
Uma leitura anarquista, sem dar palco ao moralismo reacionário.
Durante 16 anos, o Partido dos Trabalhadores ocupou a cadeira presidencial do Brasil, mas dizer que “esteve no poder” é outra história. O Estado, com sua engrenagem bicentenária de opressão, exploração e extermínio, jamais entrega as rédeas a quem está fora da lógica dominante. O PT, que nasceu com o punho fechado da luta sindical e com a boca cheia de democracia radical, precisou vestir terno e cortar o cabelo para sentar à mesa com banqueiros, latifundiários, generais, pastores, magnatas da mídia. Na prática, foi convidado a dançar no baile do inimigo, e dançou ao som da conciliação de classes.
Sob a ótica anarquista, que desconfia por princípio de qualquer poder centralizado, o que se viu foi uma aposta na governabilidade às custas da autonomia popular. Os anos petistas trouxeram avanços? Sim, e negar isso seria tão desonesto quanto endeusar o partido. Redução da miséria, expansão do ensino técnico e universitário, políticas de reparação racial e de gênero (ainda que tímidas), e algum respiro para os de baixo. Mas tudo isso dentro dos limites do que o capital permite sem se sentir ameaçado.
O PT não rompeu com o sistema, apenas administrou a crise. E, ao fazê-lo, engoliu o veneno de suas próprias contradições. Manteve, e por vezes aprofundou, o modelo extrativista, a criminalização de movimentos sociais, as mega-obras em territórios indígenas, o encarceramento em massa, o genocídio da juventude negra nas periferias. Tudo isso em nome do “desenvolvimento”.
E o trabalho? O trabalho continuou matando. O Brasil segue entre os líderes mundiais em acidentes e mortes no trabalho. Um acidente a cada 45 segundos. Uma morte a cada 3 horas. Debaixo das promessas de inclusão e progresso, as máquinas continuam moendo corpos como antes. O operário agora tem carro, mas morre esmagado da mesma forma. Tem acesso ao crédito, mas não à cultura. A reforma trabalhista, que o PT não conseguiu barrar nem reverter, institucionalizou a precarização. O sonho da carteira assinada virou o pesadelo dos aplicativos.
O capitalismo mata, e o Estado é cúmplice. O Estado é a máquina que organiza a morte de forma burocrática. E mesmo o PT, ao assumir o leme, não desmontou essa máquina. Reformou aqui, lubrificou ali, mas não tirou ninguém do moedor. Apenas regulou a velocidade da rotação.
A ilusão é essa: que um partido oriundo da luta operária pode “tomar o Estado por dentro” e usá-lo contra o capital. Mas o Estado, como dizia Bakunin, é a igreja do capital. Quem sobe no seu altar reza a missa ou é expulso como herege.
Hoje, muitos à esquerda choram a queda do PT como se fosse o fim da luta. Outros, mais jovens ou desiludidos, nem se importam mais: preferem memes. E talvez aí esteja a fagulha de algo novo. Porque não há saída por dentro da opressão. É preciso construir outra coisa do lado de fora, ou abaixo, no subterrâneo.
O legado do PT é ambíguo: mostrou que algum alívio é possível, mas também escancarou os limites da via institucional. Nos ensinou que sem ruptura, o reformismo acaba sendo o fiador do status quo. E, nesse sentido, o petismo pode ser o último suspiro de uma esquerda que ainda acredita no Estado como solução.
Nós, anarquistas, seguimos acreditando naquilo que o estado teme: a organização autônoma, a ação direta e a solidariedade. Sabemos que não basta mudar o gerente. É preciso desmontar a loja.
Porque enquanto houver Estado e patrão, enquanto houver polícia protegendo capital e leis punindo quem ousa sonhar, haverá mortos no trabalho e sangue nas mãos da “governabilidade”, e silêncio nos palácios.
A luta continua, mas não nos gabinetes.
Ela está nos becos, nas ocupações, nas cozinhas comunitárias, nas redes de afeto e nas sabotagens cotidianas.
Sem esperar salvadores.
A crítica à civilização não trabalha com o conceito de "civilizações" no plural, como sinônimo de sociedades humanas "desenvolvidas", mas…