Óbito e Progresso

Sobre extrativismo, doença e gestão da morte no Brasil. Texto de Mauro Zag. Imagem: “Xawara”, desenho de Davi Kopenawa.


Texto: Mauro Zag

Que Ogum proteja o Brasil: hoje, 23 de abril, atingimos o registro, que sabemos ser muito subdimensionado, de quase 50 mil casos oficiais do novo coronavírus, o COVID-19. Desde o primeiro óbito em 17 de março, os mortos pela pandemia ultrapassam o assustador número de 3.300 pessoas[1]. Casos de doença que trazem perdas tão gigantescas não são novidade para os povos indígenas, e por isso acredito que é com eles que devemos aprender a lidar com esse tipo de catástrofe. Nas próximas linhas, vou tentar resumir o que a nação yanomami, por intermédio de seus xamãs e lideranças, elaborou sobre as numerosas doenças com que teve de lidar desde seu contato com a sociedade brasileira dominante.

Onde há napëpë, há xawara wakixi

O xamã[2] yanomami Davi Kopenawa ensina que Omama, o grande demiurgo que deu forma à Hutukara, a “terra-floresta” em que vivemos, teve a “decisão sábia” de guardar nas profundezas do solo todos os “minérios”, tanto o ouro e demais metais, quanto o petróleo e outros combustíveis fósseis. Isso porque a divindade tinha o conhecimento de que as “fumaças dos minérios”, explica Kopenawa, “são todas a mesma fumaça de epidemia xawara, que é a nossa verdadeira inimiga”. Xawara é o termo yanomami usado para designar doenças infecto-contagiosas em geral; wakixi significa “fumaça”. Omama, logo, teria ocultado os “minérios” – fontes de xawara wakixi, as “fumaças de epidemias” – para que “não pudessem nunca nos contaminar”. “Essas coisas maléficas”, continua o xamã, “permaneciam bem enterradas, e nossos maiores não ficavam doentes o tempo todo, como ficamos hoje”. Agora, os Yanomami sofrem de moléstias porque a estabilidade da saúde, garantida por Omama desde o início dos tempos, foi posta em xeque pelos napëpë, os “inimigos estrangeiros” – os invasores brancos[3]. Os napëpë, diz Kopenawa, “tomados por seu desconhecimento, puseram-se a arrancar os minérios do solo com avidez, para cozê-los em suas fábricas”. Davi Kopenawa denuncia que os brancos, ao desenterrar, manusear e consumir aquilo que Omama escondeu, “liberam o vapor maléfico de seu sopro”, que “sobe então para todas as direções do céu”, voltando “a cair sobre os humanos, e é assim que acaba nos deixando doentes”[4].

Os Yanomami só tiveram contato com a sociedade não-indígena recentemente, no começo do século XX, com a expansão da fronteira extrativista em direção ao seu território, localizado no norte do estado do Amazonas e a oeste de Roraima. Até 1940, os brancos que os Yanomami conheceram se resumiam a alguns caçadores e mateiros em busca de látex e piaçava, além de esparsos militares e funcionários do antigo Serviço de Proteção aos Indígenas, o SPI. Foi somente a partir da década de 1960 que a proximidade com os invasores se consolidou, com a chegada de missões cristãs – muitas estrangeiras, a maioria estadunidense – e com a intensificação da abertura de postos do SPI no extremo norte do país. Davi Kopenawa, nascido em 1956, é testemunha do brutal genocídio que se seguiu a estes primeiros contatos com os napëpë. Foram muitos os projetos desenvolvimentistas implementados pela ditadura militar, nas décadas de 1970 e 1980, na região onde, desde tempos imemoriais, se situa a terra yanomami. E, trazidas no mesmo pacote do “progresso”, foram igualmente muitas as doenças que, como a gripe, o sarampo, a malária ou a coqueluche, eram corriqueiras para os invasores, mas foram devastadoras para os povos nativos.

O choque epidemiológico atingiu seu ápice quando, entre o fim da década de 1980 e o início da de 1990, já durante a chamada “redemocratização” da política brasileira, foram descobertas jazidas de ouro e cassiterita em Roraima, levando a uma explosão da atividade ilegal de mineração. O território yanomami, que ainda não havia sido demarcado[5], se viu invadido por mais de 30 mil garimpeiros – um número estimado, na época, como cinco vezes maior do que o de habitantes indígenas da região[6]. Somem-se às mortes por doença os assassinatos[7], e o que se obtém é mais um vergonhoso genocídio de povos nativos na história recente do Brasil. Cerca de 2 mil pessoas, equivalentes a 10% da população yanomami de então, vieram a óbito por conta de enfermidades como a malária[8]. O trágico contato dos Yanomami com a violência própria do extrativismo indica por que Davi Kopenawa associa a gênese das “epidemias xawara” à presença dos brancos, com suas atividades voltadas para as “fumaças dos minérios”. Desde a garimpagem e escavação de metais e combustíveis fósseis, passando pelo seu tratamento ou “cozimento nas fábricas”, até chegar à sua utilização final, em “mercadorias” e “máquinas”, o que o xamã vê nas matas é devastação e insalubridade, “sujeira” e “fumaça”[9] – tudo o que, para o seu povo, traz doença e morte.

Onde há “fumaças de minérios”, há brancos; e onde há napëpë, há xawara wakixi. Na cosmologia tradicional, conforme narrada a Anne Ballester Soares pelos xamãs das comunidades do Médio Rio Negro[10], os Yanomami têm origem a partir dos “comedores de terra”, os ancestrais que “no início não comiam os alimentos que comemos hoje” – “comiam terra”, e também “frutas, excrementos de minhoca, folhas novas de cabari” e “a pasta que se forma nas árvores junto às casas de cupim”. Apesar de sofrerem de fome “pois comiam terra”, os ancestrais, como contam os xamãs, “não ficavam doentes, pois não existia malária, e não precisavam curar ninguém, pois não havia doença, não havia dor, nem tosse, portanto não havia necessidade de remédio”. Os ancestrais “não choravam por causa de um velho morrendo de doença, pois ninguém morria de doença. (…) Eles não ficavam fracos com diarreia, isso não acontecia, apesar de eles não tomarem remédios”. E assim concluem os sábios yanomami: “não havia doença, pois não havia napë” (o “branco”)[11].

A gestão da morte no Brasil

Não há momento mais oportuno do que o nosso para refletir sobre a associação que os xamãs yanomami estabelecem entre os napëpë, os “inimigos brancos”, e as xawara wakixi, as “fumaças de epidemias” – em suma, entre o contato com o não-indígena e a presença da morte. No dia 18 de abril de 2020, último sábado, vi, pelas redes sociais e noticiários de TV, imagens de mais uma tragicômica carreata, chamada “Saia de casa”, organizada por aqueles que seriam os napëpë por excelência: os apoiadores do presidente Jair Messias Bolsonaro. Em números oficiais, neste dia o Brasil já contabilizava 2.347 mortes e 36.599 infectados pelo novo coronavírus[12]. Num momento em que ainda era incerta a posição do Ministério da Saúde – com a exoneração, há apenas dois dias, de Luiz Henrique Mandetta, que teve atritos com o presidente, e a nomeação de Nelson Teich como ministro –, o congresso nacional e os governadores dos estados passaram a ocupar, na política oficial, a linha de frente em prol da manutenção, no país, das diretrizes da OMS, a Organização Mundial da Saúde. A OMS, sabemos, definiu o distanciamento social e o isolamento domiciliar como os principais caminhos para deter o crescimento vertiginoso da pandemia, e essas medidas foram adotadas por quase todos os países do globo, com a finalidade de evitar o colapso de seus sistemas de saúde, e a morte de milhões de pessoas.

Na contramão desses caminhos, os automóveis dos bolsonaristas – quase todos, porém, com as janelas cuidadosamente fechadas – se reuniram e desfilaram nas avenidas, pelo menos, do distrito federal e das capitais de São Paulo e do Rio de Janeiro, estes os dois estados brasileiros com o maior registro de infectados pelo COVID-19. Na rampa do Palácio do Planalto, durante a concentração para o ato de Brasília, sob aplausos e gritos de ordem de seus apoiadores, que se aglomeravam para vê-lo e registrá-lo com seus celulares, Bolsonaro esbravejava contra a quarentena e incentivava a reabertura do comércio. “70% vão pegar, não tem como”, afirmava Bolsonaro. “Se não for hoje”, ele continua, “vai ser semana que vem, mês que vem”. A naturalidade com que o presidente da república se referia à contaminação de cerca de 146 milhões de pessoas deixava evidente, mais uma vez, que seu compromisso, bem como o dos seus fiéis seguidores, nada tinha a ver com a saúde pública, mas tão somente com a sua visão necrófila de “economia”, neoliberal em estado bruto, aliada à sua política assassina de “combate à violência”, de ordem (para)militar e fascista. “Não depende de mim abrir o comércio”, lamentava Bolsonaro, “se dependesse de mim, muito mais coisa estaria funcionando”. O presidente justificava, incansável, que os brasileiros “têm que trabalhar”, pois “quanto mais desemprego, mais violência”[13]. No dia seguinte, 19 de abril, Bolsonaro voltaria a protagonizar um evento grotesco na capital federal, defendendo o fim do isolamento social para centenas de seguidores que participavam de um ato com pauta a favor de intervenção militar, do fechamento do congresso nacional e de um novo ato institucional nº. 5 – o que gerou muita discussão na mídia, notas de repúdio de entidades do governo e sinalizações para um processo por crime de responsabilidade[14].

Por mais escandalosas que possam parecer, a retórica e as atitudes de Bolsonaro são tudo menos uma novidade na história da política institucional brasileira – marcada, a ferro e fogo, por aquilo que o Coletivo Centelha, em seu indispensável livreto Ruptura, chama de “gestão da morte”. A virada fascista do neoliberalismo atual, uma tendência global que encontrou no Brasil bolsonarista uma espécie de “laboratório”, incorporou à arcaica herança da exploração escravagista colonial as mais modernas tecnologias do capitalismo contemporâneo, mostrando uma convergência entre passado e futuro da qual a “gestão da morte” seria um dos pontos de contato[15]. A situação que se observa nos estados de capitalismo periférico, como o brasileiro, de acordo com os membros do Centelha, “nos mostra que neles o poder construiu dispositivos que incidiam não somente sobre a vida, mas também sobre a morte”. A própria territorialização das vastas áreas coloniais foi “atravessada pela prática sistemática da execução sumária, da tortura e do desaparecimento”, e com a “catástrofe da colonização” – e aqui destaco o papel das epidemias, como vimos acerca dos Yanomami –, governar, desde sempre, se definiu como “gerir mortos e tratar setores da população como mortos potenciais”[16]. Governantes como Bolsonaro, continuam as palavras de Ruptura,

dedicam-se a decidir o destino post-mortem dos cadáveres anônimos que produzem, a dosar o acesso de determinados grupos às condições materiais necessárias para a sobrevivência, enquanto garantem a concentração de renda e os padrões de consumo conspícuo, levando-os até o limite da morte sempre que isso seja funcional ao sistema. Nada disso seria possível sem uma vasta rede de práticas voltadas para a produção otimizada da morte e do esquecimento[17].

As raízes dessa “vasta rede” da “política de morte”, o Coletivo Centelha as localiza no latifúndio escravagista da época colonial, que, tendo como modelo a empresa comercial voltada para a exportação, impossibilitou o surgimento de um espaço político institucional voltado para a realidade interna da colônia e de seus habitantes. O extrativismo para exportação configurou-se como uma “atividade extremamente avançada”, que se tornou rapidamente “o coração do capitalismo mundial”, financiando o desenvolvimento da indústria e das sociedades europeias, e dando suporte para a monstruosa diáspora afro-atlântica, “o maior deslocamento populacional da história humana”. O Brasil era o “centro dessa violência fundadora do mundo moderno”, sendo o país que, no século XIX, “mais recebeu negros escravizados em todo o mundo e um dos últimos a abolir a escravidão”. “O latifúndio escravagista”, complementa o Coletivo Centelha, “é a célula elementar da sociedade brasileira, o elemento que modula a totalidade das nossas relações sociais”. E o dualismo dessa matriz econômica – em que as forças de produção voltadas para as demandas internas são precárias, ao passo que aquelas voltadas para o mercado externo são avançadas e lucrativas – encontra correspondência com outro dualismo, de natureza ontológica. “Nossa sociedade só se reproduz reafirmando brutalmente a existência de senhores, por um lado, e de escravos, por outro; de brasileiros e de inimigos da pátria; de cidadãos e de marginais; de humanos e de ‘coisas’”[18].

Mesmo após o fim oficial do escravagismo em 1888, o latifúndio colonial manteve-se, e se mantém até hoje, como “estrutura social”, como “célula econômica de produção”; é “a alma do capitalismo brasileiro” – essa grande empresa gestora da morte[19]. Com a premissa de que na grande fazenda escravocrata se encontram as fundações de toda a construção política e econômica levada a cabo ao longo da história do país, é possível visualizar um nexo essencial entre: (1) o extrativismo predatório e os projetos desenvolvimentistas, invariavelmente acompanhados de epidemias genocidas, que tomaram de assalto o território yanomami desde a ditadura militar; e (2) a postura negacionista de Bolsonaro e seu apoiadores diante da gravidade evidente da pandemia do COVID-19, visando à reabertura do comércio. Em ambos os pontos, escancaram-se estratégias de gestão da morte, movidas por uma fixação pela fantasmagoria da “economia de mercado” – Davi Kopenawa fala que os brancos sofrem de uma “paixão pelas mercadorias”[20]. Lidamos com uma máquina que é incapaz de valorizar a vida, e que não para de coisificar as pessoas para, assim, melhor descartá-las.

“Estão todos em risco, brancos e indígenas”: a “vingança da Mãe Terra”

Com a pandemia do COVID-19, o fantasma das xawara wakixi, as “fumaças de epidemia” que nunca deixaram de assombrar os Yanomami, ganhou uma imagem ainda mais assustadora. Pouco mais de uma semana antes da carreata bolsonarista “Sai de casa”, em 9 de abril, faleceu, em decorrência do novo coronavírus, o jovem Alvanir Xrixana, de apenas quinze anos. Yanomami da aldeia Helepe, que se localiza a 87 km da capital roraimense, numa região de grande atividade de garimpagem, Alvanir estava internado numa unidade de terapia intensiva do Hospital Geral de Roraima, em Boa Vista, desde o dia 3 de abril, quando chegou com sintomas de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Sublinho que é no mínimo preocupante o fato de que, antes de ser internado e obter o laudo de confirmação da doença – o que só aconteceu seis dias após sua internação, horas antes de sua morte! –, o adolescente esteve com agentes de saúde indígena, familiares, amigos e membros de sua aldeia[21]. Segundo dados do Instituto Socioambiental, há hoje 42 casos de indígenas infectados em todo o Brasil, e quatro mortes[22].

Em 17 de abril de 2020, o jornal O Globo publicou uma entrevista com Dario Kopenawa, diretor da Hutukara Associação Yanomami e filho de Davi Kopenawa; em suas falas, Dario faz eco com as palavras de seu pai: “Nós vivemos com saúde e harmonia na floresta, mas vocês trazem a doença”. E lastima:

Eu era uma criança, mas lembro que os garimpeiros chegaram trazendo malária, pneumonia, prostituição, bebida alcoólica e violência. (…) Agora, todos estamos em risco. Brancos e indígenas. Estamos usando nossa rede de radiofonia para monitorar e pedir ao povo que fique isolado nas aldeias. Não queremos mais mortes. Mas os garimpeiros estão aqui, eles são muitos. A doença pode invadir nossa terra junto com eles.

(…)

Estão todos com medo, os velhos sobreviventes viram muitos morrendo de sarampo e outras doenças no passado, eles sabem o que é isso, respeitam o pedido de isolamento. (…) nada disso é novidade para a gente. Meu pai falou sobre a epidemia há anos. Ele alertou sobre a xawara. Nós, indígenas, sempre alertamos que não pode destruir a floresta e envenenar os rios. Agora, estamos vendo a vingança da natureza porque o homem branco não deixa a Mãe Terra em paz[23].

Pretendo encerrar a presente seção discutindo dois pontos deste depoimento de Dario Kopenawa. O primeiro é: os Yanomami felizmente sabem, à diferença dos apoiadores de Bolsonaro, que o COVID-19 não é como o sarampo ou a malária. Não é “uma gripezinha”, como já foi menosprezado irresponsavelmente pelo presidente em cadeia nacional. É uma doença que coloca, como Dario diz, “todos em risco”, “brancos e indígenas”. Trata-se, afinal, de uma pandemia, frente à qual é necessário “monitorar e pedir ao povo que fique isolado nas aldeias”. E este povo, agora, sabe como lidar com as xawara wakixi dos napëpë; Dario afirma que “eles sabem o que é isso”, e que “nada disso é novidade para a gente”. Entretanto, com a “gestão da morte” característica da política brasileira – neocolonial e neoliberal, racista e autoritária, que só se preocupa com o comércio, a indústria e as exportações, e arbitra quanto a quem vive e quem morre para atingir seus objetivos escusos –, é preciso destacar que os yanomami, infelizmente, também sabem que correm mais riscos do que os napëpë em um Brasil doente – cujos lemas são o óbito e o progresso. Porque resumem bem o cenário preocupante em que se encontram os indígenas, reproduzo abaixo as palavras do antropólogo e fotógrafo Milton Guran, pesquisador do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense, a UFF:

Já está acontecendo uma tragédia como a de 30 anos atrás. São cerca de 20 mil garimpeiros no território [yanomami]. Eles entram e saem, recebem mantimentos deixados por aviões. Tudo isso pode levar o vírus. (…) Se o coronavírus chegar numa aldeia, vai contaminar todo mundo. A forma de vida deles não permite confinamento. Eles se encostam o tempo todo, compartilham tudo, e sabão não há. Os Yanomami estão sempre limpos, mas eles não têm sabão. E água de igarapé não mata o vírus. A COVID-19 é mais uma arma mortal, a mais potente, jogada sobre os Yanomami pela nossa sociedade[24].

De volta à fala de Dario Kopenawa, e para encerrar: o outro ponto que gostaria de enfatizar é a indicação para o origem do novo coronavírus a partir de uma “vingança da Mãe Terra”, em resposta à “destruição das florestas” e ao “envenenamento dos rios”. Não que Dario Kopenawa precise disso para se apoiar e ser “levado a sério”[25], mas não é demais destacar que sua visão vai ao encontro do que vêm demonstrando os cientistas do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, o Pnuma. De acordo com o Pnuma, a degradação dos ambientes naturais tem relação direta com o aumento exponencial de enfermidades zoonóticas, isto é, transmitidas de animais para humanos – como é o caso do COVID-19, que certamente surgiu entre morcegos. Patógenos se alastram com mais facilidade em ambientes devastados, tanto em animais quanto em humanos. E a escala global em que a máquina de morte vem engolindo os últimos espaços naturais aponta para um cotidiano cada vez mais doente para todos, todos nós[26].

O que nos espera no fim do mundo não é uma destruição imediata como aquelas que nos acostumamos a ver nos filmes catastrofistas hollywoodianos. O que temos no horizonte é um longo e torturante desastre epidemiológico e ambiental, que continuará vitimando indígenas e brancos, humanos e não humanos. Tudo isso porque, como diz Dario Kopenawa, “o homem branco não deixa a Mãe Terra em paz”. O que nos resta é aprender com os resistentes povos indígenas, a exemplo dos Yanomami, como sobreviver às xawara wakixi – e também aos napëpë, tanto aqueles que se aglomeram em carreatas e atos de adoração à morte, quanto esses que se escondem, insistentes, dentro de nós.


[1] Ver VIANNA, Raffaella. “Brasil tem 3.313 mortes e 49.492 casos de coronavírus, diz ministério”. G-1, 23 de abril de 2020 (acesso às 18h). Disponível em:
https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/23/brasil-tem-3313-mortes-e-49492-casos-de-coronavirus-diz-ministerio.ghtml

[2] Convencionou-se amontoar, sob o termo guarda-chuva “xamanismo”, as diversas atividades relacionadas ao sagrado desenvolvidas pelos povos indígenas, não apenas do Brasil e das Américas, mas de todo o mundo. Outra palavra guarda-chuva como “xamã” é “pajé”, que originalmente designava apenas os curandeiros de algumas nações de origem tupi, mas que passou a ser usado, indiscriminadamente, para qualquer sociedade indígena. Manifesto meu desconforto quanto ao uso dessa terminologia, que é evidentemente redutora e etnocêntrica; a ela recorro aqui somente para garantir a compreensão do texto, dada a popularidade de termos como “xamã”. De todo modo, vale mencionar que o termo yanomami que se traduz por “xamanismo” é xapirimuu, que tem ideia de ação e significa, literalmente, “agir como (-muu) espírito (xapiri)”.

[3] Napëpë é forma de plural para napë, termo yanomami que se referia a qualquer “invasor” ou “inimigo”, mas que acabou se restringindo aos “inimigos brancos”. Ver KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 610, n. 2.

[4] KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. Op. cit. p. 363.

[5] O território yanomami só foi oficialmente demarcado em 1992, ocupando uma área de aproximadamente  9,6 milhões de hectares, localizada entre os estados de Roraima e Amazonas.

[6] Ver: ALBERT, Bruce. Verbete Yanomami. In: Povos Indígenas do Brasil. Instituto Socioambiental. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Yanomami.

[7] Teve bastante repercussão na época, por exemplo, o chamado “Massacre de Haximu”, ocorrido em julho de 1993, quando garimpeiros invadiram e atearam fogo na aldeia de Haximu, matando dezesseis yanomami, incluindo mulheres, crianças e idosos. Cinco garimpeiros envolvidos foram condenados anos depois, em 1997, pelo crime de genocídio – a primeira condenação desse tipo no Brasil.

[8] HELAL FILHO, William. “Coronavírus resgata memória de tragédia yanomami e gera risco de nova mortandade: ‘Doença pode invadir nossa terra junto com garimpeiros’”. O Globo, 17 de abril de 2020. Disponível em:
https://blogs.oglobo.globo.com/blog-do-acervo/post/coronavirus-resgata-memoria-de-tragedia-yanomami-e-gera-risco-de-nova-mortandade-virus-pode-invadir-nossa-terra-junto-com-garimpeiros.html

[9] É emblemática, neste ponto, a imagem da queima operada dentro dos fumegantes “motores” movidos a petróleo, que infestam e destroem as matas; sobre isso, ver, p.e.: KOPENAWA & ALBERT. Op. cit. p. 345.

[10] Anne Ballester Soares é cofundadora da ONG Rios Profundos e do Xapono – Núcleo Audiovisual Yanomami. Transcreveu e traduziu o conteúdo de gravações feitas, em junho de 2009, com xamãs yanomami das comunidades de Ajuricaba, do rio Demini, Komixipiwei, do rio Jutaí, e Cachoeira Aracá, do Rio Aracá, todas as três localizadas do município de Barcelos, no estado do Amazonas. O resultado foi publicado em quatro livros, em 2017, pela editora Hedra. Farei referência a um deles a seguir.

[11] SOARES, Anne Ballester. Os comedores de terra. Ou o livro das transformações contadas pelos Yanomami do grupo Parahiteri. São Paulo: Hedra, 2017. pp. 18-19.

[12] Ver “Últimas notícias sobre o coronavírus no Brasil e no mundo”. El País, 19 de abril de 2020. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2020-04-19/ao-vivo-ultimas-noticias-sobre-o-coronavirus-no-brasil-e-no-mundo.html. Acesso às 14h10.

[13] Sobre o ato “Saia de casa” e as declarações de Bolsonaro durante a concentração em Brasília, ver “Bolsonaro sobre coronavírus: ‘70% vão pegar, não tem como’”. Brasil 247, 18 de abril de 2020. Disponível em https://www.brasil247.com/regionais/brasilia/bolsonaro-70-vao-pegar-nao-tem-como.

[14] Ver OLIVEIRA, Carolina. “Participação em ato pró AI-5 isola Bolsonaro ainda mais e cresce oposição ao governo”. Brasil de Fato, 20 de Abril de 2020. Disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/2020/04/20/repudio-a-participacao-de-bolsonaro-em-ato-pro-ai-5-deixa-presidente-mais-isolado

[15] COLETIVO CENTELHA. Ruptura. São Paulo: n-1 Edições, 2019. p. 36.

[16]  “Governar é produzir zumbis”, define o Centelha. COLETIVO CENTELHA. Op. cit. p. 38.

[17] COLETIVO CENTELHA. Op. cit. pp. 38-39.

[18] COLETIVO CENTELHA. Op. cit. pp. 40.

[19] COLETIVO CENTELHA. Op. cit. pp. 40-41.

[20] Ver KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. Op. cit. pp. 406-420.

[21] BOND, Letycia. “Morre índio yanomami com coronavírus”. Agência Brasil, 10 de abril de 2020. Disponível em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-04/morre-indio-yanomami-com-coronavirus.

[22] Dados acessados às 19h. Disponível em:
https://covid19.socioambiental.org/

[23] Citado em HELAL FILHO, William. “Coronavírus resgata memória de tragédia Yanomami e gera risco de nova mortandade: ‘Doença pode invadir nossa terra junto com garimpeiros’”. O Globo, 17 de abril de 2020. Disponível em:
https://blogs.oglobo.globo.com/blog-do-acervo/post/coronavirus-resgata-memoria-de-tragedia-yanomami-e-gera-risco-de-nova-mortandade-virus-pode-invadir-nossa-terra-junto-com-garimpeiros.html

[24] Citado em HELAL FILHO, Op. cit.

[25] Ver ZAG, Mauro. Sobre a importância de levar a sério o que as pessoas dizem. Contra a Civilização, 2019. Disponível em:
 https://contraciv.noblogs.org/da-importancia-de-levar-a-serio-o-que-as-pessoas-dizem/

[26] Ver FIRMINO, Hiram. Novo coronavírus é reflexo da degradação ambiental. Revista Ecológico, 24 de março de 2020. Disponível em:
http://revistaecologico.com.br/revista/edicoes-anteriores/edicao-123/novo-coronavirus-e-reflexo-da-degradacao-ambiental/

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2 Responses to Óbito e Progresso

  1. Letícia Shimoda diz:

    Bom texto, queria saber dentro dessa visão crítica à civilização , quais seriam os caminhos, além do isolamento, para lidar com pandemias, visto que vacinas são resultado da própria civilização e demandam para o desenvolvimento delas estes mesmo causadores de doenças como a extração de minérios, o desenvolvimento da ciência, etc. Num cenário hipotético ideal é que as doenças não surgissem, mas e depois de surgidas?

    • contraciv diz:

      Obrigado pela pergunta. Isso tem gerado muita dúvida no meio eco-anarquista, e algumas pessoas defendem que deveríamos encontrar outros modos de nos defender das pandemias sem aumentar ainda mais nossa dependência da indústria farmacêutica, que com certeza se tornou mais poderosa do que nunca. As vacinas não são uma solução para as pandemias, elas podem no máximo conter os efeitos, e é preciso lidar com a causa: o confinamento de animais e a devastação de florestas (e talvez a própria manipulação genética), ou então teremos uma onda de pandemias cada vez piores. Embora isso seja verdade e devamos ficar atentos a isso, não podemos agir de modo irresponsável. A crítica à civilização não implica em boicote a tudo que é civilizado, ou então não estaríamos aqui usando a internet. A crítica à ciência também não pode ser confundida com negacionismo científico. As vacinas salvam vidas e são necessárias, isso tem sido comprovado pela ciência, e ignorar isso seria irresponsabilidade. Usar dos meios necessários para viver, mesmo quando providos pelo Estado, não contradiz a luta contra o Estado, e o mesmo pode ser dito sobre a civilização. O problema não é usar, mas sim tratar esses meios como uma benção, principalmente quando isso pode facilmente ser usado para justificar o aprofundamento de medidas de controle social.

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