E se a culpa não for da internet?

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Esta é uma resposta ao seguinte texto: https://markmanson.net/pt-br/ta-tudo-fodido-e-tenho-certeza-que-culpa-e-da-internet


Eu estava lendo esse texto e concordando com tudo. Até ler a parte final, quando ele começa a falar de civilização. De repente o texto mudou totalmente. Relendo desde o começo, percebi que na verdade eu não concordava com nada, nem mesmo com a ideia central. Eu apenas não tinha entendido nada na primeira leitura. Afinal, o nosso mundo não é nem de longe governado pelas emoções.

Mas o que faz uma pessoa acreditar que o problema do mundo é a emoção dominando sobre a razão? É uma crença que coloca a razão como solução para todos os problemas, ou pelo menos o equilíbrio entre razão e emoção, o que no fundo é totalmente racional. Se algo não pode ser resolvido pela razão nós nem compreendemos essa coisa como um problema.

Mas por eu estava gostando do texto? Porque eu estava interpretando “emoções” no sentido pejorativo de “crenças infundadas”. É muito comum tratar nossas crenças como se fossem mais racionais e crenças diferentes como se fossem mais emocionais, imaturas, infantis, atrasadas. Mas um sistema de crenças sempre vem antes da racionalização e da análise dos fatos.

De volta ao texto, ele estava falando sobre como a tecnologia é usada para manipular as pessoas, oferecendo meios para saciar um desejo por conforto. Ele não problematiza a origem desse insaciável desejo por conforto, talvez o trate como se fosse algo natural, que sempre esteve aí.

O autor não é ingênuo o suficiente para demonizar os sentimentos. Ele estabelece uma função para eles: suprir necessidades básicas e diminuir o sofrimento, especialmente numa sociedade onde as condições de vida foram degradadas. O exemplo dado foi a Era Industrial. Mas o que degradou as condições de vida das pessoas?

Sua questão é que a busca por melhores condições de vida pode perder o controle e se tornar uma busca por comodidade que acaba atrapalhando o avanço da sociedade. Segundo a perspectiva do autor, temos muito que comemorar com o avanço tecnológico na modernidade: ela nos livrou de doenças, evitou a fome, tornou as coisas mais fáceis, permitiu um maior desenvolvimento cultural, etc… Novamente, esta é uma crença que dificilmente encontra oposição hoje em dia. É provável que quanto maior o nível de escolaridade de alguém, mais ela concorde que o progresso é um fato. Ela será capaz de citar autores e obras defendendo essa ideia e poderá até se ofender se isso for questionado.

O autor do texto acredita que as coisas estavam indo relativamente bem até antes da Internet. Havia na Era Comercial uma segurança que foi perdida na Era Informacional. Embora esse diagnóstico não pareça ser muito diferente do que analistas como Zygmunt Bauman fizeram, há um pressuposto que muda tudo. O autor supõe que se o mundo fosse governado pelo conhecimento ao invés dos sentimentos, tudo seria diferente. Ele acredita que o problema é as pessoas não se basearem na verdade, nos fatos ou em dados. Ele acredita que tal coisa está disponível, não critica a racionalização.

Pois não é preciso muita pesquisa para saber que o que torna uma pessoa racista ou machista não é necessariamente falta de conhecimento. Essa discussão já avançou para muito além do ponto em que era possível confundir questões éticas ou políticas com questões epistemológicas. Mas parece que esse avanço não foi devidamente apreciado.

Por mais que isso doa, o fato é que o “fact checking” nunca impediu ninguém de estar enganado e principalmente de propagar ódio ou discriminações. Porque a natureza do conhecimento continua a mesma de sempre. A Internet não mudou o processo com o qual as pessoas se enganam sobre o mundo em que vivem e julgam outros grupos. Não é como se as pessoas tivessem um conhecimento mais fundamentado ou uma melhor convivência com diferenças antes da Internet. A Internet é tão mentirosa e limitada quanto a televisão, os livros, os professores de história e todas as outras fontes de conhecimento e informação. As pessoas sempre escolheram acreditar no que é mais cômodo. A facilidade de acesso aos dados e o suposto verificacionismo não muda isso.

Há uma explicação melhor para o crescimento da insegurança na sociedade contemporânea. É parcialmente verdadeiro que a tecnologia está nos desconectando da realidade. Mas isso não é nem um pouco recente. Diga-me em que tempo, em que sociedade, estávamos mais conectados com a realidade do que agora? No que quer que tenha sido baseada essa segurança que perdemos agora, não era em conhecimento sólido ou científico, em menos superstição, menos achismo, menos religiosidade… Não houve um tempo em toda a história da civilização em que o medo e a ignorância não estivessem sendo usados para controlar pessoas e manter o poder.

É interessante a analogia que o autor faz entre excesso de informação e excesso de oferta de bens de consumo. Porém, essa comparação realmente tem sentido? Qual exatamente é a demanda por informação e qual é a oferta, que tipo de informação está facilmente acessível, e qual não está? Será que todos têm acesso às ferramentas e habilidades necessárias para filtrar a informação sensata em meio à avalanche de desinformação?

Qual parcela da população mundial hoje possui o tempo e o hábito de pesquisar na Internet sobre tudo que lhe é transmitido como um fato no seu cotidiano? Como nós poderíamos realmente oferecer essa mesma oportunidade a todas as pessoas? Pense bem e verá que se você está lendo isso, você é parte de um grupo privilegiado de pessoas. E não estou dizendo que este texto é extremante complexo ou que exige uma capacidade de leitura fora do normal.

O texto sugere que é um erro se tornar um cínico desinteressado, desconfiado de tudo que está na Internet simplesmente porque é coisa demais para processar rapidamente. Mas o que você espera que as pessoas façam? É preciso tempo, dedicação, paciência. Quem pode se dar ao luxo de um tempo para pensar hoje em dia? Não é como se isso fosse questão de disciplina. A reflexão é impedida quando se obriga as pessoas a trabalhar em péssimos empregos. Como você pretende recuperar o nível de confiança necessária para manter um sistema político saudável sem mudar a estrutura econômica baseada na exploração da força de trabalho? Dentro desse sistema, as únicas opções para a maioria das pessoas são a crença cega ou o cinismo apático.

O fato é que a democracia jamais foi saudável. O que mantinha a confiança em outros tempos era uma forma de controle centralizado. Nunca experimentamos a liberdade individual numa sociedade democrática por muito tempo. Uma coisa parece ser incompatível com a outra. Com ou sem Internet, já estávamos fodidos desde muito tempo. A Internet é mais um sintoma disso do que uma causa.

O fluxo de velocidade da informação pode ser atordoante, mas já estávamos confusos desde muito tempo. E este é o ponto de discordância central: o problema nunca foi nossa tendência a “impulsos elementares, tribalísticos e individualistas”. Acreditar que o individualismo é a condição natural da humanidade é conceder a uma crença liberal absolutamente sem fundamento. Pergunte a um antropólogo sobre o mito hobbesiano de que “o homem é o lobo do homem”.

O individualismo é uma construção social relativamente recente. Não podemos afirmar que há algo fundamentalmente errado em modos de vida ancestrais sem cairmos numa espécie de chauvinismo cultural. Este mesmo chauvinismo observa o avanço tecnológico de modo seletivo, tratando-o como uma simples substituição de sistemas menos eficientes por sistemas mais eficientes. O critério de eficiência não é questionado, ele é tomado como neutro, como se fosse muito óbvio que carros são melhores que carruagens. Mas nada disso teria qualquer sentido sem determinados valores culturais, que são socialmente construídos.

A própria ideia de que existe um movimento progressivo na história da humanidade, de que existem partes superiores ou mais avançadas de nossa natureza, e outras partes que podemos facilmente apontar como partes inferiores ou menos avançadas, essa ideia em si é extremamente questionável e flerta com ideologias absolutamente detestáveis. Sugerir que este conflito tem alguma relação com um processo de evolução ou de involução é caminhar por um terreno perigoso.

E tudo isso se baseia na completa ausência de crítica à civilização. O que o autor chama de civilização, o processo de supressão de “instintos primitivos”, que seriam totalmente imorais e abjetos, é tratado como a melhor coisa que já fizemos. Não considera que toda essa educação necessária para se viver num modo de vida de multidão, onde as pessoas estão basicamente alienadas do ambiente e das condições sociais para o qual seus cérebros se desenvolveram, nunca foi necessária fora da civilização. Que em nome da civilização se cometeram as piores atrocidades da história, como a colonização, a escravidão e o patriarcado. Que todos os males que a civilização procura combater foram criados por ela mesma. A civilização cria a doença para vender a cura, mas nos faz acreditar que a doença sempre esteve lá.

Se os “instintos primitivos” dos seres humanos fossem tão destrutivos assim, que tipo de vida haveria nos milhões de anos que antecederam o modo de vida civilizado? Seria uma vida miserável, curta, empobrecedora e deplorável. Seria a razão uma capacidade que misteriosamente surge em algum ponto da evolução e permite que nos livremos da deplorável situação que a própria natureza nos jogou? Essa mitologia do progresso está pressuposta ao longo de toda a filosofia ocidental.

De acordo com essa visão de mundo, seria pessimismo acreditar que, com toda a capacidade do nosso cérebro, não seríamos capazes de mudar a condição limitadora que nos encontramos no “estado de natureza”. Certamente nosso cérebro é dotado de algo que rompe com a cadeia causal de eventos determinados por leis naturais. Ele abre uma brecha, é um erro da natureza que nos permite quebrar os grilhões que prenderam todos os outros seres vivos até então, grilhões que eles nem sequer são capazes de enxergar. Podemos facilmente acreditar nessa narrativa, mas ela não se torna menos mítica só porque criamos todo um esquema conceitual supostamente racional e científico em torno dela.

Ou podemos pensar em algo muito mais otimista: nosso problema não vem de nossos “instintos primitivos”. Estes nem sequer existem, essa ideia foi criada para justificar o preconceito contra certas populações. Nosso problema é algo muito mais fácil de mudar, pois não precisamos intervir em algo que não criamos e que mal somos capazes de compreender. Não precisamos de uma racionalidade divina capaz de corrigir a própria natureza, que é um sistema muito mais complexo que nosso cérebro. Não precisamos nos elevar acima de todos os outros animais e humanos neste planeta, não precisamos de uma ruptura completa com tudo que foi o caso até então na história da vida neste planeta. Nosso erro é muito mais limitado do que o processo evolutivo que criou nossos “instintos”. Tudo começa na crítica ao progresso, com a percepção que nosso aparente sucesso é na verdade um fracasso colossal. Não acabamos com as guerras nem com a fome, não aumentamos nossa qualidade de vida nem diminuímos a violência, não melhoramos a educação nem reduzimos o controle de poucos sobre muitos. Nada disso é motivo para otimismo real, os problemas só mudaram de lugar e de aspecto, e de certo modo apenas cresceram. Todos esses avanços foram falsos. Tudo depende de como você interpreta os dados. E os dados sobre nosso “avanço” têm sido distorcidos pelas nossas crenças culturais.

Você pode passar a vida inteira pesquisando sobre isso na Internet ou numa biblioteca e nunca encontrar nenhuma crítica significativa. A perspectiva civilizatória oferece mais confirmações do que é possível checar numa vida. Se você não tiver a “sorte” de topar com uma crítica significativa do progresso civilizatório, você provavelmente nunca vai questionar a visão civilizatória de mundo. E mesmo encontrando essa crítica existem muitos meios de rejeitá-la antes de conhecer plenamente, de ignorar que se trate de algo sério. Não podemos esperar que todo mundo construa um conhecimento desse tipo por si só. Como esperar que isso mude?

As pessoas não estão realmente considerando o que significa o mundo estar caminhando para a perdição. Elas não conhecem a natureza dessa perdição, porque acham que estava tudo relativamente bem com a civilização até pouco tempo atrás. Que estávamos ganhando a guerra contra nossa a natureza mesquinha e agora estamos regredindo por algum motivo. Não compreendem que nós estávamos nos enganando e construindo essa situação desde o começo, sabotando nossos próprios meios de vida, criando o contrário do que gostaríamos de criar, porque nosso erro é muito mais fundamental do que podemos visualizar. Mas o erro é nosso, não da natureza. A boa notícia é que nós fizemos tudo isso, e podemos desfazer. Mudar a natureza é uma esperança vazia, algo totalmente arrogante. Mas mudar o que nós criamos certamente não é.

A derrota é da civilização como um todo, não da humanidade. A humanidade nunca dependeu de civilização para viver. Podemos viver em muitos outros modos que não dependem de “progresso” ou de confinamento em ambientes artificiais. Não é um artigo na Internet que vai nos fazer chegar mais perto disso, mas esta é uma boa notícia: não precisamos ter medo de abandonar a civilização, pois não precisamos dela.

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2 Responses to E se a culpa não for da internet?

  1. contraciv diz:

    Obrigado, coloquei na lista.

  2. Ed diz:

    Maior utopismo de todos é crer que o processo civilizatório destruidor será o redentor da humanidade.

    https://www.newyorker.com/magazine/2017/09/18/the-case-against-civilization esse também valeria um comentário-postagem.

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