônimo do periódico baeta, em tradução livre:

É claro que as leituras contemporâneas ilustram um certo grau de misoginia em torno de Shámhat, o que implica que as mulheres teriam domado os homens selvagens. Mas isso é incorreto e apenas revela o quão profundamente dominada pelo gênero está a civilização. Enkídu é domesticado por todos os ars vivendi que definem a vida na primeira civilização; pelo trabalho das mulheres e pelo trabalho dos homens. Enkídu é feito homem através dessas leis domésticas; ele é civilizado pelo próprio gênero[106].

As instruções de Shámhat talvez não apontem somente para a importância da oralidade e da escuta para a aquisição do conhecimento civilizado nas sociedades mesopotâmicas – basta sublinhar, quanto a isso, que as palavras acádias hasīsu e uznu, ambas utilizadas no poema de Sin-léqi-unnínni[107],significam tanto “orelha” e “escuta”, quanto “entendimento” e “sabedoria”[108]. As orientações dadas pela šamhatu também podem revelar a estratégia a ser empregada para a completa assimilação civilizatória de Enkídu. Para Shámhat, antes de tudo é preciso levá-lo “ao coração de Úruk”, e pode ser sintomático que o epíteto dado à cidade nesse trecho seja “redil”, isto é, “curral” (supuri)[109]. É necessário encerrá-lo dentro dos muros da cidade-estado, retirá-lo do campo aberto das estepes; a tática parece se aproximar daquelas empregadas tanto para o aprisionamento de animais, quanto para o “aldeamento” de pessoas indígenas. Como resume Kamran Nayeri,

Arqueólogos consideram cidades muradas como Úruk como estruturas defensivas em face da guerra, embora não haja evidências quanto a quem poderia ter estado do outro lado do conflito. Mais recentemente, estudiosos veem tais muros como algo mais para manter a população atada (bonded) às primeiras cidades-estados, do que para repelir invasores ‘bárbaros’[110].

“Por que vagas com os animais pela estepe?”, a prostituta sagrada indaga Enkídu[111]; em seguida o veste[112]. Leva-o, então, para conhecer “a cabana dos pastores, o cercado dos animais”[113]. É quando, diante dos produtos das atividades rurais, Enkídu se dá conta de que ainda não sabe comer o pão e beber a cerveja que lhe foram servidos:

Pão puseram diante dele,

Cerveja puseram diante dele.

Não comeu pão Enkídu, fixou os olhos e tão logo o viu:

Comer pão não aprendera,

Beber cerveja não sabia[114].

Dessa maneira, parece ser negado ao não civilizado o entendimento acerca do preparo e do manejo de comida. Pois Enkídu, animalesco e efeminado, desconhece os alimentos fermentados e cozidos a partir dos grãos – o trigo e a cevada – cultivados na agricultura patriarcal que se desenvolve no Crescente Fértil. Ele não conhece o que abastece a cidade dos Homens.

4. Uma pequena argumentação com dois personagens grandiosos, parte 2: A fama de Gilgámesh e a morte de Enkídu

Adiante no poema, já habitando o meio urbano, Enkídu torna-se “amigo” (ibru) de Gilgámesh – e o rei, a partir do verso 186 da segunda tabuinha, passa a tratá-lo como “ibrī”, “meu amigo”, forma com a qual também será tratado[115]. Quem sabe se trata de uma solução poética para marcar que, agora com e como o rei, ele se encontra civilizado? Jacyntho Lins Brandão ressalta que o reforço dado à dinâmica horizontal do relacionamento entre os heróis vai de encontro ao que se observa na tradição suméria – em cujos textos se observa um tratamento marcadamente hierárquico, entre “monarca” (lugal) e “servo” (ìr ou šubur) –, e parece coroar uma tendência que vinha se insinuando desde as versões babilônicas do mesmo ciclo mítico – nas quais, além de “amigo” (ibru), encontram-se termos como “companheiro” (tappu), “irmão” (ahur) e “igual” (kima)[116]. De toda maneira não se trata de Pasárgada, e ser amigo do rei não garante que Enkídu seja feliz e se adapte ao ambiente civilizado de Úruk. Talvez ele sofra daquilo que Patrick Barron diagnosticou como “períodos diversos de depressão, aqui causados ​​pela perda permanente de sua identificação com a natureza animal”[117]. O poema de Sin-léqi-unnínni diz:

[Enkídu] meditou e sentado chorou

Os olhos encheu de lágrimas,

Os braços afrouxou, a força —-[118]

Indagado por Gilgámesh quanto ao porquê das lágrimas, Enkídu responde:

Amigo meu, meu coração pena —-

Pelas lágrimas me enfraquecem

Cresce o medo em meu coração[119].

Samuel Noah Kramer conjectura que “a vida alegre e sensual [de Enkídu em Úruk] vai fazendo dele um fraco”, e que talvez seja esse o motivo que, aliado à manifesta tristeza, faz com que Gilgámesh proponha ao companheiro aquela que será a primeira façanha da dupla narrada na epopeia de Sin-léqi-unnínni: a batalha travada contra Humbaba, o monstruoso “guardiãoda Floresta de Cedros”[120]. A oposição insinuada aqui se dá entre Úruk, a cidade, que entristece e enfraquece Enkídu, e a Floresta de Cedros, o ambiente natural, que lhe é conhecido – como parece revelar sua resposta para o plano do rei, mostrando familiaridade quanto aos perigos que enfrentarão no encontro com Humbaba[121]:

Como iríamos, amigo meu, à Floresta de Cedros?

A fim de deixar intactos os cedros,

Para terror do povo o fez Énlil [isto é, o deus Énlil criou Humbaba].

Nessa estrada não há quem caminhe,

Este homem não há quem olhe!

O guardião da Floresta de Cedros —- muito grande,

Humbaba, sua voz é o dilúvio!

Sua fala é fogo, seu alento é morte!

Ele ouve a sessenta léguas um murmúrio na floresta.

(…)

Para terror do povo o fez Énlil:

Se vai alguém à sua floresta, fraqueza a ele assalta[122].

Gilgámesh se aborrece com as precauções do amigo, e o acusa de fraqueza:

Por que, amigo meu, como um fraco falaste?

Com essa boca sem freio zangaste o meu coração![123]

E, para ratificar sua ousada proposta, declama a famosa máxima sobre a impermanência e a brevidade da vida:

Do homem os dias são contados,

Tudo que ele faça é vento[124].

Ambos os heróis acabam, então, se encaminhando para forja, a fim de produzir as armas para a expedição[125]. A justificativa do rei, portanto, se revela eficaz –  e se encaixa numa visão de mundo tipicamente patriarcal e heróico-aristocrática, bem similar àquele ideário que, com a célebre leitura que o helenista Jean-Pierre Vernant fez da Ilíada homérica, se convencionou chamar de “bela morte” (kalòs thánatos):

Para aqueles que a Ilíada chama anéres (ándres), os homens na plenitude da sua natureza viril, ao mesmo tempo machos e corajosos, existe um modo de morrer em combate, na flor da idade, que confere ao guerreiro defunto, como o faria uma iniciação, aquele conjunto de qualidades, prestígios, valores, pelos quais, durante toda a sua vida, a nata dos áristoi, dos melhores, entra em competição. Esta ‘bela morte’, kalòs thanatos, para lhe dar o nome com que a designam as orações fúnebres atenienses, faz aparecer, à maneira de um revelador, na pessoa do caído na batalha, a eminente qualidade de anèr agathós, homem devotado. Para quem pagou com sua vida a recusa da desonra no combate, da vergonhosa covardia, ela assegura um renome indefectível. A bela morte também é a morte gloriosa, euklèes thanatós. Ela eleva o guerreiro desaparecido ao estado de glória por toda a duração dos tempos vindouros; e o fulgor dessa celebridade, kléos, que adere doravante a seu nome e à sua pessoa, representa o termo último da honra, seu extremo ápice, a areté realizada. Graças à bela morte, a excelência, areté, deixa de ter que se medir sem-fim com outrem, de ter que se pôr à prova pelo confronto. Ela se realiza de vez e para sempre no feito que põe fim à vida do herói[126].

Como num presságio, as vicissitudes da passagem do tempo denunciadas na máxima do “sábio” Gilgámesh acabarão se confirmando como implacáveis, e glória da “bela morte” será, enfim, alcançada por ambos os heróis, cujos dias de vida estão contados. Antes disso, no entanto, voltemos para a Floresta de Cedros, e sigamos as tabuinhas 3, 4 e 5 do poema de Sin-léqi-unnínni – trata-se de uma passagem que julgo bastante relevante para a crítica à civilização. “É difícil diferenciar”, por exemplo, “a atitude de Gilgamesh em relação à natureza daquela dos caçadores modernos, em particular os caçadores de troféus”, como lamenta Kamran Nayeri em artigo recente, intitulado “Culture and nature in the Epic of Gilgamesh[127] (em tradução livre: “Cultura e natureza na Epopeia de Gilgámesh”).

         Importante destacar que a divindade que criou Humbaba, “para terror do povo” e “a fim de deixar intactos os cedros”, foi Énlil – o deus que, na cosmologia tripartida dos sumérios, em conjunto com Ánu e Ea (ou Enki), é responsável pela totalidadedo universo. Ánu é a potestade do céu e das “águas do alto”, aquelas que, por vezes, despencam e causam as chuvas e os dilúvios; ao passo que Ea é responsável pelas águas dos abismos subterrâneos – e também por ter trazido os saberes civilizatórios para os seres humanos. Cabe a Énlil, por fim, a porção intermediária entre as águas dos céus e dos abismos: a terra firme, rodeada pelos mares[128]. Chamado, no poema, de “māliku[129], palavra que pode ser traduzida tanto como “conselheiro” quanto como “príncipe”, Énlil, explica Brandão, “é o protótipo do príncipe (maliku / malku), no sentido de que toma decisões baseadas em informações judiciosas e corretas”. “Na tradição babilônica”, continua o professor, “o rei é um māliku-amēlu, um ‘homem-conselheiro’”, relacionando-se, assim, “a habilidade em dar conselhos acertados” com “a capacidade de exercer o poder”[130].

No entanto, a busca por correção e estabilidade num mundo cindido em três associa Énlil, mais do que à aristocracia que se colocava como “celestial”, também aos ventos e aos ciclos de fenômenos meteorológicos e climáticos – e, consequentemente, ao campo do controle da demografia humana, sendo ele o responsável pelas catástrofes infligidas aos homens, como a fome e a morte advinda com as pragas, as secas e as cheias[131]. Greg Garrard lembra que se originou na Suméria “a ligação entre o desmatamento, a erosão e a perda de fertilidade [do solo]”[132]; e Jacyntho Lins Brandão define que “a esfera de atuação de Énlil sendo a terra, lhe cabe em especial sua proteção, incluindo as florestas”[133]. Nesse sentido, é bastante significativo que seja esse o deus criador de Humbaba, o “guardião” (massārum) dos cedros, para fazer frente à atividade predatória das civilizações precursoras, demonstrando que “até os próprios deuses sentiram a necessidade de proteger a natureza contra humanos civilizados, criando seres sobrenaturais”, para citar as palavras de Kamran Nayeri[134]. O filósofo e ambientalista Max Oelschlaeger observa que a existência de um “guardião” (massārum) para o espaço natural reflete “a incansável invasão suméria nas florestas antigas e o triunfo da civilização sobre o deserto”[135].

É ainda mais significativo que, na tradição épica, seja exatamente Humbaba o alvo da primeira batalha empreendida pelos heróis. Como apontou o ecocrítico Robert Pogue Harrison, “o primeiro antagonista de Gilgámesh é a floresta”[136]. Daniel Fleming e Sara Milstein lembram que a natureza, personificada em seu guardião, acaba por ser alvo não somente do rei, pois “Enkídu e Gilgámesh contribuem igualmente para a derrota de Huwawa [Humbaba], um representando o poder da estepe, o outro, a ambição da cidade”[137]. Como ressalta Nayeri, “Enkídu, que nasceu selvagem, se torna ainda mais hostil à natureza agreste depois que é domado por Shámhat”[138]. Quanto ao vocábulo “Humbaba”, trata-se da versão acádia para o nome sumério “Huwawa”, que designava um ser “híbrido”, com cabeça de leão e corpo humano, figurando, certamente, uma concepção não civilizada e não antropomórfica acerca da natureza – uma visão de mundo “paleolítica” que, em geral, desconhece uma separação nítida entre “Homem” e “Animal”. Kamran Nayeri supõe que, à diferença das religiosidades ancestrais, “a tendência de associar, progressivamente, potências e fenômenos naturais a deuses humanizados represente um desenvolvimento gradual do antropocentrismo”. Indício disso, segundo autor, estaria no fato de que, “no épico, cada pessoa pode ter seu próprio deus particular, para orientação e apoio”[139].

A face de Humbaba costumava ser posta nos portais dos templos com função propiciatória, sugerindo que, à semelhança do mito de Perseu e da Medusa, sua morte, por decepamento da cabeça, fosse comemorada como símbolo de confiança no poder da civilização sobre o natural – tornado terrível e “sobrenatural” –, sobre o “híbrido” e não civilizado. Merece destaque, em relação a isso, que Huwawa/Humbaba talvez fosse filiado a Humban, chefe do panteão elamita, uma divindade bem arcaica, pré-suméria – e, logo, também anterior à civilização[140]. A despeito do que se supõe com o poema de Sin-léqi-unnínni, do qual se depreende que a viagem partia para o oeste, J. Hansman,  em artigo já clássico, conjectura, a partir da leitura do antigo épico sumério conhecido como Bilgames e Huwawa, que a “Floresta de Cedros” onde habitaria o “monstro” se localizava a leste de Úruk, nos montes Zagros, exatamente no território elamita (atualmente, no sul do Irã), região que, desde muito cedo, sofreu com a devastação de suas coníferas, os juníperos (erin em sumério)[141]. Vale mencionar, ainda, que nas versões mais antigas do mito, o intento principal de Gilgámesh com sua viagem é cortar os cedros da floresta, e os ruídos advindos com a devastação é que despertam a ira de Humbaba[142].

         Enkídu, cujo “berço são os montes”[143] (os Zagros?[144]), é conhecedor das dinâmicas da natureza e do “feroz”[145] Humbaba[146], e “o caminho ele sabe da Floresta de Cedros”[147]. Seguindo o poema de Sin-léqi-unnínni, o “ex-selvagem” volta a fazer sua recomendação contra a proposta do rei, desta vez diante dos “jovens de Úruk”, reunidos por Gilgámesh em assembleia[148]. Ao seu receio, contrapõe-se a ousadia do monarca[149], que mantém o desejo de realizar a jornada mesmo ante as precauções dos anciãos da cidade – que acabam por designar como guarda-costas do rei exatamente Enkidu[150]:

[Dirigindo-se a Gilgámesh:] Aos cais de Úruk chegues são e salvo!

Não confies, Gilgámesh, em toda tua força!

(…)

Quem vai à frente ao companheiro salva,

Quem o caminho conhece a seu amigo protege:

Que vá Enkídu a tua frente,

O caminho ele sabe da Floresta de Cedros,

Em combates treinado, em refregas experto,

Que Enkídu ao amigo envolva, ao companheiro conserve,

Para as esposas o teu corpo de volta traga:

[Dirigindo-se a Enkídu:] Nesta assembleia confiamos-te o rei,

Fá-lo retornar e confia-nos o rei![151]

Também a deusa bovina Nínsun, mãe de Gilgámesh, após pedir proteção ao deus-sol Shámash, “profere o comando”[152] seguinte a Enkídu:

Forte Enkídu, não saíste de minha vagina!

Agora tua raça estará com os oblatos de Gilgámesh,

As sacerdotisas, as consagradas e as hierodulas.

(…)

Eu própria, a Enkídu, que amo, adotei como filho,

A Enkídu, como irmão, Gilgámesh favoreça[153].

O palavra acádia traduzida como “oblatos” é šerku, que, como anota Jacyntho Lins Brandão, “parece referir-se a uma relação social que Nínsun deseja estabelecer entre sua família e Enkídu, ultrapassando a mera amizade”[154]. O título confere a ambos, Gilgámesh e Enkídu, o dever de proteger um ao outro. Veremos que será altíssimo o preço pago pelo selvagem por ter recebido esse “comando”.

         A tabuinha de número quatro consiste na narrativa da jornada dos heróis, e é nela que se encontram as famosas interpretações positivas que Enkídu tece para os terríveis sonhos premonitórios que assolam Gilgámesh, durante a indução ritual que este empreende para a obtenção de revelações. De acordo com as interpretações do “xamã selvagem” Enkídu, a queda de um monte seria a previsão de destruição de Humbaba[155], e terremotos, raios, eclipses, incêndios e o próprio fim do mundo indicariam, ao contrário, algo “propício” e “bom”[156]. Como elucida Jacyntho Lins Brandão, “é apenas com sua intuição que Enkídu parece explicar o significado do que Gilgámesh viu, o que condiz com certa prática antiga”[157] – pois “deve-se ter em conta que as culturas mesopotâmicas consideravam os sonhos um meio bastante eficaz de manifestação de presságios, tendo desenvolvido uma rica tradição de procedimentos hermenêuticos para a sua interpretação”[158]. Para o passo do poema de Sin-léqi-unnínni – vale lembrar: um especialista no āšiputu, que incluía práticas de oniromancia, mas também um poeta épico –, o estudioso acrescenta que

os sonhos constituem recursos bastante eficazes para introduzir heterotopias numa narrativa que se interessa especialmente pela apresentação e exploração da alteridade em termos espaciais. No presente caso, quando os dois heróis se dirigem a uma autêntica heterotopia – a Floresta de Cedros – o recurso dos sonhos termina tendo como função reforçar a alteridade de todo o entrecho[159].

         De fato, com a quinta tabuinha, na qual afinal é narrada a batalha contra Humbaba, saímos daquilo que o antropólogo Keith Dickson chama de “espaço epistêmico” da cidade[160] para adentrar a heterotopia do “lugar selvagem” – e é primorosa a descrição que dele nos dá Sin-léqi-unnínni, mesmo com as lacunas da fonte original:

Ali estavam e olhavam a Floresta

De Cedros, observaram-lhe a altura,

Da floresta observaram-lhe a entrada:

Onde Humbaba caminhava ficara-lhe a pegada,

A senda arrumada e acolhedor o caminho.

Viram a montanha de cedros,

Morada dos deuses, trono das deusas:

Na face da montanha os cedros mostravam abundância,

Doce sua sombra, plena de deleite,

Enredada de espinhos, a acobertada floresta.

—- cedro, ballúkku[161]: entrada não havia,

—- brotos por uma légua – a floresta,

—- cipreste por dois terços de légua,

De até um sexto de peso a crosta fixa nos cedros.

Resina ressuda como chuva que chove

E vai, levam-na canais.

Por toda floresta passarinho a pipilar,

—- a responder, uma voz a chilrear,

Solitária cigarra clamor inicia,

—- canta —- sibila,

Pombo arrulha, rola responde,

—- tartaruga, rejubila a floresta,

—- galinha, rejubila a floresta luxuriante,

Macaca canta, filhotes de macaco guincham,

Como um grupo de músicos e tambores:

Dia a dia ressoam em face de Humbaba[162].

Estamos em meio a uma floresta “luxuriante”, harmônica em sua sinfonia de vozes, aparentemente impenetrável para os Homens. A descrição dada por Sin-léqi-unnínni, apesar dos tons sombrios que prenunciam a chegada de Humbaba, antecipa alguns traços daquilo que, séculos mais tarde, os líricos romanos convencionarão chamar de “locus amoenus”, o “lugar agradável” em que se passam os poemas idílicos e bucólicos. Nesse cenário, será Gilgámesh quem sentirá medo e fraqueza, da mesma maneira que sentiu Enkídu quando estava, ao invés, no ambiente urbano de Úruk:

Lança sua sombra o cedro,

O medo cai sobre Gilgámesh:

Um torpor toma seus braços

E a debilidade cai-lhe sobre os joelhos[163].

Como certa vez indagou o crítico e escritor Charles Henry Caffin: “se a nossa única ideia de vida é um contínuo roçar de ombros e inteligência com os nossos amigos da mesma espécie, como podemos encontrar companhia no vazio solitário da natureza?”[164]. Restará ao civilizado Gilgámesh, “broto do coração de Úruk”[165], incapaz de sentir acolhido na presença dos seres da floresta, invocar a proteção do deus Shámash para, assim, vencer o temor que nele desperta a heterotopia ou espaço epistêmico do selvagem[166]. Contra a sombra misteriosa dos cedros, clama-se à claridade de visão trazida pelo deus-sol.

Ainda que (talvez) já civilizado, Enkídu mantém certa familiaridade com o ambiente agreste, a ponto de Humbaba, ao avistar os heróis, sentir-se traído pelo “ex-selvagem”, a quem diz ter visto, e não atacado, quando jovem:

quando eras jovem te vi, mas perto não cheguei.

(…)

Por que à traição Gilgámesh trouxeste diante de mim

E tu mesmo como hostil inimigo te pões?[167]

Ao ouvir as ameaças de morte por degolação proferidas por Humbaba, Gilgámesh fica ainda mais temeroso. Será Enkídu quem lhe dirá, então, as mesmas ofensas que o monarca lhe dissera, quando tinha demonstrado receio quanto à iminente batalha na floresta:

Por que, amigo meu, como um fraco falaste?

Com essa boca sem freio zangaste o meu coração![168]

Alternam-se os cenários, invertem-se os comportamentos dos personagens. Na Floresta de Cedros, falta ao urbano Gilgámesh, nessa passagem do poema, o ímpeto do “guerreiro” (qurādum) que, na cidade, o monarca quis incutir no inadaptado Enkídu. E apenas com a interferência divina de Shámash, seu protetor, que as armas de Gilgámesh atingirão Humbaba[169]. Capturado, prestes a ser morto, é a Enkídu, seu próximo, que roga o guardião da floresta:

Conhecidas são as regras da minha floresta, as regras —-

E sabes tudo o que é para dizer.

(…) agora, Enkídu, contigo está minha liberação:

Pois fala a Gilgámesh que me restitua a vida![170]

Enquanto Gilgámesh porta, em profundidade, o “conhecimento civilizado”, “” ou “nēmeqi”, Enkídu “sabe tudo o que é para dizer” sobre as “regras da floresta”.

         Apesar da familiaridade com Humbaba e com o que ele guarda, Enkídu, temendo uma vingança do deus Énlil, incita que Gilgámesh mate logo o guardião[171]. Este, chorando, lhes joga uma maldição, que antecipa a “bela morte” reservada, no futuro, para ambos os heróis:

Que não fiquem velhos ambos,

A não ser seu amigo Gilgámesh, não tenha Enkídu outro para enterrá-lo![172]

Como comenta o tradutor Andrew R. George,

a maldição se torna literalmente verdadeira para Enkídu, já que ele morrerá logo, na flor da idade, mas também, num certo sentido, para Gilgámesh, uma vez que está fadado a fracassar em sua busca pela imortalidade e a perder a oportunidade do rejuvenescimento periódico[173].

Gilgámesh, por fim, golpeia Humbaba no pescoço com uma espada[174]. Consumada a decapitação – que, segundo Robert Pogue Harrison, pode simbolizar o corte das próprias árvores[175] –, Enkídu, no entanto, volta a se preocupar com as consequências do ato, talvez numa premonição do que acontecerá em breve com ele mesmo:

Amigo meu, a terra nua reduzimos a floresta,

Como em Níppur[176] responderemos a Énlil?

Com vosso poder, o guardião mataste!

Que fúria era vossa? Arrasastes a floresta![177]

Como conclui Patrick Barron,

O assassinato de Humbaba claramente representa um ataque de Enkídu à sua própria espécie; em resumo, ele foi coagido a atacar o centro de seu próprio ser profundo, animal e selvagem. É aqui que a separação de Enkídu da natureza dos animais selvagens começou a valer e produzir feridas terríveis e autoinfligidas. Não é de admirar que Enkidu sofra paralisia corporal e angústia mental; ele involuntariamente – ou como resultado de loucura e/ou amor por Gilgamesh – atacou o núcleo de sua própria essência[178].

E a autodestruição de Enkídu continua nas tabuinhas 6 e 7. Após a morte de Humbaba, a fama de Gilgámesh desperta os desejos da deusa Ishtar[179], que atua nos campos tanto do sexo, quanto da guerra, e que, como vimos, pode representar a natureza em sua porção domesticada. Ciente dos tristes destinos reservados para os amantes da deusa, Gilgámesh nega veementemente o pedido de casamento proposto por ela[180], que, então, como vingança, reivindica junto a seu pai, o deus Ánu, que lhe ceda o “Touro do Céu” (a constelação de Touro), para que destrua a cidade de Úruk[181]. Gilgámesh e Enkídu, porém, se saem vitoriosos na luta contra o Touro[182] – note-se, outra entidade não antropomórfica –, o que acaba por aumentar a fama do rei[183], e também a ira da deusa contra ele[184]. Enkídu, por oniromancia, toma consciência de que, após terem se reunido, as divindades decidem que, por terem abatido Humbaba e o Touro do Céu, um dos dois heróis deve ser morto[185]. Como interpreta Barron, “em seus ataques predatórios contra Humbaba e o Touro do Céu, Enkidu chegou à beira da autoaniquilação”[186] – e a escolha dos deuses acabará por incidir sobre ele, o protetor do rei, como designado pelos anciãos de Úruk e pela deusa Nínsun. Tomado por uma doença, ele amaldiçoa os causadores de sua ruína, identificando-os bem no início do seu processo de civilização: seus esconjuros se dirigem exatamente ao caçador, o primeiro Homem que o avistara nas estepes[187], e a Shámhat, a armadilha enviada pelo rei, aquela que o seduziu, iniciando-lhe nos ritos do sexo patriarcal, e o levou para o seio da cidade[188].

As maldições proferidas por Enkídu são ouvidas pelo deus-sol Shámash, que fica revoltado diante do que considera uma ingratidão para com a šamhatu – afinal, ela tinha oferecido àquele ser animalesco os maiores “prazeres” da vida civilizada: “manjar digno de um deus”, “cerveja digna de um rei”, “roupas grandiosas” e, enfim, a amizade de um “belo” monarca[189]. A divindade, então, sela o destino de Enkídu, pressagiando seu glorioso funeral, típico de um herói, índice da já abordada ideologia da “bela morte”: como observa Jacyntho Lins Brandão, “caso nada do que aconteceu tivesse acontecido, jamais teria ele uma morte pranteada com todos os ritos próprios da civilização e estaria condenado a uma morte desassinalada, como a dos animais”[190]. O plenamente civilizado Enkídu, continua Brandão, “no leito de morte, (…) faz o duro aprendizado de que a morte é o fado do homem, mas um fado que os homens, com os rituais de luto, logram tornar nobre”[191]. O herói, consciente da iminência do seu fim, não se vê mais em oposição apenas aos animais, mas também aos deuses, que são imortais. Talvez seja somente ao término “glorioso” de sua breve existência que Enkídu se torne um Homem, em sua acepção “completa”, contrária à de “protótipo” (lullû). Adquirindo, enfim, aquela sabedoria abismal expressa na máxima de Gilgámesh sobre a brevidade da vida, o herói é tomado pelos parâmetros da “bela morte” que, sob o sol da civilização, o “elevam” para bem longe das sombras dos cedros. Cabe acrescentar que as previsões de Shámash se encerram mencionando o luto de Gilgámesh, que, sem a companhia do amigo, “vestirá pele de leão e vagará pela estepe”[192]. Talvez, aqui, o herói esteja em busca da “selvageria” que Enkídu, de alguma maneira, ainda conservava quando vivo; algo que, para o rei, servia como um ponto de contato com aquela heterotopia ou espaço epistêmico contrário ao da cidade, seu único domínio – vale lembrar que é Enkídu quem tranquiliza o monarca quando de seu “temor” em meio à floresta de Humbaba. Vagando pela estepe, Gilgámesh quer reencontrar aquilo que Enkídu não conseguira perder completamente na cópula ritual com Shámhat, nem com o aprendizado das maneiras civilizadas durante sua difícil estada em Úruk. Uma potência que o selvagem só começou a aniquilar, de fato, durante os assassinatos sangrentos que cometeu junto ao amigo – os mesmos que viriam a consagrá-lo como o exemplo máximo de uma sociedade patriarcal e aristocrática, “heroica”, expansionista e movida à domesticação dos outros, dos quase humanos.

Tendo ouvido as previsões feitas por Shámash, Enkídu tenta reverter sua sina, buscando neutralizar as maldições que fez contra Shámhat, e tece elogios ao conhecimento civilizado que adquiriu junto a ela[193]. Trata-se, talvez, da mais ideológica das passagens do épico. Patrick Barron verifica que, nessa apologia, o selvagem é “duplamente insultado” (doubly insulted): “não apenas é negada a ele a possibilidade de morrer reprovando inteiramente sua domesticação – o que, na clareza de suas agonias, ele apenas começa a fazer –, mas ele é obrigado a louvar a ‘dádiva’ (‘gift’) dessa domesticação”[194]. Será apenas com seu “sonho de mau agouro” que Enkídu obterá a confirmação última do seu trágico fim, tendo sido infrutífero, logo, o seu vil elogio à civilização. Assim pode ser resumido o que Enkídu conta do estranho sonho:

  • após um estrondo, surge entre o céu e a terra – a morada do mediador deus Énlil – um “moço de rosto sombrio como o de Anzu”, a ave de rapina divina, o pássaro-tempestade, com cabeça e patas de leão, e garras de águia[195];
  • a criatura agarra Enkídu pelos cabelos e, com a força de um “touro selvagem”, o faz tombar, pisoteando-o[196];
  • a criatura transforma Enkídu em um pombo, ata suas asas, e o leva até a “casa das sombras”, “a casa onde quem entra não sai”; trata-se de Érsetu, a morada dos mortos[197];
  • Enkídu é recepcionado por Bélet-séri, a “escriba de Érsetu”, que se encontrava sentado, a ler uma tabuinha, aos pés de Eréshkigal, a “rainha de Érsetu”, esta acompanhada por Shakkan, o “senhor dos rebanhos selvagens” (bēl būli), normalmente representado nu como os animais[198].

É uma pena que, a partir desse ponto, a tabuinha apresente lacunas que impossibilitam a leitura do diálogo entre Enkídu e as divindades, o que deveria constituir o ápice de sua viagem onírica (“xamânica”) ao mundo subterrâneo[199]. Mas creio que os versos que temos, que resumi nos quatro tópicos acima, já revelam bastante coisa. Érsetu, para onde o herói se vê levado, era localizada nas profundezas, próxima às águas subterrâneas, de onde outrora emergiram Ea (ou Enki) e os saberes civilizatórios ( ou nēmeqi); mas quem carrega Enkídu até a morada dos mortos é uma criatura surgida “entre o céu e a terra”, na área de atuação de Énlil, o deus responsável pelo equilíbrio da vida – o “conselheiro/príncipe” (māliku), genitor do “guardião” (massārum) decapitado na Floresta de Cedros. Acrescente-se que se trata de um “monstro” compósito homem-animal como Humbaba, e com uma força equivalente à do Touro do Céu. Enkídu, o “traidor”, será morto por força daqueles de quem se afastou – aqueles que, como outrora ele próprio, habitavam as fronteiras da civilização, e foram vistos como “selvagens”, “animais/animalescos”, “monstruosos”, “híbridos”, “quase” (lullû) ou “não humanos”. E o comando de sua morte, como uma vingança, parte dos domínios da divindade a quem, na visão cindida da civilização, cabia a governança com vistas à manutenção de alguma possibilidade de harmonia entre o que foi posto em desconcerto.

Há, ainda, no sonho profético de Enkídu, a presença de Shakkan, deus que, embora possa ser visto como um dos aspectos de Nérgal, o rei de Érsetu, é também relacionado aos animais e à vida selvagem: reitero que se trata do bēl būli, “o senhor dos rebanhos selvagens”, e lembro que, em suas representações, conserva a nudez característica daquele “estágio” de “pureza animal” de um lullû[200] , sobre o qual já tratei. Quanto ao porquê de Sin-léqi-unnínni ter se referido ao marido de Eréshkigal não como Nérgal, mas como Shakkan, sua epifania animalesca, Jacyntho Lins Brandão diz que se trata de uma “mensagem cifrada”: como a divindade preside os rebanhos conhecidos por Enkídu, “sua presença na Érsetu remete para a morte próxima do herói”[201]. Particularmente, vejo nessa menção a Shakkan uma representação divina do elemento selvagem que Enkídu ainda não aniquilou em si mesmo por completo, afinal, estando a sonhar, o selvagem ainda não morreu em vigília – e ainda não alcançou o fim da estrada da “bela morte” que, ao cabo, o alçará como herói. A potência que Gilgámesh, em vão, procurará nas estepes é a mesma que acompanha Enkídu de perto, até mesmo em sua viagem onírica ao mundo dos mortos. Adicione-se que o nome da escriba que recepciona o moribundo, “Bélet-séri”, se traduz literalmente como “senhora da estepe”[202].

O poema prossegue. A perda de seu companheiro desperta em Gilgámesh o desejo de encontrar a imortalidade, e o mobiliza em busca de Uta-napíshti[203], herói que, sob orientação de Ea, teria construído uma arca que o permitiu sobreviver ao dilúvio, obtendo, como recompensa dos deuses, a capacidade de nunca falecer, tanto para si mesmo quanto para sua esposa, que o acompanhou na embarcação. Ao longo de sua procura pelo sábio antediluviano, que o leva além de onde nasce o sol, isto é, além das fronteiras do mundo conhecido, Gilgámesh vive diversas aventuras e se depara com vários seres fantásticos, até que, afinal, encontra Uta-napíshti[204], de quem ouve uma ressalva quanto ao contexto extraordinário em que o dom da imortalidade lhe foi concedido, e que tal cessão não deve se repetir[205]. É graças à intercessão da esposa de Uta-napíshti a seu favor[206] que Gilgámesh obterá a informação quanto à localização da planta da juventude, que fica no fundo das águas[207]. O herói consegue colhê-la, porém é roubado por uma serpente[208] – animal cuja característica de trocar de pele era considerada índice de imortalidade pelos antigos povos do Crescente Fértil[209]. As gestas de Gilgámesh se desfecham com seu choro ante ao fracasso de sua missão[210] e, como analisa Brandão,

com a descrição de Úruk e suas muralhas[211], sugerindo-se que aquilo que o herói traz consigo na volta não é algo material, mas sim a certeza de que a vida humana, ainda que breve, tem seu lugar no espaço de convivência com outros homens, configurado pela cidade[212].

Pois, como já citado, “a glória de Gilgámesh é a glória de Úruk e vice-versa”[213].

5. Uma pequena mas pretensiosa conclusão

O assiriólogo Louis L. Orlin assinalou que o grande estímulo para o surgimento das primeiras cidades mesopotâmicas foi a “urbanização forçada de tribos rebeldes”[214], e sabemos, por meio da nossa própria história nacional, o quão sangrenta costuma ser a transição para um modelo de sociedade definida como civilizada para quem parte de uma vida baseada nas atividades de subsistência – seja a de caça e coleta, seja a de jardinagem, horticultura e pastoreio, seja as diversas combinações entre elas. Civilizar implica não permitir a saída em busca de meios para se adaptar ao que é oferecido pela natureza – ao invés, requer a fixação em um único lugar, e necessita, para isso, da formulação constante de estratégias para a manipulação (desastrosa) do escopo ambiental, do qual se mantém. O objetivo é a produção de excedentes, tão necessária para a manutenção do poder das classes dirigentes[215]. Sabe-se que o renomado arqueólogo britânico Graeme Barker, especialista nos usos do espaço e da paisagem, salientou as profundas diferenças que se impõem, quanto à concepção de lugar, entre os praticantes do forrageamento e os adeptos da manipulação ambiental, pressuposta nas práticas agrícolas intensivas. Diz Barker:

a maioria dos forrageadores concebe as relações entre os seres humanos e seu mundo de maneiras muito diferentes do nosso modelo cartesiano. Geralmente, o ambiente é considerado como um lar espiritual benigno (…), [e] as relações com ele são modeladas no mesmo princípio de compartilhamento que se aplica à comunidade humana (…). Muitos forrageadores não fazem distinção entre os seus bens e os atributos do mundo ao seu redor, utilizando metáforas de cruzamento, paternidade e parentesco para descrever suas relações com o meio ambiente. As terras necessárias para se viver não são apropriadas por cercas e fronteiras à maneira dos agricultores, mas pelo movimento através de seus caminhos.

Assim, o território de um forrageador é algo a ser relacionado e associado com ele, não pertencendo a ele, e as trilhas e caminhos são simbólicos do próprio processo de viver (…)[216].

A passagem das atividades de subsistência para a agricultura intensiva na Mesopotâmia merece ser ilustrada, e, nesta última seção, vou retornar àquela que é tida como a mais antiga cidade do mundo, Eridu – situada onde hoje fica Tell Abu Shahrain, na província iraquiana de Dicar. Embora ainda não tivesse se tornado tão desértica como (sintomaticamente) é atualmente, Eridu já não se configurava como o local mais indicado para o surgimento da civilização desde o início do seu povoamento. Como explica Kriwaczek,

as primeiras pessoas que se instalaram ali, que construíram suas cabanas  de junco à beira da água [tanto do rio Eufrates e outros, quanto do Golfo Pérsico], que criaram campos para cultivar seu milho e sua cevada, e hortas para plantar seus legumes e suas tamareiras, levando seus animais para pastar na estepe, não estavam escolhendo a alternativa de menor esforço. Se quisessem vida fácil, teriam estabelecido seus povoados onde a precipitação pluvial por ano, em volume suficiente, simplificava o cultivo da terra (…). Ali, os recém-chegados contavam apenas com os rios para regar suas plantações e, até para isso, primeiro tinham de reconfigurar a própria terra, introduzindo barragens, diques, fossas, reservatórios e canais.

Em outros lugares do mundo, fazia milhares de anos que homens e mulheres vivam alegremente da agricultura de subsistência, em perfeita sintonia com suas necessidades e desejos (…). Em muitos lugares, aliás, ele [esse estilo de vida] perdura até hoje. Mas isso não bastava para os pioneiros da planície mesopotâmica. Eles não haviam ficado sem terras suficientes para o cultivo tradicional. As populações humanas eram minúsculas e muito dispersas, o que deixava amplo espaço para novos assentamentos agrícolas. Mas os que foram para essa área não pareciam estar interessados em fazer o que tinham feito seus ancestrais, adaptando seu modo de vida ao mundo natural, tal como o encontravam. Ao contrário, estavam decididos a adaptar o meio ambiente e adequá-lo ao seu estilo de vida[217].

O que levou essas pessoas a adotarem um modo de vida tão diferente daquele dos seus antepassados, mais trabalhoso, e desarmônico em relação ao lugar onde viviam? É preciso ter em mente que a dificultosa fundação de Eridu, cujas ruínas datam de até 5600 a.c., se dá num cenário de ampla implantação dos resultados da chamada “Revolução Neolítica”, iniciada na região cerca de seis mil anos antes da criação da cidade. O termo foi cunhado pelo arqueólogo marxista Gordon Childe, em 1923, para denominar a transição do modus vivendi nômade para o sedentário, o que coincide com o surgimento da agricultura em larga escala, fator que teria propiciado maior crescimento demográfico e, com isso, desencadeado o surgimento de sociedades mais estratificadas[218]. Essa hierarquização da sociedade, aliada à consequente burocracia administrativa advinda com o desenvolvimento e especialização de atividades laborais e manufatureiras, teria culminado, defende John Zerzan, no advento das primeiras cidades mesopotâmicas[219].

O ecossocialista iraniano Kamran Nayeri considera que “a alienação da natureza, marcada pelo surgimento de uma cosmovisão antropocêntrica”, foi uma exigência básica para o advento da agricultura, “que depende da domesticação de plantas e animais, e da dominação e controle da natureza”[220]. De dada maneira, e em diferentes níveis a depender da região e do povo, a concepção de que era necessário se fixar e trabalhar – e muito – para moldar e controlar a terra já contava com fortes alicerces ideológicos, antropocêntricos e binarizantes, fincados em terras mesopotâmicas há mais de meio milênio antes da construção de Eridu. Como resume Daniel Quinn:

A agricultura é menos eficiente para acabar com a fome do que a caça e coleta, mas não há dúvida de que oferece outros benefícios (o mais notável deles é a base para a fixação num lugar e, com o tempo, para a civilização), e foi para garantir esses benefícios que os fundadores da nossa cultura acabaram adotando um modo de vida de dependência total da agricultura. A partir desse ponto, tornou-se uma questão de convicção profunda entre nós que cultivar toda a comida é a melhor maneira de viver[221].

Dessa forma, a escolha de uma área inadequada como a de Eridu certamente não destoava da visão de mundo propagada pela ideologia civilizatória. Para utilizar uma terminologia proposta por Quinn, o “modo de vida” – a sedentarização agrícola – já era propício para a “organização social” iminente – a civilização[222]. É revelador, nesse sentido, que a  cidade era considerada a morada do supremo deus dos abismos subterrâneos, Ea (ou Enki), referido nas escrituras como “Rei de Eridu”, ou “rei do Apsu”, o lago sagrado em torno do qual se erigiu a urbe. Trata-se da potestade guardiã dos saberes civilizatórios que, como vimos, constituem aquilo que os sumérios chamavam de “[223], e os acádios, de “nēmeqi”, o conhecimento abismal da totalidade cindida.

         Como conclui Paul Kriwaczek, “os que escolheram esse caminho ainda tiveram de abrir mão de muita coisa, inclusive da autonomia, da liberdade, e da própria identidade como agentes autoconfiantes e independentes”[224]. Há que se acrescentar concessões ainda mais graves, já que, “densamente amontoadas em condições insalubres, as pessoas que enchiam as vielas estreitas entre os muros, lado a lado com as aves domésticas e os rebanhos dos quais provinha e se espalhava a maioria das epidemias humanas, não viviam muito”[225]. John Zerzan destaca que “a Mesopotâmia urbana foi praticamente projetada para as doenças epidêmicas, criadas no neolítico com a domesticação e a aglomeração pioneira de animais (humanos e outros), e aperfeiçoadas pelas condições da cidade”[226]. O que levou os pioneiros de Eridu a esse caminho tão sombrio, indica Kriwaczek, foi uma “escolha ideológica, “uma fé capaz de persuadir homens e mulheres de que valia a pena esse sacrifício”[227]. A essa “fé”, o estudioso chama de “ideologia do progresso”[228]. John Zerzan enfatiza a existência de um “sentido da cidade”, de uma “potência ideológica da condição urbana”[229]. Pois, como argumenta Daniel Quinn, “você não consegue fazer as pessoas aceitarem de supetão uma ideia absurda como essa. Elas têm de ouvi-la desde que nascem. Tem de vir de todas direções e estar incrustada em todas as comunicações, como acontece conosco”[230].

Espero ter conseguido mostrar, com o presente texto, que foi com esse intuito que se construiu o mito narrado no poema de Sin-léqi-unnínni. Pois encontramos na “Epopeia de Gilgámesh” um dos mais antigos modelos para as oposições que (ainda) se impõem, em detrimento dos primeiros termos, entre “primitivo” x “desenvolvido”, “selvagem” x “civilizado”, “silvícola” x “urbano” e, ainda, “feminino” x “masculino”, e “transexual” (“andrógino”) x “cissexual”. Refiro-me a uma série de oposições que talvez possam remontar a uma outra, ainda mais fundadora: aquela que contrapõe “animal” x “humano” – ou, para utilizar uma terminologia mais adequada às ciências humanas e à modernidade do que às civilizações antigas: a oposição entre “natureza” e “cultura”. Acredito que não seja pretensioso cogitar que eis aí a cisão, o abismo em que, contraditoriamente, se estabeleceram os alicerces para a construção de uma aparentemente intransponível ideologia civilizatória e patriarcal. Uma ideologia que irrompeu da Mesopotâmia e se espalhou, com pequenas variações e sempre de maneira violenta, por toda a faixa continental da Eurásia – e que, milênios depois, se alastraria da Europa para quase todo o planeta, mantendo praticamente o mesmo ideário essencial, mas com proporções destrutivas nunca antes vistas.

Quero finalizar lembrando de um dos mais importantes artefatos mesopotâmicos encontrados em escavações arqueológicas, o chamado “Prisma de Weld-Blundell”. É um pequeno bloco de argila, datado de mais ou menos 1800 a.c., preenchido, em suas quatro faces, com uma listagem de longínquas dinastias sumérias. Nele, o nascimento da primeira cidade – e das bases do que se convencionou chamar de civilização – é marcado com as seguintes palavras: “depois que a realeza desceu do céu, a realeza ficou em Eridu[231]. A questão da deificação da autoridade, da opressão e do poder é por demais explícita na sentença, prescindindo de qualquer comentário; o que quero sublinhar não é tanto a relação “divino/monarca” x “humano/súdito”, mas “civilizado/divino” (ou “Homem”) e “selvagem/mundano” (ou “natureza”)[232]. Num último retorno ao belo poema de Sin-léqi-unnínni – no qual, como vimos, se comparado a outros escritos do mesmo ciclo heróico, se destaca uma relação mais de amizade do que de opressão/submissão entre o rei e seu companheiro silvícola –, considero eloquente, quanto à divinização do que veio a se impor como “Homem”, o que diz Shámhat a Enkídu, ao fim da longa cópula que concede a ele a “Humanidade”: “és bom”, “como um deus és tu[233]. A partir de agora, Enkídu está “habilitado” a ser um “igual” diante do civilizado Gilgámesh, o que implica na medição de sua “humanidade” tomando-se como parâmetro o “divino”, situado “além da natureza” – numa concepção de “sobrenatural” estabelecida sob as molduras dogmáticas, ritualísticas e opressoras da urbanidade. (Nunca é exagerado repetir: “com o surgimento da civilização”, para citar mais uma vez Kamran Nayeri, “as idéias religiosas da vida após a morte foram institucionalizadas, e uma casta do sacerdócio foi criada para supervisionar a vida religiosa dos cidadãos”[234]). Alimentando o desejo da imortalidade divina que movimenta um herói, Enkídu acabou cometendo as maiores atrocidades contra exatamente aquilo que carregava consigo, o selvagem. Não estamos distantes daquele Deus que cria o Homem à sua imagem e semelhança, superior aos demais seres, exatamente para subjugar os animais e devastar todo o mundo natural.

Já mencionei que o professor Jacyntho Lins Brandão caracteriza o texto de Sin-léqi-unnínni como um “poema marcado por profunda reflexão antropológica”[235]. É praticamente unânime entre arqueólogos, geógrafos e historiadores que foi a partir do Crescente Fértil que se irradiou, para boa parte da Eurásia ou “Velho Mundo”, o modelo civilizatório baseado na (pretensão de) domesticação e controle da natureza e na opressão das “outras pessoas”. Sendo assim, acredito ser possível inferir que, junto à expansão – conflituosa, belicosa, genocida – das práticas urbanísticas, agrícolas e pecuárias desenvolvidas entre os rios Tigre e Eufrates, também tenha sido importada – ou melhor: imposta –, em larga escala e com poucas mudanças, a ideologia que buscará promover, por meio da poesia – um dos mais poderosos meios de comunicação da época –, a suposta superioridade divina do “cultivado” em relação ao “selvagem”, e, por extensão, da “Humanidade (civilizada e patriarcal)” sobre a “natureza” e suas “outras humanidades” – principalmente aquelas que, sob a perspectiva cindida do abismo no qual fomos jogados, aprendemos a perceber e a tratar como “não humanas”.

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[1] Tradução livre para o original: “A central tenet of Gilgamesh is that when humans deny themselves direct identification with and access to wild, animal nature (…), confused social strife and ecological crisis will result”. BARRON: 2002, p. 393.

[2] JENSEN: 2015.

[3] Para a acentuação de palavras dos antigos idiomas sumério e acádio, incluindo-se os nomes próprios, como “Gilgámesh”, sigo no presente texto as orientações do professor e classicista Jacyntho Lins Brandão, que propõe uma marcação gráfica dos vocábulos de acordo com as normas ortográficas modernas da língua portuguesa, de maneira a proporcionar, para os falantes desta, uma pronúncia aproximada àquela que os especialistas acreditam ter sido utilizada pelos povos antigos. É a recém-publicada tradução de Brandão para a “Epopeia de Gilgámesh”, Ele que o abismo viu, a fonte que utilizo no presente texto; cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 15-19, 26-34.

[4] Brandão sinaliza que “a atribuição do texto a esse sábio encontra-se em catálogo de obras e autores redigido no primeiro terço do primeiro milênio anterior a nossa época e achado em Nínive”. In: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 27.

[5] Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 27.

[6] O nome de Gilgámesh, por vezes sob a variante Bilgames, é elencado nas listas dinásticas do século XXII a.c. como o quinto rei da era pós-diluviana, exercendo o poder durante 126 anos. Antes dele, teriam governado Úruk, em ordem cronológica: o filho do deus Sol (Utu), Mesh-ki-ang-gasher, que governou a cidade durante 324 anos; Enmerkar, seu filho, que construiu Unug (isto é, Úruk), e reinou por 420 anos; Lugalbanda, o pastor, rei durante 1200 anos; e Dúmuzid, o pescador, que permaneceu no poder por “apenas” cem anos. Antes do dilúvio, teriam reinado Ubara-tútu e Ziusudra (referido no “Epopeia de Gilgámesh” como Uta-napíshti, o equivalente ao que o Noé é no Tōrāh ou Velho Testamento). É possível situar a heroicização de Gilgámesh em textos “literários” muito cedo, a partir dos séculos XXII e XXI a.c., período imediatamente posterior ao de composição das listagens dinásticas. Cf. Brandão; in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 21-22.

[7] Trata-se de uma longa e importante tradição “literária” que era completamente desconhecida pelo Ocidente moderno até 1846, quando Henry Austen Layard desenterrou a biblioteca de Assurbanípal na colina de Quyunjik, no que atualmente é o Iraque – ou, mais propriamente, até 1872, quando o assiriólogo britânico George Smith apresentou, numa conferência em Londres, uma tradução para o inglês de uma das tabuinhas encontradas por Layard, que narrava o episódio do dilúvio (muito similar àquele que se lemos no Tōrāh ou Velho Testamento, e também em outras tradições cosmogônicas da Mesopotâmia – e da Eurásia como um todo). Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 15-19.

[8] Em linhas gerais, a crítica à civilização – que engloba, mas não se resume à crítica ao colonialismo – parte do pressuposto de que o modo civilizado não traduz um “estágio máximo” da vida em sociedade, sendo apenas uma de suas diversas formas – exatamente a única que “apresentou a humanidade”, enumera Daniel Quinn, “à opressão, à injustiça, à pobreza, à fome crônica, à violência incessante, ao genocídio, à guerra global, ao crime, à corrupção e à destruição ambiental em larga escala” (QUINN: 2001, p. 97). Entendida como um projeto de domesticação e devastação da natureza, e de alienação e opressão das pessoas, “civilização”, aqui, não é o contrário de “barbárie”, mas, antes, seu sinônimo. Concepções civilizatórias tidas como “naturais”, como a de “progresso” e de “tecnologia”, ou mesmo práticas sócio-econômicas consideradas básicas, como o sedentarismo, a agricultura e a pecuária, são questionadas pela crítica à civilização, que, portanto, desloca para além do capitalismo a origem da catástrofe a que assistimos. Os críticos à civilização ainda formam, no entanto, um grupo consideravelmente pequeno, ainda que transdisciplinar, incluindo parte dos movimentos indígenas e indigenistas, e adeptos da ecologia profunda, da antropologia contemporânea, do indigenismo radical, do descolonialismo, do ecoanarquismo, do primitivismo e de algumas vertentes do feminismo.

[9] Como já dito em nota anterior, trata-se da tradução publicada em 2017 pelo professor e classicista Jacyntho Lins Brandão, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Trata-se da primeira versão em língua portuguesa vertida diretamente da língua acádia.

[10] De acordo com Brandão, Enkídu é um personagem que “não aparece fora do ciclo de Gilgámesh, a não ser num encantamento babilônico antigo”. In: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 157.

[11] Diz Zerzan no texto original: “This key myth, among others, expresses the founding of a civic consciousness that is pervasive in the dominant Mesopotamian literature”. ZERZAN: 2015, p. 7.

[12] A tradução é livre. No original: “The examination of such a key text as Gilgamesh (…) is critical to unlocking the roots of the central, problematic dilemma of the severance of humanity from wild animal nature”. BARROW: 2002, p. 378.

[13] Citado por Paul KRIWACZEK: 2018, p. 64.

[14] KRIWACZEK: 2018, p. 43.

[15] Grifos meus. No original: “with civilization, how it is is how it’s always been”. ZERZAN: 2002, p. 198.

[16] Importante dizer que este texto está sendo escrito em fins de agosto do sombrio ano de 2019.

[17] KRIWACZEK: 2018, pp. 22-23.

[18] “Micenas”, assim, figura como a “Antiguidade proto-Ocidental” –  os súditos de Agamémnon seriam os “primeiros Gregos”, assim como os “Gregos”, e também os “Romanos”, seriam os “primeiros Europeus”. O “período dórico” transcorreria como uma catastrófica “idade média”, causada pela conquista do poder por “bárbaros vindos do norte”, implantando uma sociedade ágrafa e rural – há quem fale de um “feudalismo grego”. O ressurgimento da escrita, o resgate das tradições cortesãs, e a invenção da pólis e sua crescente “democratização” – o que vemos, enfim, transcorrer no “período homérico” –, seriam como o “Renascimento Europeu”, com a recriação e a ampliação da cultura escrita e a implantação dos modernos “Estados-Nações”. E, afinal, o “Período Clássico” da “História Grega” (aqui talvez fosse mais adequado dizer “ateniense”) guardaria semelhanças com a “Modernidade Ocidental”, com sua visão de mundo laica e sua busca por uma política cada vez mais participativa. Restaria-nos saber se o crescimento global do conservadorismo em nossos tempos nos estaria sinalizando para um retorno de formas mais centralizadas de governo, como aquela que os gregos conheceram sob as monarquias de Alexandre da Macedônia e seus sucessores.

[19] As datas aproximadas foram retiradas da tabela proposta por Jacyntho Lins Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 35-36.

[20] Citado por ZERZAN: 2015, p. 6.

[21] Cf. ZERZAN: 2015, p. 6.

[22] Cf. NAYERI: 2018, p. 3.

[23] Citado por KRIWACZEK: 2018, pp. 170-171.

[24] Citado por KRIWACZEK: 2018, p. 171.

[25] No texto original, “prefiguring modern political rhetoric and the evils it tries to hide or somehow legitimate”. ZERZAN: 2015, p. 8.

[26] Depois dos persas, serão os gregos que, sob Alexandre, dominarão a Mesopotâmia, dando início ao período selêucida, que se estende de 311 a 126 a.c., até que uma nova dinastia de origem persa, os partos, dominam a região, e a escrita cuneiforme deixa de ser utilizada. É o fim da “Antiga Mesopotâmia”, como a concebemos. Após uma guerra contra os romanos, os partos se estabelecem na região por quase cem anos, quando, enfim, o império é conquistado pelos sassânidas (também de origem persa). Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 36.

[27] Citado em ZERZAN: 2015, p. 6.

[28] QUINN: 2001, p. 55.

[29] KRIWACZEK: 2018, p. 24.

[30] KRIWACZEK: 2018, p. 26. Grifos meus.

[31] KRIWACZEK: 2018, p. 23.

[32] QUINN: 2001, p. 91. Os grifos são do autor.

[33] Vale lembrar que, no famoso livro The World System, o economista André Gunder Frank e o professor de política internacional Barry K. Gills argumentaram que “o sistema mundial contemporâneo tem uma história de pelo menos 5.000 anos (the contemporary world system has a history of at least 5,000 years)”. Citados em ZERZAN: 2015, pp. 5.

[34] KRIWACZEK: 2018, pp. 23 e 34. Grifos meus.

[35] Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 22.

[36] Diz o verso 43 da primeira tabuinha: “(Gilgámesh) repôs os templos arrasados pelo dilúvio”. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 46.

[37] No poema, veremos que a construção das muralhas de Úruk por Gilgámesh é mencionada logo na primeira tabuinha, no verso 11 (e no verso seguinte, é imputado a ele também o Templo de Eanna, famoso santuário da cidade, dedicado à deusa Ishtar). Há outra fonte, mais antiga, que outorga ao rei-herói a edificação: trata-se de uma inscrição suméria datada do reinado de Anam (1821-1817 a.c.). Gilgámesh também é posto como autor da construção de um templo em Níppur dedicado ao deus Énlil, relacionado aos ventos, às tempestades e à terra, numa inscrição dos séculos XXI-XX a.c.. Cf. Brandão; in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 22.

[38] Cf., p.e., o verso 52 da primeira tabuinha, a partir do qual é possível dimensionar a altura do rei em 5,5m de altura! SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 46.

[39] Cf. verso 37 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 46.

[40] Cf. verso 62 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 46.

[41] Cf. versos 75 e 90 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 47.

[42] Dizem os versos 45-46 da primeira tabuinha: “Quem há que a ele se iguale em realeza / E como Gilgámesh diga: este sou eu, o rei?”. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 46. Um verso que se repete ao longo do épico é “(Gilgámesh) não tem rival se levanta seu taco (mukkû)”; o “taco” em questão faz referência a um jogo muito comum à época. Cf., p.e., verso 65 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 47.

[43] Cf. versos 35 e 36 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p.  46. Na iconografia, Nínsun podia ser representada tanto sob forma humana, quanto sob forma bovina.

[44] Cf. verso 48 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 46.

[45] Este epíteto aparece já no segundo verso da primeira tabuinha, e se repete várias vezes ao longo do poema. Ainda na primeira tabuinha, os versos 5-8 são eloquentes quanto às capacidades atribuídas a Gilgámesh: “Explorou de todo os tronos (parakku), / De todo o saber, tudo aprendeu, / O que é secreto ele viu, e o coberto descobriu, / Trouxe isto e ensinou (…)”. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 45.

[46] Verso 6 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 45.

[47] In: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 142. Grifo meu.

[48] KRIWACZEK: 2018, p. 46.

[49] Citado por KRIWACZEK: 2018, pp. 46 e 51.

[50] KRIWACZEK: 2018, pp. 46-47. Grifos meus.

[51] Cf. versos 11-12 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 45.

[52] Cf. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 45 e 145.

[53] Cf. versos 13-21 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 45.

[54] In: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 15. Paul Kriwaczek apela para certo determinismo geográfico, com o intuito de encontrar uma causa para o pioneirismo e o perene prestígio que as grandes construções arquitetônicas tiveram na Mesopotâmia: numa “parte do mundo em que a areia sopra com frequência do deserto e oblitera todos os traços conhecidos, em que os cursos dos rios se alteram constantemente e onde enchentes calamitosas não raro desmancham todas as marcas que os seres humanos tentam deixar na paisagem, um monumento permanente é de especial significação. Subitamente introduzido no caleidoscópio sempre cambiante da experiência cotidiana, ele proporciona um sentimento de continuidade e, por extensão, de história e de tempo. (…) E o prédio (…) funciona como um símbolo, visível de longe, da confiança no progresso e no desenvolvimento dos quais ele é consequência física”. KRIWACZEK: 2018, pp. 41-42.

[55] Cf. versos 37-44 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 46.

[56] KRIWACZEK: 2018, p. 71.

[57] Cf. versos 92-93 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 47.

[58] Cf. versos 67-91 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 47.

[59] Citado por Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 154-155.

[60] Cf. verso 104 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 48.

[61] Cf. versos 111-115 da segunda tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 56. “A luta entre os dois heróis destinados a tornarem-se amigos configura uma espécie de rito de passagem”, como esclarece Brandão. In: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 184. A palavra com que se tratam mutuamente Gilgámesh e Enkídu é ibru, “amigo”; Sin-léqi-unnínni quis, com isso, realçar a igualdade reconhecida entre os dois. Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 185-186.

[62] In: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 13. Cf. versos 110-112 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 48.

[63] In: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p.  157.

[64] Cf. verso 178 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 50.

[65] Cf. verso 185 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI, 2017, p. 50.

[66] Cf. verso 179 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 50.

[67] Verso 174 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 50.

[68] Cf. versos 92-93 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 48.

[69] Trata-se de uma livre interpretação minha. A expressão ilitti qulti, diz Brandão, “tem provocado dúvidas entre os intérpretes no que concerne ao seu significado”. In: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 157.

[70] Cf. verso 108 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 48.

[71] Cf. verso 109 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 48.

[72] Versos 110-112 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 48.

[73] Citado por Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 159.

[74] “O termo amēlu”, analisa Brandão, “é sinônimo de awīlu e significa ‘homem’; lullû designa em geral o primeiro protótipo de homem criado pelos deuses. In: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 165.

[75] Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 159.

[76] Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 159.

[77] Citado por Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 159.

[78] Versos 3-6 da oitava tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 97.

[79] Cf. verso 113 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 48.

[80] Cf. versos 117-118 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 48.

[81] Diz o caçador: “Estou com medo e não chego junto dele”. Verso 129 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 49.

[82] A força de Enkídu é expressa, por vezes, por meio da comparação com uma rocha. Cf., p.e, versos 104 (“rocha de Ninurta”), e 125, 137 e 152 (“rocha de Ánu”) da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 48-49.

[83] O caçador narra que Enkídu “Encheu os buracos que cavei eu mesmo, / Desatou as redes que estendi. / Tirou-me das mãos os bichos, os animais da estepe, / Não me deixa já o trabalho na estepe”. Versos 130-133 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 49.

[84] Cf. GARRARD: 2006, p. 91.

[85] Cf. versos 134-148 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 49.

[86] In: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 13.

[87] No original: “the manipulation and then destruction of the wild element”. BARRON: 2002, p. 383.

[88] Citado por Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 163. Grifo meu.

[89] KRIWACZEK: 2018, p. 54.

[90] O próprio Zerzan aprovaria meu acréscimo, dado que, no início do mesmo ensaio, ele diz: “a agricultura deu fim a um vasto período da existência humana, caracterizado em grande parte pela liberação do trabalho, pela não exploração da natureza, pela considerável autonomia e igualdade de gênero e pela ausência de violência organizada” (tradução livre para o original: “agriculture ended a vast period of human existence largely characterized by freedom from work, non-exploitation of nature, considerable gender autonomy and equality, and the absence of organized violence”). ZERZAN: 2002, p. 197. Grifos meus.

[91] No original, “the awareness of belonging to an earthly community of living beings”. ZERZAN: 2002, p. 203.

[92] Verso 166 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 50.

[93] Versos 194-203 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 51.

[94] Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 167-168.

[95] Escrevi sobre as imagens da “queda” e do “abismo” recentemente, mas em outro contexto, também não cristão: dentro do pensamento de Ailton Krenak. Publicarei em breve esse texto.

[96] In: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 141. Grifos meus.

[97] Citado por Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 141.

[98] Citado por Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 168.

[99] O nome da publicação se escreve com letras minúsculas.

[100] ANÔNIMO: 2014. No original: “The story of Enkidu and Shamhat is a story of domestication from within the mythology of the first civilization. It shows of the taming of Enkidu through the imposition of sex roles, the wearing of clothes, the drinking of alcohol, and his separation from the wild beasts. Shamhat is a sacred prostitute of the Sumerian temples, a spiritual practitioner of the oldest profession. She serves the goddess Ishtar through the rite of hieros gamos, the sacred marriage between the king and the goddess of the city. Ishtar is the goddess of nature, yes, but of nature within the city. Hieros gamos, the sacred prostitution, is a ritualistic submission of nature to the power of the king; the bringing of the wild within the walls of the city. In this way, the nature goddess was also the goddess of arts of civilization. These arts included the practices of government and religion, war and peace, crafts, profession, eating, drinking, clothing, bodily adornments, art, music, sex and prostitution. Theirs are the arts of living applicable to every aspect of civilized life. The goddess rules nature within the city, so her ars vivendi are the rules of civilization, of domestication. And so it was through these rules that Shamhat, a priestess of Ishtar, made Enkidu into a man. After he is torn from his world, Enkidu becomes a virile and bloodthirsty destroyer of the wild. The imposition of gender unleashes a continuum of separation which endlessly separates the city from the forest, humanity from the rest of wildlife, and splits humans into genders”.

[101] Cf. p.e., verso 58 da tabuinha 10. É mesmo período de duração do lendário dilúvio (verso 128 da tabuinha 11). Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 167.

[102] Cf. verso 106 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 48.

[103] Sobre a questão do andrógino como representação de um estado de totalidade divinal e supra-humano, ver ELIADE: 1991.

[104] Objetivo que se encontra bastante evidente nos versos 97-98 da primeira tabuinha, quando o deus Ánu diz à deusa Arúru: “que um coração tempestuoso se lhe oponha [a Gilgámesh] / rivalizem entre si e Úruk fique em paz”. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 48.

[105] Cf. verso 103 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 48.

[106] No original: “Contemporary readings will of course illustrate a degree of misogyny around Shamhat, implying that women tamed the wild men. But this is incorrect and only reveals how deeply seated gendered domination is to civilization. Enkidu is domesticated by all the ars vivendi which define life in the first civilization; by women’s work and men’s work. Enkidu is made a man through these domesticating laws; he is civilized by gender itself”. Cf. ANÔNIMO: 2014.

[107] Veja, por exemplo, os versos 202 e 205 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 51.

[108] Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 168-169.

[109] Cf. verso 209 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 51.

[110] No original: “Archeologists consider walled cities such as Uruk as defensive structures in the face of warfare although it is not clear who the other side of the conflict might have been. More recently, scholars view such walls as more to keep in the bonded population of the early city-states than to repel ‘barbarian’ invaders”. NAYERI: 2018, p. 10.

[111] Verso 29 da segunda tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 55.

[112] Verso 35 da segunda tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 55.

[113] Verso 37 da segunda tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 55.

[114] Versos 44-48 da segunda tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 55.

[115] O assiriólogo Martin Worthington nota que, ao longo do poema de Sin-léqi-unnínni, Gilgámesh e Enkídu sempre se dirigem um ao outro por meio do tratamento “ibrī”, “meu amigo”. Apenas após a morte de Enkídu, Gilgámesh irá chamar o companheiro pelo próprio nome. Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 185.

[116] Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 185-186.

[117] No original: “several periods of depression, here caused by the permanent loss of his identification with animal nature”. BARRON: 2002, p. 385.

[118] Versos 179-181 da segunda tabuinha. Os traços indicam lacunas no texto acádio. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 57.

[119] Versos 189-191 da segunda tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 57.

[120] A citação de Kramer foi retirada dos comentários de Brandão, que, no entanto, defende que seja “mais razoável admitir simplesmente que a motivação para tal [a batalha contra Humbaba] estivesse antes do desejo de obter fama”. Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 186.

[121] Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 189.

[122] Versos 217-229 da segunda tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 58.

[123] Versos 232-233 da segunda tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 58.

[124] Versos 234-235 da segunda tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 58.

[125] Versos 241-252 da segunda tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 58.

[126] VERNANT: 1978, pp. 31-32.

[127] No original: “It is difficult to differentiate Gilgamesh’s attitude towards nature from modern-day hunters, in particular, trophy hunters”. NAYERI: 2018, p. 9.

[128] A tríade de deuses é citada no verso 242 da primeira tabuinha: “Ánu, Énlil e Ea fizeram plena sua sabedoria”. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 52. Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 170.

[129] Verso 296 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 54.

[130] Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 175.

[131] Mesmo que indiretamente, ele tem responsabilidade pelo catastrófico grande dilúvio. Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 284.

[132] GARRARD: 2006, p. 58.

[133] In: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 190.

[134] No original: “Even the gods themselves felt the need to protect nature against civilized humans by creating supernatural beings”. NAYERI: 2018, p. 8.

[135] Citado por BARRON: 2002, p. 390.

[136] Citado em GARRARD: 2006, p. 58.

[137] Segundo os autores, teria existido uma narrativa acádia mais antiga, dedicada exclusivamente à batalha contra Humbaba – referido, à maneira suméria, como “Huwawa”. A passagem narrada por Sin-léqi-unnínni seria derivada deste pequeno épico anterior. Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 188.

[138] No original: “Enkidu, who was born a wild man, becomes even more hostile to wildness after he is tamed by Shamhat”. NAYERI: 2018, p. 9.

[139] No original: “in the epic, each person can have her own private god for guidance and for support. One can hypothesize that the tendency to increasingly associate natural powers and states with humanized gods represents a gradual development of anthropocentrism”. NAYERI: 2018, p. 8.

[140] Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 186-188.

[141] Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 189.

[142] Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 207.

[143] Verso 174 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 50.

[144] A “verdadeira origem” de Enkídu é motivo de muitas especulações. John Zerzan, por exemplo, vê no personagem “uma referência indireta” (an indirect reference) não aos elamitas dos montes Zagros, mas “à tribo amorita, incivilizada e seminômade” (to the uncivilized, seminomadic Amorite tribe). ZERZAN: 2015, p. 7.

[145] Cf. verso 53 da terceira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 62.

[146] No verso 146 da quinta tabuinha, Humbaba diz a Enkídu: “Quando era jovem te vi, mas perto não cheguei”. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 77. No passado, é bem possível, no entanto, que a narrativa mostrasse uma proximidade maior entre eles. Numa das versões arcaicas do ciclo mítico, o chamado “Manuscrito de Yale”, encontra-se uma passagem em que Enkídu diz a Gilgámesh: “Já tratei com ele [com Humbaba], amigo meu, na serra, / quando andava errante com os animais”. Citado por Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 193.

[147] Verso 7 da terceira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 61.

[148] Cf. versos 274-299 da segunda tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 59-60.

[149] Ele próprio diz nos versos 24-27 da terceira tabuinha: “sou ousado a ponto de percorrer / o longo caminho até Humbaba. / Uma refrega que não conheço enfrentarei, / em jornada que não conheço embarcarei”. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 61-62.

[150] Versos 1-12 da terceira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 61.

[151] Versos 1-12 da terceira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 61.

[152] Diz o verso 120 da terceira tabuinha: “[Nínsun] a Enkídu chamou e proferiu-lhe o comando”. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 64.

[153] Versos 121-128 da terceira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 64-65.

[154] Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 196.

[155] Cf. versos 21-33 da quarta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 67-68.

[156] Cf. versos 54-78, 99-109, 141-162 e 182-183 da quarta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 68-71.

[157] Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 201.

[158] Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 199.

[159] Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 199.

[160] Dickson diz que a narrativa de Gilgámesh se desenvolve dentro e entre três “espaços epistêmicos” principais: a cidade, a natureza selvagem e o mundo sobrenatural. Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 204.

[161] Optou-se por não traduzir ballúkku, nome de espécie de árvore – e, por extensão, da substância aromática dela retirada – não identificada (talvez extinta?). Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 205.

[162] Versos 1-26 da quinta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 73.

[163] Versos 27-30 da quinta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 73-74.

[164] CAFFIN: 2016, p. 4. O ensaio de Caffin de onde retirei a frase foi publicado originalmente em 1903, na revista Camera Work.

[165] Epíteto dedicado ao monarca nos versos 94 e 192 da quinta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p0.75 e 78.

[166] Cf. versos 90-94 da quinta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 75.

[167] Versos 146, 147 e 148 da quinta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 77.

[168] Versos 157-158 da quinta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 77.

[169] Sin-léqi-unnínni narra que o deus, para facilitar a ação do rei, incitou os “grandes ventos” das quatro direções contra Humbaba, “escurecendo-lhe a face”. Cf. versos 181-187 da quinta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 77-78.

[170] Versos 218-219 e 222-223 da quinta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 78.

[171] Cf. versos 225-232 e 266-272 da quinta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 78-79.

[172] Versos 277-278 da quinta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 80.

[173] Citado por Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 212.

[174] Versos 284-285 da quinta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 80.

[175] Assim, continua Patrick Barron, “a ‘glória’ da façanha reside em parte no fato de que a madeira era um bem precioso para os sumérios, já que as planícies da Mesopotâmia na época não dispunham delas. As expedições de coleta de madeira eram frequentemente empreendimentos perigosos, exigindo muitas viagens e, por vezes, batalhas contra tribos locais que habitavam as florestas, o que pode ajudar a explicar por que Gilgamesh considera que a exploração e o corte de florestas podem lhe proporcionar uma fama monumental”. No original: “the ‘glory’ of the exploit lies in part with the fact that timber was a precious commodity for the Sumerians, since the plains of Mesopotamia at that time lacked forests. Timber gathering expeditions were often dangerous enterprises, entailing much travel and often fighting local forest-dwelling tribes, which may help explain why Gilgamesh considers that the forest-cutting exploit may provide him with monumental fame”. BARRON: 2002, p. 389.

[176] Nessa cidade, encontrava-se um importante templo dedicado a Énlil, cuja construção seria obra de Gilgámesh de acordo com uma inscrição datada dos séculos XXI-XX a.c.. Cf. Brandão; in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 22.

[177] Versos 303-306 da quinta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 80.

[178] No original: “The killing of Humbaba clearly represents an assault of Enkidu upon his own kind; in short, he has been coerced into attacking the center of his own deep, wild animal being. It is here that the separation of Enkidu from wild animal nature has begun to come full circle and produce grisly, self-inflicted wounds. It is no wonder that Enkidu suffers bodily paralysis and mental anguish; he has unwittingly – or as a result of madness and/or love for Gilgamesh – attacked the core of his own essence”. BARRON: 2002, p. 390.

[179] Cf. versos 6-21 da sexta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 82.

[180] Cf. versos 24-79 da sexta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 82-84.

[181] Cf. versos 84-100 da sexta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 84-85.

[182] Cf. versos 125-146 da sexta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 86.

[183] Cf. versos 160-179 da sexta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 86-87.

[184] Cf. verso 153 da sexta tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 86.

[185] Logo no primeiro verso da sétima tabuinha, Enkídu pergunta à Gilgámesh: “por que discutiam em conselho os grandes deuses?”. Adiante, encontram-se os belos e fragmentados versos (165-220) nos quais Enkídu narra e interpreta seu sonho de mau-presságio para Gilgámesh. Cf. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 89 e 93-95.

[186] Tradução livre para o original: “in his rapacious attacks upon Humbaba and the Bull of Heaven, Enkidu has reached the brink of self-annihilation”. BARRON: 2002, p. 391.

[187] Cf. versos 93-99 da sétima tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 91.

[188] Cf. versos 102-131 da sétima tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 91-92.

[189] Cf. versos 135-138 da sétima tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 92-93. Para Patrick Barron, “esse grande encobrimento forçado do fracasso terrível e da crueldade da ‘humanização’ de Enkidu tem muitos paralelos, por exemplo, nas justificativas para a captura contemporânea de animais selvagens, principalmente primatas, para fins de experimentação, criação, caça e exibição”. No original: “This grand, forced cover-up of the terrible failure and cruelty of Enkidu’s ‘humanization’ has many parallels in, for example, rationales for the contemporary capturing of wild animals, particularly primates, for experimentation, breeding, hunting, and exhibition purposes”. BARRON: 2002, p. 392.

[190] Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 232.

[191] Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 23

[192] Cf. verso 145 da sétima tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 93.

[193] Cf. versos 151-161 da sétima tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 93.

[194] Tradução livre para o original: “not only is he not left to die fully remonstrating his domestication – which in the clarity of his death-throes he only begins to do – but he is made to praise the ‘gift’ of this domestication”. BARRON: 2002, p. 391.

[195] Cf. versos 166-170 da sétima tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 93.

[196] Cf. versos 171-175 da sétima tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 93-94.

[197] Cf. versos 182-185 da sétima tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 94.

[198] Cf. versos 202-204 da sétima tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 94.

[199] Da mesma forma, considero muito lacunares os versos 263-267 da sétima tabuinha, de cujos fragmentos Brandão conclui que se trata de um discurso em que Enkídu se diz amaldiçoado por não ter morrido em combate, mas de doença. Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 243. Essa interpretação não se coaduna com a real motivação da sua morte – uma resposta dos deuses frente aos assassinatos cometidos por ele e seu companheiro durante batalhas heróicas. A doença não seria a causa última da ruína de Enkídu, mas somente o seu meio.

[200] Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 242.

[201] Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 242.

[202] Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 242.

[203] Cf. versos 3-8 da nona tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 104.

[204] Cf. versos 184-264 da décima tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 114-117.

[205] Cf. versos 266-321 da décima tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 117-119.

[206] Cf. versos 216-218 da décima primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 126-127.

[207] Cf. versos 247-300 da décima primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 127-129.

[208] Cf. versos 305-307 da décima primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, pp. 129.

[209] Cf. Brandão, in: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 15.

[210] Cf. versos 308-313 da décima primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 129.

[211] Cf. versos 323-328 da décima primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 130.

[212] In: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 15.

[213] In: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 15.

[214] No original, “forced urbanization of rebellious tribes”. Citado por ZERZAN: 2015, p. 6.

[215] Daniel Quinn acredita que, no momento em que as sociedades começam a estocar comida – o termo que ele usa é mais agudo: “trancar comida” –, tem-se “o início da vida hierárquica que chamamos de civilização”, com o surgimento de uma classe de autoridades improdutivas as quais, no entanto, controlam os bens produzidos pela comunidade. QUINN: 2001, p. 76. Grifo meu.

[216] Tradução livre para o original: “most foragers conceptualize relations between humans and their world in ways very different from our own cartesian model. Commonly, the environment is regarded as a benign spiritual home (…). Relations with it are modeled on the same principle of sharing that applies within the human community (…). Many foragers do not distinguish between their own fortune and the character of the world around them, using metaphors such as procreation, parenthood, and kinship to describe their relations to the environment. Land needed for living in is appropriated not by fences and boundaries, in the way of farmers, but by moving through its paths. // Thus a forager’s territory is something to be related to and associated with, not owned, and tracks and paths are symbolic of the process of life itself”. Citado por NAYERI: 2018, p. 6.

[217] KRIWACZEK: 2018, pp. 33-34.

[218] Desde a descoberta, na década de 1990, das ruínas de um complexo de santuários em Göbekli Tepe, no atual sudeste da Turquia, datados de até 10000 a.c., considera-se a hipótese de que o estilo de vida sedentário tenha antecedido a agricultura em larga escala, vinculando-se, antes, à implantação da religião institucionalizada e monumentalizada (seus megálitos em forma de T são os mais antigos do planeta). Isso porque parecem não existir vestígios de grandes plantações no local, condizentes com o tamanho do sítio arqueológico e com a quantidade de pessoas que ali poderiam habitar. Acrescente-se que foram encontrados na região restos de grãos selvagens, ainda não modificados pela seleção humana para plantio, sugerindo-se que as pessoas que ali habitavam eram, de fato, caçadoras e coletoras.

[219] ZERZAN: 2015, p. 6.

[220] No texto, publicado em inglês, Nayeri diz: “the transition to farming from foraging (…) required alienation from nature marked by the rise of an anthropocentric worldview (…) basic to farming, which relies on domestication of plants and animals, and domination and control of nature”. (…) we must see this transition reflected in fable, mythology, and folklore in the cultural history of the early civilizations and consolidation of the anthropocentrism in the subsequent civilizations. The Epic of Gilgamesh provides an ideal case study”. “Devemos ver essa transição”, completa Nayeri, “refletida na fábula, na mitologia e no folclore da história cultural das primeiras civilizações e na consolidação do antropocentrismo nas civilizações subsequentes” – e o autor passa a tratar exatamente do épico de Gilgámesh, que configuraria um “estudo de caso ideal” (ideal case study) para tanto. NAYERI: 2018, p. 2.

[221] QUINN: 2001, p. 41.

[222] QUINN: 2001, p. 64.

[223] KRIWACZEK: 2018, pp. 45-46.

[224] KRIWACZEK: 2018, p. 37.

[225] O autor acrescenta que, “na Mesopotâmia meridional, as águas estagnadas ou lentas dos charcos, dos canais e das valas deviam manter em nível constantemente elevado a prevalência de doenças transmitidas por mosquitos, como a malária e a febre dos pântanos”. Por isso, e também por conta de guerras e problemas ambientais, muitas cidades eram abandonadas por anos – às vezes, por séculos. Kriwaczek acredita que a alta mortandade teria levado à apologia e à sacralização do sexo e da procriação características do Crescente Fértil, afinal era preciso manter a cidade povoada para garantir seu próprio funcionamento. Cf. KRIWACZEK: 2018, pp. 48-49.

[226] Texto original: “Urban Mesopotamia was virtually designed for epidemic disease, created by domestication and its first, Neolithic crowding of animals (human and otherwise), and perfected by city conditions”. ZERZAN: 2015, p. 10.

[227] KRIWACZEK: 2018, p. 37.

[228] O autor, repetindo a velha cantilena apologética à civilização, diz se tratar da “convicção de que era possível e desejável melhorar continuamente o que já fora feito, de que o futuro podia e devia ser melhor – e maior – que o passado”. KRIWACZEK: 2018, p. 39.

[229] ZERZAN: 2015, p. 7.

[230] QUINN: 2001, p. 50.

[231] Citado por KRIWACZEK: 2018, p. 22.

[232] A respeito disso, talvez valesse retomar a associação que o historiador Jacques Cauvin estabeleceu entre a imposição da agricultura junto a povos caçadores e coletores e a propagação de uma ideologia religiosa baseada numa “autoconfiança messiânica” típica de cultos agrários, quando da chamada “Revolução Neolítica”. Ver: CAUVIN: 2017.

[233] Cf. verso 207 da primeira tabuinha. SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 51.

[234] No original: “with the rise of civilization religious ideas of afterlife became institutionalized and a caste of priesthood created to oversee the religious life of the citizens”. NAYERI: 2018: p. 9.

[235] In: SIN-LÉQI-UNNÍNNI: 2017, p. 13.

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