A sustentabilidade da morte-vida

Um pequeno ensaio sobre vida e não-vida na civilização


A sociedade civilizada está morta por dentro, e arrasta sua existência amaldiçoada na tentativa de destruir a vida.

Adorno, em Dialética do esclarecimento, fala sobre a valorização do corpo na publicidade. Ele afirmou que na verdade não há louvor ao corpo vivo (leib), mas sim ao corpo físico (körper). O corpo é valorizado enquanto objeto a ser esculpido pelo indivíduo, para se tornar um objeto de beleza perfeita, atraente.

De modo semelhante, o sentido da vida nesta sociedade é um sentido físico, e não um sentido vivo. Não é a vida em sociedade que se busca, mas o desenvolvimento material da sociedade, esculpida pela política tradicional, para se adequar a um modelo, um ideal de vida social próspera e satisfatória.

É possível viver sendo contrário à vida, numa imitação da vida, uma morte-vida. A sociedade viva (a comunidade humana) está para a civilização como o lieb está para o körper. Não valorizamos a vida em seu sentido amplo, valorizamos um conjunto de condições materiais que esta cultura tecnicista chama de vida. Mas falta um elemento para essa coleção de estados físicos. A ausência desse elemento causa desespero, e o desespero é aliviado pela busca contínua do aumento da qualidade de vida, a busca da felicidade.

A manutenção da vida na sociedade de massas tem um preço impagável: a própria vida humana. Pois a sociedade de massas é um paraíso artificial, e todo paraíso artificial se torna um inferno. A sede prolongada nos faz beber qualquer tipo de líquido, a fome prolongada nos faz comer qualquer tipo de alimento. Nós nos apegamos a esse modo de vida deletério porque ele é tudo que sobrou para nós.

Esta sociedade está construída sob o alicerce de uma razão que se confunde com a razão humana. Essa razão sofreu sua última grande revisão no início da modernidade.

Não estamos presos por um instinto inelutável, mas por uma reação condicionada adquirida num ambiente confinado. Quem está condicionado se sente compelido a agir de determinada maneira, mas o condicionamento deve ser reforçado para se perpetuar. Todo condicionamento pode ser quebrado.

Assim como há um esforço contínuo para manter a estrutura física da sociedade de pé, há um esforço contínuo para manter intacta a estrutura axiomática dessa sociedade. O colapso da estrutura física não impede que esta sociedade seja reconstruída, mas o colapso da estrutura axiomática determina o fim do sentido de se manter a estrutura física.

Quando as crenças deste modo de vida não puderem mais ser sustentadas, este modo de vida se tornará insuportável.

Como viciados, não é possível enfrentar o próprio vício quando não há sentido fora do vício. Mudar atitudes sem mudar o esquema conceitual é um esforço desperdiçado numa cultura que sustenta o insustentável. Primeiro é preciso mudar os pressupostos.

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