O mito do progresso

Ensaio sobre a ideia de progresso e neutralidade tecnológica.


A cultura civilizada surge com uma disposição insaciável para o acúmulo. O homem, através do seu trabalho, teria agora somente o céu como limite, não estando mais limitado pela natureza como os outros animais. Superar os limites se tornou nosso propósito de vida, o que alterou nossa perspectiva quanto ao significado da vida humana. Este mito sempre competiu com outros mitos, como por exemplo um mito comum em diversas culturas, segundo o qual os seres humanos viveram seu auge num passado esquecido, e o que se abria para o futuro por meio do trabalho civilizado era apenas um tipo de escravidão ou decadência.

Ambos os mitos encontram seu espaço na nossa cultura. Podemos chamá-los de mito prometeico ou mito do progresso e o mito da era de ouro ou mito da queda. Os defensores do segundo mito podem facilmente ser caricaturados como conservadores que tem medo de tudo que é novo. Mas o mito que alimenta a esperança de um futuro promissor no qual o ser humano se emanciparia das superstições do passado e teria uma razão madura, com a qual seria capaz de fazer as escolhas corretas e ser senhor do seu destino, não é menos ilusório. Os herdeiros do iluminismo negaram a validade da sabedoria ancestral junto com a religião institucionalizada, relativizando o significado do discurso que basicamente relacionava o trabalho civilizado a uma maldição, e afirmava que nada que a civilização cria é realmente importante para a vida humana. Tudo que fazemos vira pó. Tudo é vaidade. Uma vida simples seria melhor que todo esse trabalho para construir pirâmides.

Este mito afirma que a civilização, embora impressionante, é no mínimo ambígua. As antigas críticas à civilização foram dispensadas pelo século das luzes. O que antigos viam com receio se tornou uma benção indiscutível no discurso da modernidade. A religião foi acusada de impedir o progresso exatamente por sua relação com essa forma de “crítica à civilização”. Mas a igreja cristã inegavelmente foi conivente com o avanço da civilização. Só para citar um exemplo, os sinos das igrejas foram o principal instrumento para reificar o tempo e transformá-lo em algo separado dos ciclos naturais. A igreja não criticou o progresso em si, apenas se utilizou de um discurso para direcionar o progresso para os fins que atenderiam ao interesse da classe dominante.

Essa classe dominante era a nobreza, que não dava valor ao trabalho braçal. A burguesia precisava tomar a dianteira para que o progresso não parasse ali. Por isso o mito do progresso foi alimentado pela burguesia ascendente: a ideia de que a natureza humana não estava corrompida pela queda, mas apresenta um potencial ilimitado, foi determinante para a revolução cultural européia. A modernidade afirma a capacidade humana de escolher entre o bem e o mal. O ser humano, e mais tarde o indivíduo, foi visto como plenamente capaz de desenvolver suas potencialidades e alcançar o que deseja, contanto que se esforce o suficiente. Seria preciso então calar a voz daqueles que diziam que o ser humano deveria se contentar com o que recebia gratuitamente da natureza, já que não seria capaz de criar nada melhor por si só. O homem ficou livre para realizar coisas grandiosas para si mesmo, mas essa liberdade logo se tornou uma doutrina obrigatória.

Por trás da fragilização dos laços afetivos está o conflito entre pessoas manipuladas pelo ideal de independência. O mito do progresso foi um dos fatores da produção dessa instabilidade sistêmica. O poder técnico aparece como redentor, gerando uma cobrança neurótica pelo aperfeiçoamento do desempenho e eficiência de produção, que leva à exclusão de tudo que não serve ao ideal de vida eficiente. A obsessão por se encaixar na vida ideal nos desconecta da vida real. A civilização é o processo organizado de destruição sistêmica de tudo que nos faz participar da vida em seu sentido mais amplo.

A neutralidade da tecnologia

Um homem que constrói uma barragem está fazendo algo muito diferente do que um castor faz? A diferença é que o castor não está seguindo valores desenvolvidos nos últimos séculos e sim seguindo um comportamento que se desenvolveu lentamente e foi selecionado no decorrer de dezenas de milhares de anos, com cada geração agregando pequenas modificações. Suas barragens não estão, por assim dizer, sob o seu controle exclusivo, pois cada uma dessas pequenas mudanças precisou ser “revisada e aprovada” pelos outros seres vivos que constituem o meio de vida do castor e convivem com o rio que ele modifica. Neste sentido, o castor não altera o meio, o meio se altera na interação desses seres vivos, que tem o tempo necessário para uma co-adaptação a essa mudança.

O mesmo não pode ser afirmado das barragens humanas. Comparar uma coisa à outra nesses termos é incoerente. Sabemos que nenhum pé de feijão cresce até às nuvens da noite para o dia. O que parece uma simples questão cronológica faz toda diferença quando falamos de desenvolvimento. A tecnologia supõe que seja possível controlar a natureza, “pensar” por ela e “decidir” por ela, já que na verdade ela não pode fazer isso, só nós podemos pensar e decidir. Toda tecnologia pressupõe que a natureza é inerte, passiva e portanto um objeto a ser usado do modo mais racional possível. Essa relação utilitária com a natureza é resultado de valores desenvolvidos em determinadas culturas, e ela deveria ser fator que usamos para determinar o que é civilizado e o que não é. Se não há “consideração de interesses” e participação subjetiva de outros seres vivos no processo do desenvolvimento técnico, então tal sociedade é civilizada. Considerar tais interesses destruiria a civilização em seus fundamentos mais básicos.

A tecnologia não pode ser controlada justamente porque a natureza não pode ser controlada, nem mesmo a natureza humana. Quando a tecnologia parece se voltar contra nós, é a natureza que está se voltando contra nós, rejeitando as formas de controle. A natureza está constantemente lutando contra a civilização, “desaprovando” nossa falta de consideração e nossas decisões exclusivas. Outras culturas ouvem essa reclamação. Mas nós nos fazemos de surdos e preferimos considerar que apenas pessoas podem decidir o que é bom ou ruim para o mundo, e que qualquer interesse contrário é somente um obstáculo a ser vencido com ainda mais controle.

Referências:

DUPAS, Gilberto. O mito do progresso. Novos estudos CEBRAP, n. 77, p. 73-89, 2007.

FEENBERG, Andrew. Teoria crítica da tecnologia: um panorama. A teoria crítica de Andrew Feenberg: racionalização democrática, poder e tecnologia. Brasília: Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina/CDS/UnB/Capes, p. 97-117, 2010.

WRIGHT, Ronald. Breve história do progresso. Editora Record, 2007.

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